Nos últimos tempos, fazia planos de sair da casa, queria viver longe dali, uma vida tranqüila e feliz. Coisa que tivera fora dali, dizia.
Relembrou-se da infância miserável, dos momentos de sofrimento, da morte dos pais, de quando fora levada por parentes, para o bordel de Madame Leonor. Lembrou-se do quanto chorou, pedindo para os tios não a abandonarem.
Leonor tentou demovê-la da idéia, mas Carina estava decidida.
A moça argumentou dentro de alguns meses, abandonaria a vida de cortesã.
E assim, o dia em que a moça decidiu abandonar a vida dissoluta, foi uma tristeza imensa no lugar.
Os clientes faziam-lhe propostas para que passasse a viver com eles.
Ofereciam-lhe casa montada, roupas de luxo, jóias, conforto.
Carina porém, recusava a tudo. Agradecia a gentileza, mas declinava as propostas.
Como continuasse sua vida no lugar, passou a viver numa casa simples, sem o luxo e a ostentação de outrora.
Com o dinheiro ganho em sua vida de luxúria, Carina poderia viver uma vida larga, sossegada.
Não obstante este fato, a moça resolveu viver de forma diversa da que vivera por anos.
Para ocupar seu tempo lia, cuidava da casa e se dedicava ao piano.
Também oferecia esmola aos necessitados.
Oferecia alimento a quem batia em sua porta em busca de um prato de comida.
Por adotar trajes e maneiras mais discretas, passou a ser aceita pelas mulheres do lugar.
Conforme o tempo passava, passou a dedicar-se as obras da igreja.
Usava roupas simples, de cores claras.
Com o tempo, Carina passou a ser chamada de santinha, por seus modos suaves, seu jeito bondoso, e por sua caridade.
Instruída por algumas mulheres, passou a dedicar-se a construção de uma capela em homenagem a Nossa Senhora.
Muitos diziam que a viam iluminada.
Com seus longos vestidos brancos e véus da mesma cor, muitos argumentavam que ela se assemelhava a uma santa de altar.
Diziam que ela era uma pecadora redimida.
Nisto, ao aparecer um rapaz coberto de chagas nos arredores da igreja, todos pensaram logo em afastá-lo.
Alguns fiéis diziam se tratar de um leproso, o qual poderia transmitir a doença para todos.
Foi o suficiente para causar uma celeuma.
Alguns se afastaram atemorizados, outros passaram a investir contra o homem.
Foi então que Carina se aproximou e disse a todos, que eles não poderiam agredir o homem, só porque estava doente, precisando de ajuda. Alegou que todos precisavam ser caridosos com quem sofria, pois Deus não gostava de injustiças.
Nisto um dos manifestantes argumentou que se tratava de doença contagiosa, e portanto, de uma questão pública. Mencionou que o estranho não poderia expor a todos a um risco desnecessário.
Carina por sua vez, perguntou ao rapaz insurgente, se ele era médico e se era capaz de realizar um diagnóstico preciso sobre a moléstia do rapaz.
Sem argumentos, o mancebo calou-se.
Nisto a jovem aproximou-se do homem, e tocando em sua cabeça, pediu para que levantasse.
Disse-lhe que lhe daria comida.
Ofereceu-lhe pão e um frasco com água.
Com o tempo, as feridas do rapaz desapareceram.
Em apenas alguns dias, o jovem desfigurado, parecia outra pessoa.
Cuidado por Carina, muitos passaram a afirmar que se tratava de um milagre.
A moça por sua vez, ignorava este fato.
Prosseguia com seu trabalho de benemerência.
Contudo, em que pese a recusa de ser considerada santa, sua nova fama chegou ao conhecimento de Leonor e suas meninas.
Violeta reagiu com ironia.
Dizia que somente faltava a ela um nome de santa. Como se alguém que outrora tivera a vida desregrada da jovem, pudesse se transformar em uma santa. Dizia que só se fosse santa do pau oco.
Leonor ao ouvir isto, dizia que Carina não fazia parte daquele mundo. Relatou que os modos da moça, não combinavam com aquele mundo cínico em que viviam. Falou que se a moça continuasse a viver aquela vida, acabaria por ficar desgostosa.
Com isto, suspirou. Disse que a jovem fora sua melhor discípula, a cortesã mais elegante que pisara em seu castelo.
Leonor admirava a moça.
Gostava tanto de Carinha, que passou a ofertar generosas somas para as obras de benemerência patrocinadas pela jovem.
Era comida, roupas, e até abrigo.
Com o tempo Carina alugou um imóvel que servia de abrigo para moradores de rua.
Mais tarde, auxiliada por outros fiéis, a casa passou também a fornecer aulas de alfabetização.
Um dia, depois de conversar longamente com o padre, a moça, ao ficar sozinha, foi abordada por um homem que elogiou sua beleza singela.
Sem jeito, a moça agradeceu o elogio e se afastou.
No dia seguinte, ao sair da missa, a jovem foi novamente abordada pelo rapaz, que começou a dizer:
- Quem diria! Uma meretriz ser merecedora da alcunha de santa!
Todos os freqüentadores da igreja olharam o homem com ar de reprovação.
Um desses homens, defendeu Carina, dizendo que o passado não importava, já que a moça havia se redimido de suas faltas. Argumentou que ela, ao abandonar a vida dissoluta, desregrada que levava, adotou uma conduta digna, com a qual pautava sua vida. Ressaltou que sua postura era tão digna quanto a de qualquer pessoa de bem.
Também citou uma passagem bíblica na qual Jesus ensinava aos homens, a tolerância.
Tal passagem era a do apedrejamento da mulher adúltera, e Cristo ao ver a cena deplorável, indagou que somente aquele que fosse isento de pecados, que atirasse a primeira pedra.
Como não existem pessoas isentas de pecados, ninguém ousou agredir a mulher.
Desta forma, o homem retirou-se humilhado.
Carina, olhou seu defensor com ternura, como se naquele olhar, agradecesse o gesto de gentileza.
Dias mais tarde, um homem amparado por muletas pediu-lhe para que o curasse de sua paralisia.
Carina, sem graça, respondeu-lhe que não operava milagres.
O homem contudo, insistiu.
Afirmava que assim como ela curara o leproso, restituindo-lhe a saúde, poderia também lhe fazer voltar a caminhar.
Com isto, formou-se uma roda em torno da moça e do jovem.
Carina saiu da praça atordoada.
Conforme o tempo passava formou-se uma romaria em torno de sua residência, fato este que ensejou sua mudança do local.
Leonor, ao tomar conhecimento dos fatos, ficou penalizada.
Tanto que auxiliou-a a arrumar outra casa para morar.
Todavia, foi questão de tempo para que descobrissem onde ela morava.
Carina a todo o momento era cercada. Pessoas lhe pediam ajuda, imploravam para que ela as curasse.
Assustada, a moça a todo o momento dizia que não operava milagres. Argumentava que já estava fazendo o que podia para auxiliar as pessoas.
Certo dia, ao encontrá-la desalentada, Leonor procurou consolá-la.
Carina chorava copiosamente.
Mais tarde, ao perceber que a imposição de suas mãos trazia conforto as pessoas, passou a executar o gesto.
Foi o suficiente para o Padre Josias enervar-se com a jovem, dizendo que ela estava querendo ocupar uma função que era divina.
Revoltado, o sacerdote chegou a dizer-lhe que ela não era digna daquele mister, e que ela não passava de uma versão malsã de Maria Madalena, esta sim, verdadeira seguidora dos preceitos de Cristo.
Sentida, Carina ouviu a tudo calada.
Mas apoiada por alguns poucos amigos, a moça continuou a auxiliar os necessitados.
Com o tempo, passou a receber cartas anônimas contendo ameaças.
Seus amigos, Tereza e Roberto, ao tomarem conhecimento do teor das cartas, aconselharam-na a se acautelar.
Carina porém, não levou em consideração as ameaças.
Prosseguiu seu trabalho.
Até que um dia, tarde da noite, após o retorno de uma missa, a moça foi baleada na porta de sua casa.
Ao sentir o impacto do tiro, a moça caiu desfalecida.
Quando encontraram-na desacordada, fizeram de tudo para reanimá-la.
Carina ainda vivia.
Apenas o suficiente para dizer a todos que continuassem os trabalhos, que não desanimassem, e que tudo acabaria bem. Tendo paciência, todos veriam o resultado.
Despertou um pouco desorientada, para depois soltar seu último suspiro e morrer nos braços de Roberto.
O moço então, ficou deveras desalentado.
Contudo, prometeu a si mesmo continuar o trabalho da moça.
E prosseguiu.
As obras de benemerência continuaram.
Leonor, ao tomar conhecimento da morte da moça, ficou desesperada.
Desalentada, deixou o rendevouz nas mãos de Violeta, para quem vendeu o imóvel e todo o fundo de comércio.
Passou a se dedicar a obras de caridade.
Assim, passou a trabalhar na instituição idealizada por sua pupila Carina.
Dizia a Roberto e Tereza, que de pupila, Carina se tornou sua mestra. Superou-a em lições de vida.
Quando falava da moça, seus olhos invariavelmente se enchiam d’água.
Triste, dizia que se Carina não a tivesse conhecido, sua vida seria diferente, e talvez não tivesse sido morta.
Tereza, sempre que a ouvia proferir estas palavras, dizia-lhe que estava falando besteira.
Argumentava que Carina tivera que passar por aquela prova, e que havia se redimido.
Nisto, com o passar dos anos, Carina passou a ser reverenciada como santa.
Com o tempo surgiram peregrinações em seu nome.
Cerca de dezoito anos após os fatos, surgiu uma mulher de nome Maria Rosa dizendo ser sua filha.
Foi um escândalo na cidade.
A indignação foi geral.
Leonor, a única pessoa que poderia confirmar a veracidade da história, falecera meses antes da revelação.
Mesmo assim, a moça insistia em dizer-se descendente direta de Carina.
Viera sozinha para a cidade. De seu, apenas suas malas, seus pertences.
A jovem vestia-se com longos vestidos e anáguas, além de véus rendados e leque.
Luciana Celestino dos Santos
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Poesias
sexta-feira, 19 de março de 2021
CARINHOSO - PARTE I - CAPÍTULO III
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