Afinal, sabia caçar e pescar, montar ocas e palhoças, viver ao ar livre e sobreviver em uma floresta.
Mas o que sabia fazer diante do choro de uma mulher?
Ao ver o sofrimento da moça, e percebendo que nada poderia fazer para a dor desaparecer, sentiu-se fraco e vencido.
Compungido com a tristeza da moça, Abaré disse-lhe para que se acalmasse, que um dia todo
aquele sofrimento iria passar.
Disse-lhe que ainda seria feliz, apesar de tudo.
Como a moça não parava de chorar, o moço perguntou-lhe o que poderia fazer para diminuir sua
tristeza.
Carolina estava tão triste que não conseguia dizer nada, só chorar.
Quando finalmente se acalmou um pouco, repetiu as palavras do dia da invasão, perguntando-se
a todo o momento o que seria de sua vida.
Abaré então aproximou-se.
Disse-lhe que seria capaz de oferecer qualquer coisa a ela, se isto diminuísse sua tristeza.
Perguntou-lhe se poderia oferecer a luz do sol, as estrelas, o perfume das flores.
Carolina, ao ouvir as ternas palavras do índio, ficou comovida.
Poucas vezes fora tratada com tanta delicadeza.
E assim, cessaram as lágrimas.
A moça soluçando, procurou enxugar o rosto.
O índio, ao perceber isto, tocou no rosto da jovem.
Carolina se assustou.
Afastou-se.
Abaré então, percebendo que se precipitara, desculpou-se.
Disse que não queria assustá-la, mas somente fazer com que a tristeza fosse embora.
Carolina respondeu-lhe que não estava assustada.
Nisto o índio levantou-se.
Mencionou que iria caçar.
Carolina fez menção de acompanhá-lo, mas ao sentir o pé, permaneceu na palhoça.
Ao realizar o movimento brusco, Abaré verificou se tudo estava bem.
Disse-lhe que não poderiam prosseguir a jornada enquanto o pé não estivesse bom.
Argumentou que procuraria ervas na mata para a troca do curativo.
Carolina tentou protestar, mas em vão.
Quando fez menção de questionar a recomendação do índio, o mesmo já havia se afastado.
O índio regressou com ervas e preparou um unguento o qual passou no pé da siá branca, como
costumava chamá-la.
Mais tarde, voltou com uma caça a qual preparou e serviu a moça.
Abaré estava diferente.
Olhava a moça com ternura.
Carolina tentava entender o olhar do selvagem que a havia salvo da morte, mas não conseguia.
A todo o momento se perguntava, por que fizera aquilo?
Por que se comprometera daquela forma,
arriscando sua própria vida, para ajudar alguém que nem sequer conhecia?
A jovem nutria um sentimento de revolta e de admiração pelo estranho.
Estranho, que com o passar dos dias, passou a ser presença constante em sua vida.
Nos dias em que não pode auxiliá-lo nas tarefas domésticas, sentiu falta de sua presença.
Ás vezes se percebia distraída, olhando para o moço.
Quando se dava conta disto, procurava disfarçar, mirando os olhos em outra direção.
Abaré ensinou-lhe sobre o canto dos pássaros, o nome das plantas, das ervas.
Conforme a moça melhorou, prosseguiram a caminhada.
Ao avistarem o riacho, Carolina encantou-se.
Abaré percebendo o desejo da moça banhar-se, disse-lhe que poderia entrar na água.
Prometeu se afastar.
E assim o fez.
Carolina gostava dos modos respeitosos do índio.
Cautelosa, olhando para os lados, tirou o que restava de seu vestido branco e entrou com sua
roupa de baixo no rio.
Abaré de longe observou a moça brincando na água, deitada de costas.
Olhava para ela com ar contemplativo.
Nisto, depois de algum tempo nas águas, a moça se vestiu.
O índio então, entrou nas águas e nadou.
Parecia um ser das águas.
Mais tarde, Carolina ofereceu-se para auxiliá-lo na caça.
Abaré tentou protestar, mas a moça dizendo que precisava ajudar, argumentou que só precisava
de sua orientação.
E assim, partiram juntos para caçar.
Como era de se imaginar, a moça por diversas vezes assustou a caça.
Desculpava-se a todo o momento com Abaré, que com toda a paciência do mundo, dizia que não
havia problema.
A certa altura, a moça apontou para um bicho.
Abaré munido de seu arco, abateu o animal.
Agradecido, elogiou a pontaria da moça.
Carolina agradeceu.
Almoçaram.
Conversaram sem a tensão dos primeiros dias.
Riram das peripécias de Carolina.
Foi então que finalmente o índio apresentou-se.
Mencionou que seu nome indígena era Abaré.
Nome pelo qual gostava de ser chamado.
Carolina então apresentou-se também.
O índio ao ouvir o nome, respondeu-lhe que era um nome sonoro como o canto de um pássaro.
A sinhá branca riu da comparação.
Finalmente os muros cederam, e a convivência tornou-se mais leve.
Caçaram e pescaram juntos.
Abaré ensinou-lhe a montar e desmontar palhoças, a imitar o canto dos pássaros.
Nadaram em rios e riachos.
A certa altura, aproximando-se de uma acampamento abandonado, temeram tratar-se de pessoas
em seu encalço.
Esconderam-se na mata.
Porém, com o passar dos dias, ao perceberem que tudo estava abandonado, resolveram aproximar-se.
Foi quando o índio descobriu objetos que poderiam servir a moça.
Roupas, objetos de toucador, que poderiam ser adaptados para seu uso.
Com efeito, das peças de roupa encontradas, Carolina desmanchou-as e fez vestidos, camisolas.
Havia livros no lugar.
Abaré pegou um deles, e começou a ler em voz alta para a moça.
Carolina, ao constatar que de fato o índio sabia ler, pediu-lhe para que continuasse a ler a história.
Encantou-se com a habilidade do nativo.
Mais tarde, ao término da leitura, a moça confidenciou que gostaria de ter aprendido a ler.
Abaré então, comprometeu-se a ensiná-la se quisesse.
Carolina aceitou logo a proposta.
Rindo, achou graça no fato de que quem a ensinaria a ler, era considerado um selvagem.
Um selvagem de modos civilizados.
Pensava.
E o índio ensinou-lhe os rudimentos da escrita.
Com o tempo, começou a ler e a escrever sobre o que lhe havia acontecido, a perda dos parentes,
a vida ao lado de Abaré.
Por meses caminharam pela mata.
Por meses viveram em palhoças, cabanas, caçaram, pescaram.
Abaré ensinou-lhe a tecer redes.
Carolina passou a moldar peças no barro.
Pois precisavam de moringas.
A certa altura, Carolina estava tão adaptada a vida na floresta, que pensou no que faria quando
chegasse a uma cidadela.
Preocupada pensava no que seria de sua vida, quando Abaré resolvesse partir em busca de novas
aventuras.
Com o tempo porém, a convivência tornou-se mais próxima.
Enquanto nadavam no rio, brincavam de jogar água um no outro.
Carolina em dado momento se desequilibrou e afundou.
Abaré, ao perceber que a moça havia sumido, mergulhou a sua procura.
Ao encontrar a moça, segurou-a na cintura, puxando-a para cima.
Respirando com dificuldade, a moça abriu os olhos.
Abaré perguntou-lhe se estava bem.
A moça, procurando recuperar o fôlego, respondeu-lhe que sim.
O nativo então, recomendou-lhe que não ficasse tão próxima das pedras pois elas eram
escorregadias.
Carolina disse que havia se desequilibrado.
Abaré perguntou então se havia se machucado.
Nisto, passou a examiná-la.
Muito embora Carolina dissesse que estava tudo bem, o índio examinou seus braços.
Tudo a procura de um possível ferimento que a moça estivesse tentando esconder.
Sob protestos da moça, o índio insistiu para ver seu pé.
Puxou-a para fora do rio.
Carolina porém, dizia que estava com calor, e preferia se refrescar.
Com isto, mergulhou no rio.
Abaré preocupado, mergulhou logo atrás.
Nisto Carolina emergiu.
Ficou brincando de jogar água.
Abaré também voltou à tona e ficou observando a alegria da jovem.
Vê-la feliz, lhe fazia feliz.
Muitas vezes, ao lembrar das circunstâncias em que se conheceram, o moço ficava preocupado,
pensando se não havia alguém em algum lugar esperando por ela.
Carolina raramente falava da família e quando o fazia, lembrava-se quase sempre com tristeza dos
momentos vividos ao lado dos pais e dos irmãos.
Possuía duas irmãs menores e um irmão, um bebê de nome Lúcio.
Carolina dizia-lhe que adorava carregar o irmão nos braços.
Falava que este divertimento lhe fazia
ter a sensação de que estava brincando com um boneco.
Lúcio, era uma criança tranquila que pouco chorava.
Adorava caminhar ao lado da irmã.
Carolina lhe dava comida na boca, e muitas vezes fora ela quem preparou as refeições do irmão.
Jurema chegava a dizer que Carolina, era mais mãe de Lúcio do que ela própria.
A moça gostava de se recordar que o menino gostava de se balançar, em uma rede instalada no
alpendre da casa grande.
Carolina recordou-se dos momentos em que passou deitada na rede, apreciando a paisagem da
estância.
O sol se despedindo da tarde e a noite chegando.
O céu rebrilhando repleto de estrelas.
Os vagalumes piscando.
Lembrou-se dos filhos das escravas aprisionando os insetos em formas de vidro, para que
funcionassem como tochas.
Na fazenda havia várias delas.
Tochas a iluminarem os caminhos.
Lembrava-se das brincadeiras de roda com os filhos de escravos.
Sua mãe, Dona Jurema, não gostava muito de ver as filhas brincando com os filhos dos escravos.
Carolina no entanto, dizia que as brincadeiras deles eram mais divertidas que as de suas irmãs.
Recordou-se do dia em que encontrou um livro jogado e ao abri-lo, foi surpreendida por sua mãe,
que a repreendeu pelo gesto.
Ao ver a filha tentando ler as palavras contidas no papel, disse-lhe que não havia necessidade de
aprender a ler.
Falava que suas necessidades eram o trabalho doméstico, cuidar da cozinha, da
casa, lavar, cozinhar, costurar, cerzir, bordar.
Não havia necessidade de se saber mais nada.
Carolina, ao ouvir isto, tentou dizer que gostaria de aprender a ler, mas foi interrompida por sua
mãe, que lhe disse que tinha que gostar era de cuidar de uma boa casa.
Isto sim era predicado para
uma mulher e não estas bobagens de leitura.
Dizia que uma mulher não podia ser frouxa.
Nisto tomou o livro da filha, e recomendou-lhe que nunca mais mexesse com o que não era seu.
Abaré, sempre que ouvia estas histórias, dizia que iria ensinar-lhe a ler.
E de fato ensinou.
Quando a moça finalmente aprendeu os rudimentos da leitura, passou a ler trechos de livros que
haviam encontrado, para Abaré.
O nativo sempre elogiava a leitura da moça, dizendo-lhe que a cada dia estava melhor.
Mais tarde o moço entregou a ela um caderno, e ela passou a escrever um pouco sobre o seu dia a
dia.
Às vezes, a jovem mostrava trechos dos textos escritos para o índio.
Abaré, encantado, sempre elogiava as palavras da moça.
Viviam bem, viviam até felizes, não fosse a sombra rondando os pensamentos do índio.
Carolina prosseguia com seu banho de rio.
Ao perceber Abaré estático, chamou-o.
Dizia para se banhar, pois estava muito quente.
Nisto passou a jogar água no homem.
Abaré, desperto, passou novamente a jogar água na moça, que procurou fugir.
A certa altura, ao alcançar uma pedra lisa, novamente escorregou, sendo amparada pelo índio.
Abaré então, movido pelo impulso beijou-a.
Carolina surpresa com o gesto, tentou se afastar.
Abaré então, soltou-a.
A moça não sabia como agir.
O nativo também não.
Assim, Carolina optou por sair do rio.
As pedras lisas, dificultavam a caminhada.
Abaré então a amparou.
Carolina agradeceu a gentileza.
Desta feita, o índio a auxiliou.
Ao saírem do rio, a moça se sentou em uma pedra.
Dizia que o lugar era lindo, e que poderia tranquilamente viver ali.
Abaré ao ouvir isto, sorriu feliz.
Nisto um vento frio soprou.
Abaré, percebendo que a moça tremia de frio, recomendou que voltassem para a palhoça.
Lá ela poderia vestir uma roupa seca e se proteger do vento frio.
O índio então indicou que a moça fosse a frente.
Ele seguia atrás.
Carolina então vestiu-se.
Enquanto isto, o índio colhia frutas.
Comeram.
Carolina começou a rir.
Não conseguia parar.
Abaré intrigado, perguntou por que ria tanto.
A moça respondeu-lhe que era muito atrapalhada.
Num mesmo dia, escorregara várias vezes no rio.
Abaré retrucou dizendo que precisava ver se não havia se machucado de verdade.
Carolina respondeu-lhe que não.
Mesmo assim, o índio ficou a observar os pés da moça.
Ela então respondeu que não havia torcido o pé.
Abaré, bem próximo da moça, ficou a esperar uma nova negativa da moça.
- Não? - foi o que o índio perguntou.
Nisto, aproximou-se da moça, e a beijou.
Desta vez, Carolina não se afastou.
Beijaram-se e ficaram se olhando com curiosidade.
Ao se recolherem a palhoça, o moço apoiou a cabeça da jovem em seu tronco.
Aflito, perguntou-lhe o que faria quando regressasse a cidade.
A moça respondeu que não tinha mais ninguém no mundo, visto que todos os seus parentes havia
sido mortos.
Diante disto, argumentou que não sabia o que fazer.
Pensativa, em dado momento chegou a pensar na possibilidade de voltar a seu antigo lar, para se
certificar de que nada havia restado.
Carolina chegou a sugerir voltarem.
Abaré enciumado, afastou a possibilidade.
Argumentou que eles poderiam ainda estar sendo procurados, e que o retorno poderia ser
perigoso.
A moça ao perceber a resistência do nativo, retrucou dizendo que eles não deviam estar mais lá.
Que já havia muito tempo que as coisas aconteceram.
Mencionou que precisava ter certeza de que todos estavam mortos.
Aborrecido, o índio perguntou-lhe se estava procurando alguém em especial.
Carolina mencionou então que estava prometida a um jovem de nome Arnaldo.
Sem pensar no
que dizia, chegou a falar que ele poderia ajudá-la.
- Ajudá-la? - perguntou o índio, de cenho franzido.
- É... Ele pode nos ajudar...
Abaré questionou a ajuda.
Ríspido, respondeu que não precisava de nada.
Carolina não entendeu a mudança de humor do índio.
Irritado, Abaré, argumentou que provavelmente ele iria exigir o cumprimento do compromisso,
e que assim, não iriam mais se ver.
Carolina respondeu que provavelmente não.
Haja vista que para todos os efeitos, todos haviam morrido.
Abaré porém, não se convencia.
Enciumado, dizia que não iriam voltar para aquele lugar.
Carolina insistiu.
Foi o bastante para brigarem.
Abaré passou a não dirigir a palavra a moça.
Apenas respondia aos cumprimentos de bom dia.
Carolina por sua vez, ameaçou ir sozinha em busca de notícias.
Abaré não se abalou.
Contudo, ao perceber que a jovem estava decida a ir, argumentou que ela não conhecia os
caminhos e que certamente iria se perder.
Carolina argumentou que preferia correr o risco de se perder, a ficar sem saber o que havia
acontecido.
Chorando, a moça dizia que não conseguia conviver com isto.
Abaré ao perceber isto, abraçou a moça.
Prometeu que assim que pudessem a levaria de volta a estância.
Com isto, voltaram a se entender.
Dividiam o mesmo teto, e com o tempo, dividindo os afazeres, Carolina o auxiliava na caça e na
pesca.
Nadavam no rio.
Com o tempo a moça passou a cantar.
Abaré imitava o som dos pássaros.
E o tempo seguia calmo e tranquilo.
Luciana Celestino dos Santos
É permitida a reprodução, desde que citada a fonte.
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