Com isso, Felipe passou a escrever mais uma lenda:
‘A Mina de Ouro’.
Começa assim:
Em vista dos misteriosos fatos contidos em algumas narrativas, ninguém mais se atrevia
aproximar-se do "Pico Encantado".
Muitos anos depois do desaparecimento de Frei Bartolomeu, o Capitão Manoel Fernandes
Corrêa instalou uma belíssima fazenda na Praia Dura.
Um dia, Alice, filha única do capitão Corrêa, saiu à caça nas proximidades.
Vendo-se só,
longe da vista severa do pai, admirando o cenário belíssimo que se deparava aos seus olhos virgens
de tanta maravilha, embrenhou-se incautamente pela mata.
Súbito, um medo vago e inexplicável percorreu aquele corpo misto de anjo e de mulher.
Quis voltar, mas compreendeu que estava perdida.
Correu, gritou, sentiu faltarem-lhe as forças, e os espinhos aduncos rasgaram-lhe as carnes
alabastrinas.
Um último esforço e caiu desfalecida.
Ao cair da noite, quando o sino melancólico da fazenda chamava do eito os escravos para
a ceia, era indescritível o desespero do Capitão Corrêa pelo desaparecimento da filha.
Mandou reunir a turba negra e, pela primeira vez suplicante e dócil, o impiedoso senhor
proclamou que daria liberdade imediata ao servo que lhe trouxesse, com a maior rapidez possível,
sua querida Alice.
Nenhum crédito deram os escravos àquelas palavras brotadas de um coração empedernido,
momentaneamente compungido com o desaparecimento da filha, mas a adoração que dedicavam
a Alice - angelical e bondosa criatura - fez daqueles homens exaustos, umas feras bravias.
Sem tomar alimento algum, cada qual partiu para um lado, sem esperança de recompensa,
mas querendo ser o primeiro a beijar a mão da "Nina Alice".
Pedro, um escravo robusto, forte, parou repentinamente na corrida em que ia.
Sua idéia embrutecida vagueou procurando recordar-se da companheira amada e de uma
filhinha de dois anos de idade, que o impiedoso capitão vendera, por castigo!
Quis esconder-se e voltar no dia seguinte "sem notícias de nina Alice", mas... - Alice! –
esse nome repelia a idéia de vingança que fervia em seu cérebro inculto, porém, compreensivo.
Odiava o pai mas adorava a filha.
A adoração venceu.
Enxugou as lágrimas que lhe corriam pelas faces retintas, e reencetou
a busca interrompida há pouco.
Cansado, parou.
Sentou-se um pouco para reanimar-se, mas foi logo atraído por um farfalhar de folhas secas
acompanhado de um gemido surdo e prolongado, partido de pouca distância.
Aproximando-se cautelosamente, percebeu estendido no chão um vulto alvo de mulher, mal
distinguido na escuridão da noite.
-- Nina Alice! – exclamou o preto com sua voz fanhosa e forte.
– Oh, salva-me! Tira-me daqui... Quem é? Meu pai? Luz... Quero luz...
Horas depois, nos robustos e retintos braços de Pedro, Alice subia os degraus da ‘Casa
Grande’.
Horrores da escravidão!
No dia seguinte, Pedro, exausto pelo esforço despendido durante a noite, gemia sob açoites,
no tronco, porque não podia trabalhar.
Alice, sabendo o que se passava com o seu salvador, exigiu do pai o que na véspera
prometera espontaneamente.
Liberto, Pedro beijou as mãos de "Nina Santa" e partiu sem destino, para os lados do
Corcovado, e lá instalou sua choça, ao lado de uma cascatinha murmurante, próxima, bem próxima
da escarpa misteriosa.
Corria de boca em boca a aventura de "Pai Pedro".
O preto vinha sempre a Ubatuba com pequenos canudos de bambu cheios de grânulos
auríferos, que trocava por fumo, cachaça e alguns gêneros, com os quais assegurava sua
subsistência.
Essa notícia foi bater também na fazenda do capitão Corrêa, que duvidava do que lhe
diziam, mas, um dia, ele mesmo viu na vila as negociações que eram propaladas.
Cheio de inveja e cobiça, pensou logo em se apoderar do tesouro do preto.
Certa noite, em
companhia de um grupo armado, foi à choça de Pedro, capturando seu ex-escravo e levando-o para
a sua fazenda.
Ali chegando, sem mais delonga, Pedro foi premido a contar como descobrira aquele
fabuloso tesouro.
-- Sinhô, Pedro num pode cuntá, pruque...
Uma violenta chicotada estalou nas faces já rugosas do mártir, cortando-lhe a frase.
Depois, novas torturas, imprecações, terríveis ameaças, até que Pedro resolveu iniciar a
narrativa, na linguagem carregada e fanhosa, toda peculiar aos pretos africanos.
Disse que foi morar no sítio solitário onde o encontraram, bendizendo sempre o nome de
Alice, até que um dia, na vila, veio a saber da morte da moça, sua libertadora.
De volta à choça, um profundo pesar oprimia-o todo.
Pedro parou para disfarçar um soluço e enxugar uma lágrima, ao que o capitão esbravejou:
-- Continua, bandido!
E Pedro continuava, trêmulo, acovardado.
À noite não conseguira dormir, parecendo-lhe ouvir ao longe a voz cristalina da moça, numa
canção de amor.
De repente a porta do casebre tremeu e escancarou-se, penetrando por ela um
vulto diáfano de mulher. Era Alice!
Ele a reconheceu.
Como que agarrado por mãos invisíveis, não se pôde mover no lugar em que se achava,
mas ouviu perfeitamente a visão dizer:
-- Pedro, tu foste um dia o meu salvador. Dei-te a liberdade, mas sei que sofres, neste exílio
onde te arrojou a impiedade de meu pai. Não te assustes e ouve-me. Não muito longe daqui, oculto
nas entranhas da terra, existe uma mina de ouro. Ela será tua sob a única condição de nunca
revelares a outrem esse lugar cobiçado. Se isso tentares, a vingança do gênio protetor da mina cairá
sobre tua cabeça, ouviste? Cuidado, pois, e segue meus passos.
-- Negro maldito! – gritou o capitão – não retardes a revelação. Onde está o tesouro?
-- Sinhô... tá lá pra banda do...
E o surdo ruído do baque de um corpo ecoou na sala da ‘Casa Grande’.
Pedro caíra morto, fulminado, antes de revelar o sítio misterioso de tão cobiçado tesouro,
que até hoje jaz nas proximidades do Corcovado.
Pedro bem dizia:
-- Negro num pode cuntá...13
13 Extraído do livro "Ubatuba - Lendas & Outras Estórias" de Washington de Oliveira ("seo" Filhinho).
Texto retirado de artigos da internet sobre o folclore brasileiro, e de guias de viagens sobre o Brasil.
Luciana Celestino dos Santos
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