Com relação a ‘Lenda dos Marinhos’, Felipe passou a escrever o seguinte:
Barbaridade!
Há mais de três meses não chovia, numa estiada jamais verificada nestas redondezas.
Aqui a chuva é uma constante no decorrer do ano e assim, uma seca como aquela
exasperava, a população, mormente a gente dos bairros que, se dependia da pesca, muito mais
dependia da lavoura para garantir a própria sobrevivência.
De chuva, nem sinal!
O céu mantinha uma limpidez imaculada, um azul puríssimo, sem um mínimo resquício de
nuvem que pudesse dar a esperança de um próximo aguaceiro!
O ar, parado!
Nem uma brisa, nem
uma aragem para refrescar um pouco, fazendo balançar a ressequida galharia das árvores desnudas,
murchas, desfolhadas...
Toda a região sofria por igual os efeitos daninhos da seca, mas os moradores da Praia das
Toninhas, inconformados, afirmavam que lá era pior, que lá a areia da praia era mais quente que a
das outras, chegando a tostar-lhes as plantas dos pés se não a evitassem, precisando caminhar por
cima, por sobre o emaranhado dos ‘jundus’.
Lá, diziam, dava pena olhar as roças, onde a plantação amarelecia esturricada sob a ação
escaldante dos raios solares!
Até a cachoeirinha que, sempre farta descia murmurante a encosta
pedregosa, estava agora reduzida a um minguado filete de água, torturando o mulherio que
amanhecia aglomerado ao pé da bica, na angustiante espera de encher o vasilhame!
Seca tirana aquela!
E a pesca?
Também falhara.
Se todo santo dia, logo cedo, os pescadores saiam mar afora em busca do básico alimento
para o seu sustento, retomavam alto dia, desanimados, com rebotalhos, trazendo aquilo que até há
pouco desprezavam na praia, à acirrada disputa dos famintos urubus.
-- "É – dizia Tonico Honorato, patriarca da Toninhas, por isso mesmo acatado e respeitado. – Isso aí é castigo, e pelos pecadores pagam os inocentes... Já não há mais respeito, não há mais
recato! Ninguém mais tem palavra! As igrejas vazias... Pra essa gente parece que Deus já não
existe e seus mandamentos não valem mais nada. .. Isso é castigo!"
Na Toninhas o que Tonico Honorato dizia era sagrado.
Se ele disse que aquela provação
era castigo, outra coisa não cabia senão rezar.
Assim, enquanto os crédulos rezavam, aguardando o milagre da chuva redentora, Júlio e
Camilo, dois inseparáveis rapazes do bairro, passaram a observar o procedimento estranho de
Marino, também amigo e companheiro, mas agora arredio, evitando-os com desculpas descabidas
e alegações inconcebíveis.
A princípio não deram importância, mas num dado momento, como que acordando,
ficaram intrigados com tal procedimento.
Ainda mais porque, se a pesca fracassava para todos, por que para Marino era diferente?
Ele não saía com os outros pela madrugada, mar afora, singrando as ondas.
Ficava em casa
entretendo-se em pequenos afazeres, ou indo á roça em desnecessária vistoria às ressequidas plantas
que teimavam vegetar nos aceiros.
A tarde, porém, viam-no caminhar pela costeira com petrechos de pesca, saltando de pedra
em pedra, indo ponta afora, para o costão do Itapecericuçu, onde se demorava até o fim do dia,
quando regressava com o balaio transbordando de peixes, bastante para o consumo da família e
com sobras até para mimosear generosamente a vizinhança carente.
Para Júlio e Camilo – pensaram – desvendava-se o mistério: o bom pesqueiro estava para
o lado do Itapecericuçu, portanto, bastaria ir lá.
Mas, não querendo melindrar o arredio amigo, para lá se dirigiram várias vezes, cautelosos,
a fim de não serem percebidos: umas, pela manhã, bem cedo, outras, alta noite, bem tarde.
Interessante, se lá permaneciam horas inteiras, o resultado era sempre o mesmo: apenas dois ou
três peixinhos de pouco mais de um palmo, daqueles sem condições de serem postejados...
-- Por quê? – indagavam-se
– Por que eles também bons pescadores, pescando no mesmo
ponto, não conseguiam resultado igual ao de seu esquivo amigo?
Convencidos de que um segredo maior havia e que era preciso desvendar, certa noite foram
mais cedo e ocultaram-se entre moitas de samambaias, aguardando a chegada de Marino.
Após longa espera, viram-no chegar e encaminhar-se ao declive de extensa laje, quase
plana, que descia em rampa suave aprofundando-se no mar.
Viram-no, depois de acomodar seus petrechos de pesca, descer vagarosamente o declive e
parar, absorto, olhando o mar, cujas ondas subiam mansamente, uma a uma, beijando-lhe os pés,
para voltarem depois, borbulhantes e alvacentas, rendilhadas de espumas.
Num dado momento um farfalhar mais forte agitou as águas próximas e dali emergiu uma
encantadora mulher, inteiramente nua, que, com desembaraço galgou a penedia, mal disfarçando
a total nudez com basta cabeleira entremeada de algas e de espumas!
Surpresos, viram Marino correr ao seu encontro, enlaçando-a nos braços, e ali
permanecerem em doce e prolongado idílio!
Que mulher era aquela, – indagavam-se – jovem, encantadoramente bela, que emergia das
águas, gesticulando como se fosse muda, e vinha entregar-se em arroubos de amor a uma criatura
humana? Não era por certo uma sereia, misto de peixe e de mulher que, com o enlevo de seus
cânticos, em noites enluaradas atraía traiçoeiramente incautos navegantes a pélagos profundos,
para a satisfação de voluptuosos desígnios de amor!
Não!
Aquela era mulher perfeita, de corpo escultural e beleza fascinante que ali
permaneceu por longo, tempo em arroubos de amor até que, vencendo a relutância de Marino, que
tentava retê-la junto a ele, desgarrou-se dele e, rápida, solerte, atirou-se ao mar, desaparecendo no
verde esmeraldino das águas.
Marino, então, pôs-se a pescar e em poucos momentos, como fazia todos os dias, regressou
com farta provisão de peixes de grande porte - garoupas, sargos e badejos.
Júlio e Camilo, atônitos com o que viram, voltaram outras vezes naquele pesqueiro, na
esperança de desvendar o mistério de que eram testemunhas.
Um dia a enamorada tardou a aparecer.
O crepúsculo já se aproximava quando, emergindo
airosa e bela, subiu apressadamente a inclinação da laje, para entregar-se aos braços de Marino.
Entretanto, ao contrário das outras vezes, demonstrava ansiedade em voltar ao mar e
fazendo entender o seu intento, encontrava oposição de seu amante, que a prendia nos braços sem
querer desgarrar-se dela.
Parecia resolvido a mantê-la para sempre junto dele.
Compreendendo a situação em que se achava, a jovem passou a debater-se
desesperadamente, querendo gritar, mas sem conseguir desprender a voz, nem emitir um gemido
sequer!
Na luta que se desenvolvia, Marino percebeu-lhe, na boca exageradamente aberta, a
garganta obstruída por enorme guelra vermelha, que nos peixes funciona como órgão respiratório.
Instintivamente, sem vacilar um instante, introduziu-lhe dois dedos na boca e num gesto
rápido, volteando-os, estirpou, esponjosa e sanguinolenta, a guelra que a impedia de falar, mas que
lhe dava condições de viver mergulhada nas águas do oceano.
Foi então que de seu esconderijo os dois rapazes ouviram a jovem falar e perceberam que,
trocando juras de amor, perfeito entendimento se estabeleceu entre eles: ela seria Ondina, filha das
ondas e, casada com Marino, formariam, os dois, o venturoso lar dos Marinhos.
Logo mais, protegidos pela sombra da noite que descia alcoviteiramente, o jovem par
encaminhou-se à Toninhas, à casinha nova coberta de sapé com beirais rendilhados de róseas
trepadeiras - que Marino havia construído há pouco - e lá, como em todas as histórias, a família
Marinho cresceu, multiplicou-se e viveu muitos e muitos anos, alegre e feliz.
Não posso afirmar, mas dizem que ainda há muito Marinho por aí...17
17 Extraído do livro "Ubatuba - Lendas & Outras Estórias" de Washington de Oliveira ("seo" Filhinho).
Texto retirado de artigos da internet sobre o folclore brasileiro, e de guias de viagens sobre o Brasil.
Luciana Celestino dos Santos
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