Poesias

sábado, 22 de fevereiro de 2020

VALONGO - CAPÍTULO 2 - VERSÃO ALTERNATIVA

Nisto, Carolina mostrou-lhe então fotos de sua filha ainda moça, além de fotos de Vandré e Venâncio jovens.
Reunindo a família, resolveu contar parte da história da família.
Dizia que era uma bonita história, repleta de revezes, relatos tristes e momentos felizes.
Tem origem em uma lenda muito antiga.
Tempos de imprecações e maldições, onde os maldizeres malignos marcavam para sempre de forma indelével, muitas gerações.
E nesse tempo muito distante, onde tropeiros percorriam longínquas paragens acompanhados de sua comitiva de peões e gado.
Bravios, indômitos, enfrentavam toda a sorte de perigos e desafios.
A aridez dos caminhos de barro molhado, lodaçal.
Pernoitavam sob a luz do luar, tendo como abrigo um teto de estrelas.
A sentirem o orvalho da madrugada em seus rostos, e cobrindo seus corpos, com sua capa de couro.
O vento frio cortante.
A hospedagem nos celeiros, o compartilhamento da cuia com chimarrão entre os companheiros de jornada e de infortúnio.
Mas ninguém se queixava da dura lida.
Dos áridos caminhos irregulares, dos ataques dos índios a espreita, caminhos de pedra, pedregulhos.
O trote dos cavalos, das mulas e a marcha da rês, sob ribeiros de água.
O cuidado com os riachos que circundavam os caminhos.
A chuva durante a marcha.
As andanças por entre matas fechadas que eram cortadas com facões para que se abrisse caminho para as próximas tropeadas.
A parada para descansar e comer um pouco de churrasco, preparando a fogueira no chão.
Um arroz com a mistura das carnes que levavam consigo.
A cuia com chimarrão, e o seu preparo.
Aquecendo a água no fogo, a escolha das ervas.
A conversa animada, a cantoria.
Alguns até dançavam para esquecer um pouco a dura lida.
Mas não se queixavam.
Eram felizes, em que pese as dificuldades daquele tempo, a falta de recursos, e os perigos da jornada.
Bravos, enfrentaram índios, matando-os, mas também sendo mortos por eles.
Animados, gostavam de relembrarem as antigas batalhas sofridas, e os grandes conflitos de sua amada terra.
Andavam de botas, lenços vermelhos, chapéus, bombachas.
A maior alegria desses homens, era encontrar um china bonita para bailar a noite inteira.
Tempos de velhos casarões, onde grandes famílias o habitavam.
Ladeando a construção, plantações, criações.
Moças a tirar água do poço.
Moços a alimentarem os animais das propriedades.
Sempre precavidos contra eventuais invasões de forasteiros.
Lindas jovens em sua azafama diária.
Tempos de trabalho duro, a tirarem água do poço para os banhos da família, para o preparos dos alimentos.
Após, seguiam para os riachos para lavarem as roupas.
Ajudavam as mães,tias e avós a limparem suas casas.
Casavam-se sempre muito cedo.
Convenção daqueles tempos.
Nestas paragens, certa vez houve uma revolta, como tantas outras que aconteciam, sem explicação, onde homens e índios invadiram algumas propriedades.
Ocasião em que saquearam as propriedades levando animais, e objetos de valor dos moradores.
Como os residentes resistissem, quase todos foram mortos.
Com efeito, o que não puderam levar, atearam fogo, inclusive nas plantações.
Uma moça de nome Carolina, auxiliada por um dos índios que fazia parte do grupo, conseguiu escapar.
Desesperada, ao ver o que acontecia ao seu redor, lutou contra o índio, dizia que preferia morrer ao lado dos seus, a ter que suportar tamanha desonra.
Mas o nativo não a ouvia e determinado a ajudá-la, ambos esconderam-se no meio das matas.
Tratava-se de um desertor, o qual se fosse pego, certamente seria morto.
Carolina por seu turno, se debatia, tentando regressar a propriedade destruída.
Até que a certa altura da luta, o índio pediu gentilmente para que ela se acalmasse.
Dizia insistentemente que não havia mais nada a ser feito, e que se queriam ter alguma chance de escaparem com vida, deveriam desaparecer dali.
Enquanto isto, o homem segurava a moça pelas mãos, puxando-a.
A certa altura, cansada de chorar, a moça pediu bruscamente para que o índio a soltasse.
Abaré, temendo que ao soltá-la, a moça corresse de volta para a direção da casa incendiada, propôs um acordo.
Argumentou que só a soltaria se prometesse não agir sem pensar.
Dizia que se fossem pegos, ambos poderiam ser mortos.
Carolina meneou a cabeça, concordando com os termos do indígena.
Nisto, o índio soltou-lhe as mãos.
A moça então, sentou-se no chão, e começou a olhar o entorno, sem saber o que fazer.
Estava sozinha, sem ninguém que pudesse ampará-la, ao lado de um estranho, considerado por ela um selvagem, mas que havia salvado sua vida.
Em dado momento, ao se dar conta de que ele estava ao lado dos invasores, encheu-se de ira e aproximando-se dele, começou a golpeá-lo, dizendo ser ele um assassino.
O jovem índio não revidou.
Entendia a revolta da jovem.
Também tinha consciência de sua força, e de que poderia machucá-la, se quisesse.
Abaré esperou a moça se acalmar.
Carolina, após bater no índio, sentou-se novamente no chão e começou a chorar.
Pensava no noivo.
Por onde andaria.
O que faria para contar-lhe o ocorrido?
Aflita, dizia estar perdida.
O índio, ao perceber a confusão da moça, aproximou-se e disse-lhe:
- Eu entender sua revolta. Eu estava lutando ao lado daqueles homens. Lutei muitas lutas ao seu lado. Mas eu perceber que a intenção deles era matar todos os habitavam a estância... estaquei... não podia admitir isto. Juro que nunca haviam feito isto antes.
A moça cheia de ira, argumentou que nada justificava tamanha covardia.
O jovem índio, entristecido, dizia não ser um assassino.
Argumentava que estava ao lado deles, por que eles o acolheram.
Indagado pela moça sobre o fato de se encontrar ao lado de bandoleiros, o índio disse que cedo perdera os pais em uma invasão que os brancos fizeram a sua tribo.
Disse que a única coisa que restou de herança de seus pais, foi seu nome e sua cultura.
Já a sua tribo foi dizimada.
Carolina ouvia o índio dizer que tentou por diversas vezes localizar remanescentes de sua tribo em outras paragens, mas não obteve êxito.
Penalizada, disse que nem por isso deveria desistir de procurá-los.
O índio respondeu-lhe que estava disposto a continuar a procura, se houvesse alguém para acompanhá-lo em suas buscas.
Dizia estar cansado de ser sozinho, e que não seguiria seguir mais ao lado de bandoleiros.
Mencionou que ao se ver sozinho no mundo, foi levado a um grupamento jesuíta, onde aprendeu a ler e a escrever em português.
Admirada, Carolina perguntou-lhe se sabia ler.
O índio assentiu com a cabeça.
A moça pensava em que isto poderia ser útil naquele momento, e como fariam para sobreviver na mata.
Aflita, ao perceber que o índio poderia estar sendo seguido, por seus antigos companheiros, levantou-se num átimo e disse ao nativo que precisavam sair dali.
Abaré concordou e segurando a moça pelas mãos, disse que precisavam apertar o passo ou poderiam ser descobertos.
Com isto, caminharam por longas horas.
Quando o sol começou a se por, o índio mencionou que naquele momento, se ainda estavam sendo procurados, não havia meio de serem encontrados.
Argumentou que poderiam descansar, já que não seria possível seguir caminho.
Com isto, pediu a moça que procurasse gravetos e madeira por perto.
Recomendou-lhe que tivesse cuidado com as cobras e os animais peçonhentos.
Abaré disse-lhe que seguiria no sentido oposto e que faria o mesmo.
 Por fim, ao ver a moça se afastando, o nativo recomendou-lhe que não fosse muito longe para que não se perdesse.
Argumentou que as matas eram traiçoeiras para quem não as conhecia.
Catarina concordou e se afastou.
Diligente, coletou toda a madeira que encontrou pelo caminho e levou para o índio.
Abaré também trouxe bastante madeira.
Foram várias idas e vindas buscando e trazendo material.
Por fim, o moço preparou uma fogueira.
Montou uma pequena estrutura que cobriu de folhas para que a moça pudesse abrigarse do frio.
Ao ver a palhoça montada, disse que estava tudo bom, e ofereceu a moradia para a moça.
Carolina perguntou-lhe onde dormiria, e o índio respondeu-lhe que dormiria sob o chão, embaixo de um céu coberto de estrelas.
Nisto, o nativo pediu licença a moça.
Disse que iria buscar alimentos, já que ela devia estar com fome.
O índio voltou com várias frutas, as quais ofereceu a moça.
Carolina alimentou-se e o índio, então, lhe disse:
- Desculpe pela refeição. Amanhã prometo caçar e oferecer-lhe algo com mais sustância.
A moça agradeceu.
Nisto, dizendo-se cansada, dirigiu-se a cabana onde procurou se acomodar da melhor forma possível e adormeceu.
Exausta só acordou com a luz do sol batendo em sua palhoça.
Com efeito, ao despertar, percebeu que o índio não estava por perto.
Fato este que a deixou preocupada.
Caminhando sem fazer barulho, ficou a observar o lugar.
Temia que os homens que invadiram suas terras, estivessem em seu encalço.
Assustada, ao ouvir passos, sentiu o coração disparar.
Aflita, tentou encontrar um lugar para se esconder.
Quando Abaré apareceu repentinamente em sua frente, a moça espantou-se.
O nativo, percebendo isto, disse-lhe que não precisava ter medo, pois havia verificado o lugar e aparentemente ninguém os havia seguido.
Carolina perguntou baixinho, o que seria de sua vida.
O índio então, segurando uma de suas mãos, disse-lhe que iria cuidar dela.
Argumentou que assim como ele, ela também estava sozinha no mundo.
Carolina ao ouvir isto, comentou que não poderia ficar ao lado de alguém que havia invadido as terras de sua família, e trucidado seus parentes.
Abaré respondeu-lhe que não havia matado ninguém de sua família, e que sempre que matou alguém o fez para se defender.
Argumentou que não concordava com os métodos dos brancos, mas que se encontrando ao lado deles, não poderia questioná-los.
Nisto, aproximando-se mais da moça, insistiu que ela não poderia ser deixada entregue a própria sorte.
Argumentou que se descobrissem que ela não tinha família, poderiam fazer-lhe algum mal.
Carolina nervosa, não sabia o que fazer.
Ficar ao lado de um selvagem, ou arriscar-se sozinha num mundo no qual não estava preparada para viver?
Não sabia o que fazer.
Abaré percebendo isto, disse a moça que precisavam desmanchar a palhoça e sumir com todos os vestígios de que passaram por lá.
Curiosa, Carolina perguntou o por quê.
Abaré respondeu-lhe que para se precaver, era melhor que não soubessem que estiveram por ali.
Carolina concordou.
Desmontaram a palhoça e enterraram as cinzas da fogueira.

Nisto, caminharam por dias pela mata.
Abaré construía palhoças para abrigar a moça.
Passou a caçar e a pescar.
Quando Carolina escorregou nas pedras, após uma caminhada por um lugar íngreme, o índio tratou do ferimento.
Rasgou uma parte do vestido da moça para enfaixar o pé.
A moça tentou resistir, dizendo que estava tudo bem.
Mas ao tentar prosseguir a caminhada, Abaré percebeu que precisa intervir.
Nisto segurou a moça nos braços e acomodando-a no chão, limpou o ferimento e providenciou a atadura.
Para prosseguir a caminhada, a menina precisou se apoiar no nativo, e assim prosseguiram a jornada.
Quando Carolina deu sinais de que não conseguiria mais caminhar, o índio a levou nos braços.
Mais tarde pararam.
Abaré armou uma nova palhoça e buscou caça para que pudessem se alimentar.
Como a noite apresentasse um céu sem estrelas, o índio chegou a dizer que provavelmente choveria. Carolina ao ouvir isto, resolveu se recolher.
Entrou na palhoça.
Ao ver o índio do lado de fora olhando para o céu e se aquecendo ao redor da fogueira, encheu-se de coragem e convidou-a para entrar na palhoça.
Abaré relutou, dizendo que estava bem.
Argumentou que poderia nem chover.
Porém, ao perceber os primeiros raios riscando os céus, capitulou.
Carolina olhava para a mata e observou os raios.
Abaré então se aproximou da palhoça e entrou.
Disse que não queria incomodar, e por esta razão, dormiria perto da entrada.
Carolina argumentou que ele iria se molhar.
Abaré então disse que havia construído a entrada da palhoça do lado oposto ao que corriam os ventos e por esta razão não entraria muita água de chuva.
Carolina deitou-se, e o índio fez o mesmo.
Durante a noite, abriu os olhos algumas vezes para observar se a moça estava bem, como sempre costumava fazer.
Carolina não percebeu o cuidado.
No dia seguinte, ao despertar, a moça percebeu os primeiros raios da manhã a iluminarem a figura do índio.
Era alto, de tez morena.
Diferente do que sempre imaginara.
Acreditava serem os índios selvagens, de diminuta estatura, bem diferente dos tipos portugueses com o qual estava acostumada.
Imaginava todos os indígenas bem diferentes de seu noivo.
Jovem descendente de portugueses, filho de um fazendeiro, proprietário de terras como seu pai.
Carolina havia visto o rapaz apenas uma vez.
Mal tiveram tempo de conversar.
Era alto, claro de cabelos e olhos escuros, e aparentemente havia gostado dela.
Foram apresentados no almoço, em que fora selado o noivado de ambos, por suas respectivas famílias.
Lembrou-se de em criança, brincar pelos campos livres da fazenda.
Ver a carne dos animais abatidos expostas, a ser preparado o charque, o sangue, e o cheiro forte.
Do qual não gostava.
Preferia o pomar, a plantação, brincar com os animais.
A vida era simples mas feliz.
Possuía uma alcova sem janelas, onde tinha sua cama, um baú onde depositava os seus pertences, a penteadeira com espelho e alguns poucos objetos de toucador.
Lugar onde gostava de se sentar, e admirar-se.
Penteava os cabelos sem pressa e ficar a se observar no espelho.
Por vezes, sua mãe chegou a ralhar com ela.
Dizia que era vaidosa demais e que havia muito trabalho a ser feito para ficar com bobagens. Jurema era uma mulher dura, como as filhas daqueles tempos hostis.
Não fora diferente das outras mães daquele tempo, e de muitas outras que se seguiriam.
Quando Carolina tornou-se uma bela e deslumbrante jovem, conversando com o marido, achou por bem que o mesmo tratasse com o amigo fazendeiro, do noivado firmado quando a moça ainda era um bebê.
Juvêncio concordou.
Argumentou que não era recomendável esperar muito tempo, ou a curiosidade poderia se sobrepor ao bom senso.
Organizaram então, um belo e regalado almoço, onde Carolina auxiliou, junto com duas escravas da casa, nos preparativos.
Quando a moça foi apresentada ao noivo, usava um bonito vestido claro.
Trazia nos cabelos um arranjo feito com flores.
Jurema não se cansava de dizer aos pais do noivo, que moça mais prendada não havia.
Carolina ficava constrangida com as palavras da mãe, as quais eram devidamente endossadas por seu pai, que dizia que a esposa não estava exagerando.
Arnaldo por sua vez, observava a noiva com admiração.
Quando foram apresentados elogiou o bom gosto do nome Carolina e disse o seu com todo o orgulho.
Comeram um churrasco gaúcho.
A certa altura do almoço houve cantoria, e os noivos dançaram juntos, sob as vistas dos pais. Carolina não sabia ler.
Como quase todas as moças daquele tempo.
 Leitura e ilustração era privilégios para poucos, dizia sua mãe.
Argumentava que o bom era a filha ser prendada e de fato o era.
Sabia tecer, cozinhar, costurar.
Perfeita para casar.
Ao recordar-se dos dias alegres na estância, da labuta diária, das danças e das festas.
Do vozerio alegre das pessoas reunidas em dias de festas.
De como se preparava, comprando tecidos e preparando bonitas vestes para se apresentar a comunidade.
Os dias santos em que vestia sua melhor roupa para ir a igreja onde via os estancieiros vizinhos, onde rezavam.
Quando vez por outra seu pai recebia visitas na estância, e os homens liam alguns livros.
Nestas ocasiões Jurema levava a filha para a cozinha, para preparar alguma bebida, ou comida para servir aos homens.
Dizia que eram assuntos de homens, e que não ficava bem para uma mulher ouvi-los.
Mas como quase sempre era Carolina quem servia os convidados, invariavelmente ouvia trechos dos livros.
Os homens ilustrados, diziam que uma pátria se fazia com homens e livros, e que não ficava bem ao Brasil ter tantos homens iletrados.
Juvêncio argumentava dizendo que não sabia ler e que isto nunca lhe fez falta.
Argumentava que sabia fazer contas, e que ninguém o roubava.
Salientou também que sabia assinar o próprio nome e isto bastava.
Com efeito, como ninguém queria brigar, os homens aceitavam os argumentos do estancieiro.
Mas acrescentavam que com o tempo, as coisas iriam se modificar, e o que naqueles tempos era considerado desnecessário, seria melhor recebido no futuro.
Tratavam-se de pessoas idealistas.
Eram encontros regados a muita bebida, vinhos, chimarrão, carne.
Carolina aproveitava para memorizar as palavras que ouvia, e que foram retiradas dos livros lidos.
Juvêncio ouvia as histórias e considerava tudo uma grande bobagem.
Jurema, ao ver a filha entretida com as leituras, ralhava com ela, mandando-a de volta a cozinha.
Nestes momentos a jovem desejava ter aprendido a ler, para poder adentrar aquelas histórias, conhecer aquelas pessoas.
Ficava a pensar no que o escritor registrara em palavras.
Acreditava quando os amigos do pai diziam que o conhecimento transformava o mundo.
Afinal, não fora com algum conhecimento que seus pais se instalaram ali?
Como faziam para sobreviver?
Como faziam o que faziam, se não fosse por que aprenderam isto de alguém?
O conhecimento não era sabedoria?
Certo dia, a moça ficou encostada na parede a ouvir as histórias.
Um dos amigos de seu pai ao vê-la, perguntou-lhe se não gostaria de ler alguma daquelas histórias.
Foi quando a moça respondeu-lhe que não sabia ler.
Roberto, lamentou o fato, mas disse entender que era uma prática corriqueira.
Como Carolina não soubesse o significado da palavra, o homem explicou-a.
Nisto, Roberto leu algumas poesias do poeta lusitano Luiz Vaz de Camões.
Quando porém a moça notou a aproximação de pessoas, pediu licença e se afastou.
Eram outros parceiros de leitura.
Jurema estava na cozinha e Juvêncio, separando os animais para venda.
Os tais homens letrados, eram filhos de estancieiros abastados da região.
Tratavam de jovens que foram estudar na Europa, principalmente em Portugal, e traziam as ideias revolucionárias daqueles tempos, para as terras brasileiras.
Carolina gostava daquelas reuniões.
Juvêncio por seu turno, em que pese se tratar de um homem rude, gostava da companhia dos jovens moços.
Dizia que precisava ser relacionar bem como os vizinhos.
Que uma mão lava a outra, e que nunca se sabe como será o dia de amanhã.
Jurema porém, ficava alerta, com tantas presenças masculinas.
Temia por sua filha.
Tanto que a todo o custo procurava escondê-la.
Com o tempo, passou ela mesma a servir os convidados.
Mas de vez em quando a moça ainda aparecia vez ou outra na sala.
Jurema por seu turno, não gostava do modo como os homens olhavam para sua filha.
Dizia que ela era moça de família, e que não podiam se comportar daquele modo na frente da jovem.
Juvêncio ria das preocupações da esposa, dizendo que não havia razão para tanto alarme.
Eram jovens e bem educados.
Sabiam o seu lugar, e jamais desrespeitariam a filha de um amigo, e de um vizinho que já prestara tantos favores a seus pais.
Ademais, os jovens não iam sozinhos.
E assim, não haveria problema.
Carolina adorava observar os campos a se perder de vista.
Gostava de ir ao riacho lavar as roupas.
Também era lá que costumava se banhar, nos dias de muito calor, para escândalo de sua mãe, que reprovava a conduta.
Dizia que moça direita como ela, não deveria se comportar deste modo.
Gostava quando encontrava uma bonita flor no campo, e colhendo-a colocava em seus cabelos. Gostava da cantoria das escravas, da companhia dos pais, e das outras mulheres, casadas com os colonos, que auxiliavam nas atividades domésticas.
Sentia falta das amigas que tivera e que foram mortas de forma cruel, sem ao menos terem a chance de se defenderem.
Sentia falta dos pais, dos trabalhadores da fazenda, e até dos animais.
Lembrar-se de todas essas coisas a faziam chorar, e Carolina, na primeira vez em que se deu conta de que todo o mundo que haviam construído para ela havia desmoronado, se desesperou.
Desesperou-se e chorou copiosamente.
Abaré, dormia ao ouvir o choro, despertou.
Ao ver a moça em prantos, ficou aflito.
Afinal, sabia caçar e pescar, montar ocas e palhoças, viver ao ar livre e sobreviver em uma floresta. Mas o que sabia fazer diante do choro de uma mulher?
 Ao ver o sofrimento da moça, e percebendo que nada poderia fazer para a dor desaparecer, sentiu-se fraco e vencido.
Compungido com a tristeza da moça, disse-lhe para que se acalmasse, que um dia todo aquele sofrimento iria passar.
Disse-lhe que ainda seria feliz, apesar de tudo.
Como a moça não parava de chorar, o moço perguntou-lhe o que poderia fazer para diminuir sua tristeza.
Carolina estava tão triste que não conseguia dizer nada, só chorar.
Quando finalmente se acalmou um pouco, repetiu as palavras do dia da invasão, perguntando-se a todo o momento, o que seria de sua vida.
Abaré então aproximou-se.
Disse-lhe que seria capaz de oferecer qualquer coisa a ela, se isto diminuísse sua tristeza.
Perguntou-lhe se poderia oferecer a luz do sol, as estrelas, o perfume das flores.
Carolina, ao ouvir as ternas palavras do índio, ficou comovida.
Poucas vezes fora tratada com tanta delicadeza.
E assim, cessaram as lágrimas.
A moça soluçando, procurou enxugar o rosto.
O índio, ao perceber isto, tocou no rosto da jovem.
Carolina se assustou.
Afastou-se.
Abaré então, percebendo que se precipitara, desculpou-se.
Disse que não queria assustá-la, mas somente fazer com que a tristeza fosse embora.
Carolina respondeu-lhe que não estava assustada.
Nisto o índio levantou-se.
Mencionou que iria caçar.
Carolina fez menção de acompanhá-lo, mas ao sentir o pé, permaneceu na palhoça.
Ao realizar o movimento brusco, Abaré verificou se tudo estava bem.
Disse-lhe que não poderiam prosseguir a jornada enquanto o pé não estivesse bom.
Argumentou que procuraria ervas na mata para a troca do curativo.
Carolina tentou protestar, mas em vão.
Quando fez menção de questionar a recomendação do índio, o mesmo já havia se afastado.
Regressou com ervas e preparou um unguento o qual passou no pé da siá branca, como costumava chamá-la.
Mais tarde, voltou com uma caça a qual preparou e serviu a moça.
Abaré estava diferente.
Olhava a moça com ternura.
Carolina tentava entender o olhar do selvagem que a havia salvo da morte, mas não conseguia.
A todo o momento se perguntava, por que fizera aquilo?
Por que se comprometera daquela forma, arriscando sua própria vida, para ajudar alguém que nem sequer conhecia?
A jovem nutria um sentimento de revolta e de admiração pelo estranho.
Estranho que com o passar dos dias passou a ser presença constante em sua vida.
Nos dias em que não pode auxiliá-lo nas tarefas domésticas, sentiu falta de sua presença.
Ás vezes se percebia distraída, olhando para o moço.
Quando se dava conta disto, procurava disfarçar, mirando os olhos em outra direção.
Abaré ensinou-lhe sobre o canto dos pássaros, o nome das plantas, das ervas.
Conforme a moça melhorou, prosseguiram a caminhada.
Ao avistarem o riacho, Carolina encantou-se.
Abaré percebendo o desejo da moça banhar-se, disse-lhe que poderia entrar na água.
Prometeu se afastar.
E assim o fez.
Carolina gostava dos modos respeitosos do índio.
Cautelosa, olhando para os lados, tirou o que restava de seu vestido branco e entrou com sua roupa de baixo no rio.
Abaré de longe observou a moça brincando na água, deitada de costas.
Olhava para ela com ar contemplativo.
Nisto, depois de algum tempo nas águas, a moça se vestiu.
O índio então, entrou nas águas e nadou.
Parecia um ser das águas.
Mais tarde, Carolina ofereceu-se para auxiliá-lo na caça.
Abaré tentou protestar, mas a moça dizendo que precisava ajudar, argumentou que só precisava de sua orientação.
E assim, partiram juntos para caçar.
Como era de se imaginar, a moça por diversas vezes assustou a caça.
Desculpava-se a todo o momento com Abaré, que com toda a paciência do mundo, dizia que não havia problema.
A certa altura, a moça apontou para um bicho.
Abaré munido de seu arco, abateu o animal.
Agradecido elogiou a moça.
Carolina agradeceu.
Almoçaram.

Conversaram sem a tensão dos primeiros dias.
Riram das peripécias de Carolina.
Foi então que finalmente o índio apresentou-se.
Mencionou que seu nome indígena era Abaré, nome pelo qual gostava de ser chamado.
Carolina então apresentou-se também.
O índio ao ouvir o nome, respondeu-lhe que era um nome sonoro como o canto de um pássaro.
A sinhá branca riu da comparação.
Finalmente os muros cederam e a convivência tornou-se mais leve.
Caçaram e pescaram juntos.
Abaré ensinou-lhe a montar e desmontar palhoças, a imitar o canto dos pássaros.
Nadaram em rios e riachos.
A certa altura, aproximando-se de uma acampamento abandonado, temeram tratar-se de pessoas em seu encalço.
Esconderam-se na mata.
Porém, com o passar dos dias, ao perceberem que tudo estava abandonado, resolveram aproximar-se.
Foi quando o índio descobriu objetos que poderiam servir a moça.
Roupas, objetos de toucador, que poderiam ser adaptados para seu uso.
Com efeito, das peças de roupa encontradas, Carolina desmanchou-as e fez vestidos, camisolas.
Havia livros no lugar.
Abaré pegou um deles e começou a ler em voz alta para a moça.
Carolina, ao constatar que de fato o índio sabia ler, pediu-lhe para que continuasse a ler a história.
Encantou-se com a habilidade.
Mais tarde, ao término da leitura, a moça confidenciou que gostaria de ter aprendido a ler.
Abaré então, comprometeu-se a ensiná-la se quisesse.
Carolina aceitou logo a proposta.
Rindo, achou graça no fato de que quem a ensinaria a ler, era considerado um selvagem.
Um selvagem de modos civilizados.
Pensava.
E o índio ensinou-lhe os rudimentos da escrita.
Com o tempo, começou a ler, e a escrever sobre o que lhe havia acontecido, a perda dos parentes, a vida ao lado de Abaré.
Por meses caminharam pela mata.
Por meses viveram em palhoças, cabanas, caçaram, pescaram.
Abaré ensinou-lhe a tecer redes.
Carolina passou a moldar peças no barro.
Precisavam de moringas.
Estava tão adaptada a vida na floresta, que pensou no que faria quando chegasse a uma cidadela.
Preocupada, pensava no que seria de sua vida, quando Abaré resolvesse partir em busca de novas aventuras.
Com o tempo porém, a convivência tornou-se mais próxima.
Enquanto nadavam no rio, brincavam de jogar água um no outro.
Carolina em dado momento se desequilibrou e afundou.
Abaré, ao perceber que a moça havia sumido, mergulhou a sua procura.
Ao encontrar a moça, segurou-a na cintura, puxando-a para cima.
Respirando com dificuldade, a moça abriu os olhos.
Abaré perguntou-lhe se estava bem.
A moça, procurando recuperar o fôlego, respondeu-lhe que sim.
O nativo então, recomendou-lhe que não ficasse tão próxima das pedras pois elas eram escorregadias.
Carolina disse que havia se desequilibrado.
Abaré perguntou então se havia se machucado.
Nisto, passou a examiná-la.
Muito embora Carolina dissesse que estava tudo bem, o índio examinou seus braços.
Tudo a procura de um possível ferimento que a moça tentasse esconder.
Sob protestos da moça o índio insistiu para ver seu pé.
Puxou-a para fora do rio.
Carolina porém, dizia que estava com calor e preferia se refrescar.
Com isto, mergulhou no rio.
Abaré preocupado, mergulhou logo atrás.
Nisto Carolina emergiu.
Ficou brincando de jogar água.
 Abaré também voltou à tona e ficou observando a alegria da jovem.
Vê-la feliz, lhe fazia feliz.
Muitas vezes ao lembrar das circunstâncias em que se conheceram, o moço ficava preocupado, pensando se não havia alguém em algum lugar esperando por ela.
Carolina raramente falava da família e quando o fazia, lembrava-se quase sempre com tristeza dos momentos vividos ao lado dos pais e dos irmãos.
Possuía duas irmãs menores e um irmão, um bebê de nome Lúcio.
Carolina dizia-lhe que adorava carregar o irmão nos braços.
Falava que este divertimento lhe fazia ter a sensação de que estava brincando com um boneco.
Lúcio era uma criança tranquila que pouco chorava.
Adorava caminhar ao lado da irmã.
Carolina lhe dava comida na boca, e muitas vezes fora ela quem preparou as refeições do irmão.
Jurema chegava a dizer que Carolina era mais mãe de Lúcio do que ela própria.
A moça gostava de se recordar que o menino gostava de se balançar em uma rede instalada no alpendre da casa grande.
Carolina recordou-se dos momentos em que passou deitada na rede, apreciando a paisagem da estância.
O sol se despedindo da tarde e a noite chegando.
O céu rebrilhando repleto de estrelas.
Os vaga-lumes piscando.
Lembrou-se dos filhos das escravas, aprisionando os insetos em formas de vidro, para que funcionassem como tochas.
Na fazenda havia várias delas.
Tochas a iluminarem os caminhos.
Lembrava-se das brincadeiras de roda com os filhos de escravos.
Sua mãe, Dona Jurema não gostava muito de ver a filha brincando com os filhos dos escravos.
Carolina no entanto, dizia que as brincadeiras deles eram mais divertidas que as de suas irmãs.
Recordou-se do dia em que encontrou um livro jogado e ao abri-lo, foi surpreendida por sua mãe, que a repreendeu pelo gesto.
Ao ver a filha tentando ler as palavras contidas no papel, disse-lhe que não havia necessidade de aprender a ler.
Dizia que suas necessidades eram o trabalho doméstico, cuidar da cozinha, da casa, lavar, cozinhar, costurar, cerzir, bordar.
Não havia necessidade de se saber mais nada.
Carolina, ao ouvir isto, tentou dizer que gostaria de aprender a ler, mas foi interrompida por sua mãe, que lhe disse que tinha que gostar era de cuidar de uma boa casa.
Isto sim era predicado para uma mulher e não estas bobagens de leitura.
Dizia que uma mulher não podia ser frouxa.
Nisto tomou o livro da filha e recomendou-lhe que nunca mais mexesse com o que não era seu. Abaré, sempre que ouvia estas histórias, dizia que iria ensinar-lhe a ler.
E de fato ensinou.
Quando a moça finalmente aprendeu os rudimentos da leitura, passou a ler trechos de livros que haviam encontrado, para Abaré.
O nativo sempre elogiava a leitura da moça, dizendo-lhe que a cada dia estava melhor.
Mais tarde o moço entregou a ela um caderno, e ela passou a escrever um pouco sobre o seu dia a dia.
Às vezes, a jovem mostrava trechos dos textos escritos, para o índio.
Abaré, encantado, sempre elogiava as palavras da moça.
Viviam bem, viviam até felizes, não fosse uma sombra rondando os pensamentos do índio.
Carolina prosseguia com seu banho de rio.
Ao perceber Abaré estático, chamou-o.
Dizia para se banhar, pois estava muito quente.
Nisto passou a jogar água no homem.
Abaré, desperto, passou novamente a jogar água na moça, que procurou fugir.
A certa altura, ao alcançar uma pedra lisa, novamente escorregou, sendo amparada pelo índio.
Abaré então, movido pelo impulso beijou-a.
Carolina surpresa com o gesto, tentou se afastar.
Abaré então, soltou-a.
A moça não sabia como agir.
O nativo também não.
Assim, Carolina optou por sair do rio.
As pedras lisas, dificultavam a caminhada.
Abaré então a amparou.
Carolina agradeceu a gentileza.
Desta feita, o índio a auxiliou.
Ao saírem do rio, a moça se sentou em uma pedra.
Dizia que o lugar era lindo, e que poderia tranquilamente viver ali.
Abaré ao ouvir isto, sorriu feliz.
Nisto um vento frio soprou.
Abaré percebendo que a moça tremia de frio, recomendou que voltassem para a palhoça.
Lá ela poderia vestir uma roupa seca e se proteger do vento frio.
O índio então indicou que a moça fosse a frente.
Ele seguia atrás.
Carolina então vestiu-se.
Enquanto isto, o índio colhia frutas.
Comeram.
Carolina começou a rir.
Não conseguia parar.
Abaré intrigado, perguntou por que ela ria tanto.
A moça respondeu-lhe que era muito atrapalhada.
Num mesmo dia escorregara várias vezes no rio.
Abaré retrucou dizendo que precisava ver se não havia se machucado de verdade.
Carolina respondeu-lhe que não.
Mesmo assim, o índio ficou a observar os pés da moça.
Ela então respondeu que não havia torcido o pé.
Abaré, bem próximo da moça, ficou a esperar uma nova negativa da moça.
- Não? - foi o que o índio perguntou.
Nisto, aproximou-se da moça, e novamente a beijou.
Desta vez, Carolina não se afastou.
Beijaram-se e ficaram se olhando com curiosidade.
Ao se recolherem a palhoça, o moço apoiou a cabeça da jovem em seu tronco.
Aflito, perguntou-lhe o que faria quando regressasse a cidade.
A moça respondeu que não tinha mais ninguém no mundo, visto que todos os seus parentes havia sido mortos.
Diante disto, argumentou que não sabia o que fazer.
Pensativa, em dado momento chegou a pensar na possibilidade de voltar a seu antigo lar para se certificar de que nada havia restado.
Carolina chegou a sugerir voltarem.
Abaré enciumado, afastou a possibilidade.
Argumentou que eles poderiam ainda estar sendo procurados, e que o retorno poderia ser perigoso.
A moça ao perceber a resistência do nativo, retrucou dizendo que eles não deviam estar mais lá.
Que já havia muito tempo que as coisas aconteceram.
Mencionou que precisava ter certeza de que todos estavam mortos.
Aborrecido, o índio perguntou-lhe se estava procurando alguém em especial.
Carolina mencionou então que estava prometida a um jovem de nome Arnaldo.
Sem pensar no que dizia, chegou a falar que ele poderia ajudá-la.
- Ajudá-la? - perguntou o índio, de cenho franzido.
- É... Ele pode nos ajudar...
Abaré questionou a ajuda.
Ríspido, respondeu que não precisava de nada.
Carolina não entendeu a mudança de humor do índio.
Irritado, Abaré, argumentou que provavelmente ele iria exigir o cumprimento do compromisso, e que assim, não iriam mais se ver.
Carolina respondeu que provavelmente não.
Haja vista que para todos os efeitos, todos haviam morrido.
Abaré porém, não se convencia.
Enciumado dizia que não iriam voltar para aquele lugar.
Carolina insistiu.
Foi o bastante para brigarem.
Abaré passou a não lhe dirigir a palavra.
Apenas respondia aos cumprimentos de bom dia.
Carolina por sua vez, ameaçou ir sozinha em busca de notícias.
Abaré não se abalou.
Contudo, ao perceber que a jovem estava decida a ir, argumentou que ela não conhecia os caminhos e que certamente iria se perder.
Carolina argumentou que preferia correr o risco de se perder, a ficar sem saber o que havia acontecido.
Chorando, a moça dizia que não conseguia conviver com isto.
Abaré ao perceber isto, abraçou a moça.
Prometeu que assim que pudesse, a levaria de volta a estância.
Com isto, voltaram a se entender.
Dividiam o mesmo teto, e com o tempo, dividindo os afazeres, Carolina o auxiliava na caça e na pesca.
Nadavam no rio.
Com o tempo a moça passou a cantar.
Abaré imitava o som dos pássaros.
E o tempo seguia calmo e tranquilo.
E assim, passaram a viver como se casados fossem.
Quando a moça ficou grávida, o nativo preocupou-se com sua sorte.
Dizia que precisava encontrar alguém de sua tribo, e que ela não poderia ter seu filho sozinha.
Carolina dizia-lhe que não havia com o que se preocupar, e que encontrariam seus descendentes no momento certo.
Mas Abaré estava apreensivo.
Carolina descobriu-se grávida no momento em que não teve mais regras.
Contava os dias de forma rudimentar e ao dar-se conta de que havia dois meses que não sangrava, passou a notar mudanças em seu corpo.
Ao nadar no riacho, como de costume começou a notar pequenas mudanças na forma do quadril.
Com o tempo, passou a ter sensibilidade a certos cheiros e alimentos.
Abaré atento ao comportamento do moça, também percebeu pequenas mudanças.
Carolina já não o acompanhava em suas caçadas, sem contar que nem sempre estava disposta a ficar a sós com ele.
Por diversas vezes reclamava de sentir sono.
Abaré começou a estranhar.
Em dado momento, a moça, percebendo que não poderia mais guardar para si a novidade, participou-a ao índio.
Abaré ficou surpreso com a notícia.
Perguntou-lhe como podia ter tanta certeza.
Carolina não sabia como, mas dizia ter certeza que estava grávida.
O índio compreendeu.
Dizia que as mulheres mais antigas de sua tribo, sabiam quando um novo membro viria ao mundo.
Comentou que as próprias índias já percebiam isto.
Carolina comentou que a própria natureza encontra formas de mostrar para as mulheres.
Abaré ficou deveras feliz com a novidade.
Abraçou-a e levantou-a em sinal de comemoração.
Comentou que agora não estavam mais sozinhos.
Mas embora feliz, o nativo também ficou preocupado.
Conforme o dias se seguiam, o índio passou a considerar a hipótese de levar a jovem de volta ao lugarejo onde vivera com sua família.
Porém ao analisar melhor a situação, considerou que não seria nada bom que a moça aparecesse grávida, ainda mais de um índio.
Pensar nisto lhe causou tristeza.
Com isto, precisava dedicar mais afinco na busca por sua família.
Desta forma, prosseguiram a jornada.
Cauteloso, o índio procurou buscar pouso em vilarejos.
Com isto, ao sair da mata, oferecia-se para prestar qualquer serviço para os brancos.
Quanto a Carolina, dizia ser ela sua mulher.
A moça já estava com cinco meses de gestação.
Queimada de sol e ligeiramente diferente de seus tempos de sinhá, não causava estranheza aos circunstantes, pois acreditava se tratarem de índios.
Carolina não desmentia a impressão.
 Abaré chegou a falar-lhe que poderia se dizer branca, que fora raptada por ele e que precisava voltar para sua terra.
Carolina retrucou dizendo que não seria bem recebida.
Argumentou que sua sina havia sido traçada quando ele cruzou o seu caminho, e que não havia como voltar atrás.
Abaré argumentou que temia por ela, por seu futuro, e pelo filho que estavam esperando.
A moça respondeu-lhe que tudo acabaria bem.
Com o tempo, andando de vila em vila, acabaram por encontrar um aldeamento indígena.
Os índios, ao verem a moça, ofereceram acolhida.
Dizia que mesmo não sendo da mesma tribo, iria recebê-los, pois o casal não poderia ficar desamparado.
Abaré agradeceu a acolhida, disse que ficariam por algum tempo, e depois prosseguiriam viagem.
Com o tempo, ergueu uma oca para sua mulher.
Passou a participar das atividades da tribo.
De suas danças, de suas tradições.
Caçava e pescava.
Plantou alguns víveres.
Carolina fazia cestos, moringas de barro.
Aprendeu desenhos, e se admirou da beleza das peças.
As índias achavam curioso o fato da moça andar coberta e ao tomar banho no rio, entrar com uma espécie de vestido.
Riam dos modos da moça.
Com o tempo, a jovem passou a se vestir como as índias do lugar.
Passou a viver ao modo da tribo.
A criança nasceu em sua oca, auxiliada pelas índias da tribo.
Carolina teve a criança de cócoras, sem o auxílio de parteiras.
Abaré ficou do lado de fora e ao tomar conhecimento do nascimento da criança, comemorou com os outros índios.
Houve festa e celebração.
Foram tempos tranquilos.
Mais tarde, com a criança mais crescida, um menino de nome Abaeté, o casal despediu-se da tribo. Nos meses em que permaneceram na tribo, Abaré contou sua triste história, bem como a de sua esposa.
No momento da despedida, receberam flores das crianças da tribo e algumas cerâmicas das mulheres.
O pajé pediu ao índio, que regressasse com boas novas.
Abaré prometeu que o faria.
Com isto, o casal partiu carregando trouxas com roupas, livros, um caderno, algumas cerâmicas, e com Abaeté, o filho do casal.
Carolina agora, trazia consigo a sabedoria dos índios, o segredo das ervas medicinais.
Prática que a auxiliou nos cuidados com o filho, sempre que o mesmo necessitava de remédio.
Desde o nascimento a criança se acostumou a viver nas matas, sempre livre e sem medo.
Por algum tempo viveram isolados na floresta.
Até finalmente se decidirem por regressar ao vilarejo onde Carolina vivera com a família.

Nestes tempos, ao lá chegar, passaram antes por pequenas vilas, onde Abaré fazia pequenos serviços.
Carolina e Abaeté ficavam instalados em celeiros, quando não dormiam ao ar livre.
Com isto, quase três anos depois do ocorrido, a moça voltou a estância.
Triste, deparou-se com um ambiente de desolação.
O velho casarão todo queimado, tachos revirados, restos de cinzas espalhados por todos os lados.
Nervosa, entrou no que restara da casa.
Emocionada encontrou algumas lembranças, entre o que fora queimado, como a caixinha de costura de sua mãe.
Uma velha caixinha de música, que para sua admiração, ainda funcionava.
Neste momento, muitas lembranças de fatos até então esquecidos, voltaram à tona.
Lembrou-se das cantigas de roda.
De brincar de se esconder por entre as construções.
Do poço de onde costumava retirar água. Do riacho, dos pássaros que vinham cantar em sua janela.
Das frutas colhidas no pomar.
Dos passeios de charrete com os pais, na vila.
Das compras que faziam no armazém.
Dos cumprimentos dos conhecidos.
Das novenas organizadas no casarão, onde sempre tinha que participar.
Por conta disto chorou.
Abaré do lado de fora, segurava o filho, que a certa altura, começou a chorar.
O índio então, buscou acalmar a criança, que parecia impaciente.
Nisto, um passante, ao notar a presença de estranhos no lugar, comentou que aquelas terras tinham dono.
Abaré respondeu ao estranho que conhecia um dos donos do lugar, e que fora o próprio dono quem o convidara a entrar naquelas terras e se acomodar, como fosse possível.
O estranho perguntou seu nome. Abaré respondeu perguntando o nome do estranho.
O tropeiro riu.
Procurando resolver o impasse, respondeu que se chamava Arnaldo.
Abaré ao ouvir o nome ficou intrigado.
Isto por que este era o nome do noivo de sua mulher.
Abaré então, disse seu nome.
Arnaldo curioso, perguntou ao índio, de onde conhecia os donos das terras.
Nisto, Carolina saiu do casarão.
Ao avistar Abaré e o filho ao lado do moço, ficou perplexa.
Arnaldo ao vê-la, ficou pasmo.
- Carolina? - era a única coisa que conseguiu dizer.
Neste momento, uma lágrima correu de seus olhos.
 O que ele poderia dizer depois de tantos anos, acreditando que a jovem fora assassinada com toda a sua família?
Aflito, levou meses para acreditar que a moça estava morta.
Como não encontraram o corpo para ser enterrado, chegou a pensar que tivesse conseguido fugir, que pudesse estar sã e salva em alguma plaga, e que não havia voltado por medo de represálias.
Lembrou-se de como esta dúvida o consumiu e das dificuldades que teve em aceitar uma nova noiva.
Mas por fim, diante da ausência de noticias, e da morte quase certa de Carolina, Arnaldo acabou por se casar com a filha de um estancieiro da região.
Homem de posses do lugar.
Deparar-se com a jovem Carolina, diante de seus olhos, causou-lhe alegria, mas também tristeza.
Carolina por sua vez, ao ver Arnaldo tão bem alinhado, lembrou-se do moço de bombachas que havia conhecido.
Estava mudado.
A moça, aproximou-se então de Abaré e passou a segurar o filho nos braços.
Arnaldo percebeu então, que a moça havia retomado seu filho.
Abaré perguntou a moça, se conhecia o rapaz.
Arnaldo se aproximando, resolveu se apresentar a família.
Carolina então declinou seu nome, e o nome do filho Abaeté.
Ao ouvir a palavra filho, Arnaldo demonstrou estar decepcionado.
Contudo, procurando disfarçar o sentimento, perguntou-lhe há quanto tempo havia chegado a vila.
Carolina respondeu que há um dia.
Arnaldo perguntou então se sabia o que havia ocorrido com a família, onde estavam sepultados os corpos, e todas as providências legais a serem tomadas.
Carolina respondeu que só tinha conhecimento do que havia presenciado naquela época, as mortandades de parentes e de escravos, os homens colocando fogo na casa.
Mas não se lembrava do ocorrido com detalhes, nem do que havia sucedido depois de conseguir fugir.
Arnaldo, ao ouvir as palavras da moça, deduziu que o indígena a auxiliou na fuga.
Abaré permaneceu calado.
O homem então, ao notar que aquele não era o melhor ambiente para conversarem, convidou-os a pernoitarem em sua fazenda.
Contudo, como já estavam instalados no lugar, Abaré agradeceu a proposta mas recusou-a.
Disse que já tinham onde dormir.
Arnaldo no entanto, insistiu.
Dizia que a moça não estava acostumada a dormir em qualquer lugar e que todos estavam cansados da viagem.
Portanto tinham o direito de ficar melhor instalados.
Abaré respondeu-lhe que Carolina estava bem, e que não havia com o que se preocupar.
Arnaldo argumentou que caso mudassem de ideia, poderiam ir a fazenda.
O índio insistiu em dizer que estava tudo bem.
Mas prometeu se dirigir a propriedade no dia seguinte, para que pudessem conversar.
Arnaldo, apertando a mão do índio, mencionou que estavam combinados.
Explicou ao casal como fazer para chegar ao lugar.
Elogiou a beleza da criança, e se despediu. Abaré, colocando a mão no ombro de Carolina, falou para saírem dali.
Com isto, seguiram a pé até a estalagem.
Lá cearam e dormiram.
No dia seguinte, foram a cavalo para a fazenda de Arnaldo.
Lá, foram apresentados a mulher de Arnaldo, Leonora.
Que já alertada pelo marido, tratou de receber bem os convidados.
Abaré estava trajado como um português.
Carolina lembrava uma senhora.
Levaram consigo o pequeno Abaeté.
Leonora pediu as escravas da casa que servissem o café da manhã.
Nisto, Arnaldo conversou com Abaré e Carolina, sobre o estado de abandono do casarão.
Relatou que até o momento, nenhum herdeiro havia reivindicado a posse das terras.
Mencionou que todos os familiares foram enterrados no cemitério da cidade, e que poderiam visitar o túmulo da família.
Carolina, com os olhos cheios d'água, informou que iria fazê-lo.
Em seguida, perguntou dos escravos e dos agregados.
Arnaldo respondeu que foram todos enterrados em valas comuns, sem identificação dos corpos.
Triste, Carolina insistiu em saber onde haviam sido enterrados.
O fazendeiro respondeu que estavam enterrados em um lugar afastado da vila, e que para chegar ao local, precisariam ir a cavalo.
Carolina falou que iria visitá-los. Arnaldo tentou argumentar dizendo que era inútil, já que não seria possível saber onde estavam sepultados, mas Carolina estava determinada a visitar os túmulos, todos os que fossem necessários.
O tropeiro tentou convencê-la a rezar uma missa em memória de todos os mortos, mas Carolina queria visitar os túmulos.
Arnaldo chegou a dizer que sua determinação lembrava sua mãe.
Nisto, passou a orientar o casal sobre a necessidade de se manifestarem judicialmente, com Carolina invocando a qualidade de herdeira das terras.
Mencionou que se nenhuma providência fosse tomada, o Estado, se tornaria proprietário das terras.
A moça respondeu que não sabia o que fazer.
Abaré que até então ficara calado, respondeu que seria necessário constituir um advogado para entrar com um processo.
Arnaldo disse que poderia auxiliá-los.
Com isto, indicou um advogado da capital da província.
E assim, as terras – herança vacante, tornou-se propriedade de Carolina.
O regresso da herdeira considerada morta, causou rumores no lugarejo.
O fato da moça ter constituído família ao lado de um indígena, causou comentários.
Críticas e reprovações eram as atitudes mais comuns.
Mas a jovem persistiu, recuperou as terras ao lado de Abaré.
Tornou a propriedade novamente produtiva.
Recuperou o velho casarão.
Tiveram uma descendência.
Carolina visitou as sepulturas do cemitério na estrada e tratou de identificar os túmulos com placas. Em todos eles depositava flores e fazia orações.

Luciana Celestino dos Santos
É permitida a reprodução, desde que citada a fonte.

VERSÃO ALTERNATIVA

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