Nisto, Carolina mostrou-lhe então fotos de sua filha ainda moça, além de fotos de Vandré e
Venâncio jovens.
Reunindo a família, resolveu contar parte da história da família.
Dizia que era uma bonita história, repleta de revezes, e relatos tristes e alguns momentos felizes.
Contava que tudo tinha origem em uma lenda muito antiga.
Tempos de imprecações e maldições, onde os maldizeres malignos marcavam para sempre, e de
forma indelével, muitas gerações.
E nesse tempo muito distante, onde tropeiros percorriam longínquas paragens acompanhados de
sua comitiva de peões e gado.
Onde bravios indômitos enfrentavam toda a sorte de perigos e
desafios...Que a história começava.
Mencionou a aridez dos caminhos de barro molhado, lodaçal, onde os tropeiros pernoitavam sob
a luz do luar, tendo como abrigo um teto de estrelas.
A sentirem o orvalho da madrugada em seus rostos e cobrindo os seus corpos cansados, com sua
capa de couro.
O vento frio, era cortante.
A hospedagem nos celeiros, o compartilhamento da cuia com chimarrão entre os companheiros
de jornada e de infortúnio, era uma das poucas horas em que podiam ficar despreocupados.
Mas ninguém se queixava da dura lida.
Dos áridos caminhos irregulares, dos ataques dos índios a espreita, os caminhos de pedra,
pedregulhos.
O trote dos cavalos, das mulas e a marcha da rês, sob ribeiros de água.
O cuidado com os riachos que circundavam os caminhos.
A chuva durante a marcha.
As andanças por entre matas fechadas, que eram cortadas com facões para que se abrisse caminho
para as próximas tropeadas.
A parada para descansar e comer um pouco de churrasco, preparando a fogueira no chão.
Um arroz com a mistura das carnes que levavam consigo.
A cuia com chimarrão, e o seu preparo.
Aquecendo a água no fogo, a escolha das ervas.
A conversa animada, a cantoria.
Alguns até dançavam para esquecer um pouco a dura lida.
Mas não se queixavam.
Eram felizes, em que pesem as dificuldades daquele tempo, a falta de recursos, e os perigos da
jornada.
Bravos, enfrentaram índios, matando-os, mas também sendo mortos por eles.
Animados, gostavam de relembrarem as antigas batalhas sofridas, e os grandes conflitos de sua
amada terra.
Andavam de botas, lenços vermelhos, chapéus, bombachas.
A maior alegria desses homens, era encontrar um china bonita para bailar a noite inteira.
Tempos de velhos casarões, onde grandes famílias o habitavam.
Ladeando a construção, plantações, criações.
Moças a tirar água do poço.
Moços a alimentarem os animais das propriedades.
Sempre precavidos contra eventuais invasões de forasteiros.
Lindas jovens em sua azafama diária.
Tempos de trabalho duro, a tirarem água do poço para os banhos da família, para os preparos dos
alimentos.
Após, seguiam para os riachos para levarem as roupas.
Ajudavam as mães,tias e avós a limparem suas casas.
Casavam-se sempre muito cedo.
Convenção daqueles tempos.
Nestas paragens, certa vez houve uma revolta, com tantas outras que aconteciam sem explicação,
onde homens e índios invadiram algumas propriedades.
Ocasião em que saquearam as propriedades levando animais, e objetos de valor dos moradores.
Como os residentes resistissem, quase todos foram mortos.
Com efeito, o que não puderam levar, atearam fogo, inclusive nas plantações.
Uma moça de nome Carolina, auxiliada por um dos índios, que fazia parte do grupo, conseguiu
escapar.
Desesperada, ao ver o que acontecia ao seu redor, lutou contra o índio.
Dizia que preferia morrer ao lado dos seus, a ter que suportar tamanha desonra.
Mas o nativo não a ouvia, e determinado a ajudá-la, arrastou-a para longe dali, afim de que ambos
se esconderem no meio das matas.
Tratava-se de um desertor, o qual se fosse pego, certamente seria morto.
Carolina por seu turno se debatia, tentando regressar a propriedade destruída.
Até que a certa altura da luta, o índio pediu suavemente para que ela se acalmasse.
Dizia insistentemente que não havia nada a ser feito, e que se queriam ter alguma chance de
escaparem com vida, deveriam desaparecer dali.
Enquanto isto, o homem segurava a moça pelas mãos, puxando-a.
A certa altura, cansada de chorar, a moça pediu bruscamente para que o índio a soltasse.
Abaré, temendo que ao soltá-la, a moça corresse de volta para a direção da casa incendiada, propôs
um acordo.
Argumentou que só a soltaria se prometesse não agir sem pensar.
Dizia que se fossem pegos, ambos poderiam ser mortos.
Carolina meneou a cabeça, concordando com os termos do indígena.
Nisto, o índio soltou-lhe as mãos.
A moça então, sentou-se no chão, e começou a olhar o entorno, sem saber o que fazer.
Estava sozinha, sem ninguém que pudesse ampará-la, ao lado de um estranho, considerado por ela
um selvagem, mas que havia salvado sua vida.
Em dado momento, ao se dar conta de que ele estava ao lado dos invasores, encheu-se de ira e
aproximando-se dele, começou a golpeá-lo, dizendo ser ele um assassino.
O jovem índio não revidou.
Entendia a revolta da jovem.
Também tinha consciência de sua força, e de que poderia machucá-la se quisesse.
Abaré então, esperou a moça se acalmar.
Carolina, após bater no índio, sentou-se novamente no chão e começou a chorar.
Pensava no noivo.
Por onde andaria.
O que faria para contar-lhe o ocorrido?
Aflita, dizia estar perdida.
O índio, ao perceber a confusão da moça, aproximou-se e disse-lhe:
- Eu entender sua revolta. Eu estava lutando ao lado daqueles homens. Lutei muitas lutas ao seu
lado. Mas eu perceber que a intenção deles era matar todos os habitavam a estância... estaquei...
não podia admitir isto. Juro que nunca haviam feito isto antes.
A moça cheia de ira, argumentou que nada justificava tamanha covardia.
O jovem índio, entristecido, dizia não ser um assassino.
Argumentou que estava ao lado deles, por que eles o acolheram.
Indagado pela moça sobre o fato de se encontrar ao lado de bandoleiros, o índio disse que cedo
perdera os pais em uma invasão que os brancos fizeram a sua tribo.
Disse que a única que coisa que restou de herança de seus pais foi seu nome e sua cultura.
Já a sua tribo.
Foi dizimada.
Carolina ouvia o índio dizer que tentou por diversas vezes localizar remanescentes de sua tribo
em outras paragens, mas não obteve êxito.
Carolina, penalizada, disse que nem por isso deveria desistir de procurá-los.
O índio respondeu-lhe que estava disposto a continuar a procura, se houvesse alguém, para
acompanhá-lo em suas buscas.
Dizia estar cansado de ser sozinho, e que não seguiria mais ao lado de bandoleiros.
Mencionou que por ser sozinho no mundo, foi levado a um grupamento jesuíta, onde aprendeu a
ler e a escrever em português.
Admirada, Carolina perguntou se sabia ler.
O índio assentiu com a cabeça.
A moça pensava em que isto poderia ser útil naquele momento, e como fariam para sobreviver na
mata.
Aflita, ao perceber que o índio poderia estar sendo seguido por seus antigos companheiros,
levantou-se num átimo e disse ao nativo que precisavam sair dali.
Abaré concordou, e segurando a moça pelas mãos, disse que precisavam apertar o passo, ou
poderiam ser descobertos.
Com isto, caminharam por longas horas.
Luciana Celestino dos Santos
É permitida a reprodução, desde que citada a fonte.
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