Mesmo assim, ao contrário do que se poderia imaginar, a moça continuou participando das reuniões.
Como não podia chamar a atenção para o que estava fazendo, aconselhou aos próprios companheiros, realizarem às reuniões em horários apropriados.
Com isso, após dias alguns os mesmos passaram a se reunir até em fins de semana. Tudo com vistas a redigirem os textos para que o jornal fosse finalmente impresso.
Empolgados, conforme iam escrevendo as matérias, aproveitavam para mostrá-las a Bruno, para que esse autorizasse ou não a edição das mesmas.
Esse, impressionado que estava com a dedicação da moça, ao perceber o desempenho de seus sequazes na pesquisa e redação das matérias, sempre sugeria que os mesmos levassem as matérias à apreciação de Clarissa.
A moça ao ler os textos, disse a Bruno que os mesmos estavam bons. Mas ela, interessada que estava na publicação do jornal, sugeriu que também poderia escrever algo.
Bruno no entanto, considerou ainda prematura a participação da jovem na efetiva redação do jornal.
Tal fato, entretanto a frustrou deveras. Escrever sempre fora seu maior sonho. Contudo, ao ver-se diante da possibilidade de realizar seu desiderato, foi inesperadamente tolhida em seu intento. Isso a deixou profundamente desolada. Tanto que, quando voltou para casa, depois da infrutífera reunião, seus tios preocupados, quiseram logo saber o que teria acontecido.
Mas ela, fechada em si, não quis saber de conversa. Decepcionada com os rumos que sua participação estava tomando na organização, Clarissa chegou até mesmo a cogitar a possibilidade de desistir de tudo, já que não estava tendo voz ativa.
Por isso, Bruno, o líder do movimento, certa vez, ao ver a moça tão desolada, resolver tomar uma atitude no sentido de tornar sua participação mais ativa.
Preocupado com a possibilidade da moça abandonar a luta, este resolveu incluí-la em uma futura ação, que ainda estava planejando.
Portanto, logo que cogitou a possibilidade de uma ação efetiva, chamou a moça para uma conversa reservada. Nessa conversa, Bruno então comentou sobre essa sua intenção.
Contudo, como ainda não tinha detalhes da operação, não havia como adiantar nada.
Mas para Clarissa, que ultimamente não estava vendo nenhuma utilidade em sua participação nas reuniões, decidiu então, que aguardaria mais um pouco para tomar uma decisão.
Sim, precisa verificar até que ponto chegariam os acontecimentos, para então se decidir se permaneceria ou não lutando.
Isso por que, quando passou a fazer parte da organização clandestina, o que ela mais queria era participar de ações. Também, se fosse possível, gostaria de expor as outras pessoas, sua maneira de pensar.
Sim, ela queria convencer as pessoas de que a luta por melhores condições de trabalho era justa. Tão justa, que a tão propalada luta não era só dela, desta organização, ou daquele sindicato. A luta era de todos os trabalhadores.
No entanto, para que isso acontecesse, precisava ser conhecida. E que meio melhor de se tornar conhecida do que escrevendo.
Clarissa acreditava nisso.
Idealista, sempre que em conversas, discutiu sobre as desigualdades sociais com seus tios, fez questão de comentar que todos deveriam lutar por seus direitos. Que assim o fizessem, com certeza, a luta seria mais fácil.
Mas, infelizmente para ela, as pessoas estava se acovardando. Temerosas da reação da elite econômica do país, muitos trabalhadores temiam reagir contra essa exploração.
Ouvir isso, para Clarissa era pior do que apanhar de fato.
Por isso quando a moça, via seus tios tão acomodados em seu conformismo, chegava até a sentir um certo desgosto.
Para eles, ter que viver num lugar miserável como aquele, sem conforto e sem privacidade era algo quase que normal. Considerando que conseguiam o necessário para a subsistência e argumentando que não precisavam de muita coisa, diziam que a vida deles era boa na medida do possível.
Mas, para Clarissa, trabalhar para sobreviver não era certo.
Em suas palavras:
-- Sempre me disseram que o trabalho enobrece o homem. Mas o que eu vejo, é um empobrecimento geral do homem com o trabalho. Aqui nesta terra, trabalha-se para sobreviver. Para mim, isto não é vida.
Bartolomeu então comentou:
-- Pois eu gosto muito da minha vida. Não vejo nada de mau em trabalhar. Até gosto.
-- E eu não estou dizendo o contrário. Mas existe uma diferença muito grande entre trabalho e exploração humana. Não somos escravos. Não temos que ficar submetidos à jornadas de trabalho extenuantes. Temos o direito de descansarmos e recebermos uma remuneração justa pelo nosso trabalho. – insistiu a moça.
Mas não adiantava. Como todas as outras conversas, essa também resultou infrutífera. Afinal, assim como ela, seus tios eram muito teimosos para entenderem a importância da luta que estava sendo travada.
Assim, sempre que esse tipo de conversa se iniciava na casa da família, acabava resultando em um grande vazio.
Ademais, como já fora dito várias vezes, Clarissa devia se conter ou logo logo descobririam a razão de seus longos sumiços e o por que de voltar tantas vezes, tão tarde para casa.
Por isso, retomando a estratégia já iniciada, sempre que podia aproveitava para ouvir um pouco de rádio e se distraía com a rádio novela.
Enquanto o locutor anunciava mais um capítulo da rádio-novela ‘Encontro com o Desconhecido’, Clarissa aproveitou para aumentar um pouco o volume do rádio.
Isso por que, queria que seus tios tomassem conhecimento de que ela passara a ter outros interesses.
Nisso, o narrador retomou a história. Enquanto Eleonora aproveitava as férias oferecidas pela organização, banhando-se e aproveitando o sol da Riviera Francesa, a moça foi novamente chamada para desempenhar uma missão.
Ao receber o comunicado de um misterioso funcionário do hotel em que estava hospedada, a moça, ao contrário do que seria de se esperar, ficou exultante.
Sim, finalmente depois de algumas semanas de férias, poderia novamente imiscuir-se em nova trama.
Ao receber o bilhete do funcionário, no saguão do hotel, tratou logo de subir para seu quarto, e leu-o calmamente.
Neste constava que haveria um jantar com alguns altos funcionários que estavam de férias no local.
Como estratégia da organização da qual fazia parte, apropriadamente, recebeu também um convite para fazer parte da celebração.
Mas, desta vez, ao contrário da anterior, deveria juntar-se aos convidados e em meio a brindes e comemorações, e descobrir detalhes sobre os próximos passos que seriam dados em relação a guerra que acontecia.
Quanto a isso, precisava ser discreta. Em relação ao resto, não.
Dessa forma, quando finalmente era chegada a hora do famigerado jantar, grande parte dos convidados já havia chegado ao local.
Eleonora no entanto, a despeito da pontualidade dos europeus, chegou bastante atrasada ao lugar.
Contudo, logo que adentrou o saguão do hotel e se encaminhou para o restaurante, todos pararam para olhá-la, até mesmo as mulheres, que entre conversas e frivolidades, acompanhavam cada passo da misteriosa jovem que adentrava o salão do restaurante.
Usando um exuberante vestido de veludo verde, delicadamente moldado ao seu corpo, a jovem Eleonora estava realmente magnífica. De tão bem vestida, ofuscou até mesmo as convidadas mais belas do banquete.
Esse era o seu intuito.
Calculista, media cada um de seus passos até conseguir alcançar seus objetivos. E nesse caso, o objetivo, era chamar a atenção. Como orientação no bilhete que recebera, horas antes, apenas, ‘seja o foco de todas as atenções’.
E que forma melhor de o ser, do que se preparando com o esmero e alinho? Precisava estar perfeita esta noite, e desta forma, o jantar prometia.
Após sua entrada triunfal no salão onde ficava o restaurante, aproveitou para sentar-se no balcão do bar. Um belo e sofisticado bar, diga-se de passagem. Com bancos forrados de veludo vermelho, boas bebidas, e ao fundo um som de piano. Dessa forma, a moça podia ficar à vista de todos os convidados do jantar.
Os mesmos, ao verem-na tão sozinha, foram solertes em convidá-la para sentar-se junto a eles.
Eles no caso, estavam sentados em uma das mesas centrais do restaurante, possuindo portanto, um ótimo campo de visão.
Estava tudo indo muito bem para ela.
Contudo, não se pode dizer o mesmo, para as mulheres dos convidados. Grande parte delas, enciumadas com a presença de tão inconveniente mulher, tentaram fazer o possível para que seus respectivos maridos fossem embora acompanhando-as. Entrementes, não foi possível.
Alegando que seria uma grande desfeita saírem sem se despedirem e nem ao menos cearem, conseguiram, pelo menos por alguns momentos, frearem os impulsos hostis de suas mulheres.
Com isso se denota que jantar seria demorado.
Por isso, enquanto esperavam pela refeição, os convivas eram constantemente servidos de bebidas e entradas.
E nisso, durante a espera pela refeição principal, os homens aproveitavam para falar de seus principais projetos. Até por que estavam entre seus pares, e assim não haveria o problema de cometerem inconfidências.
Por esta razão, na mesa que Eleonora dividia com outros homens, os mesmos, aproveitando para exibirem seu grande poder para ela, não se cansavam de repetir que era influentes. Além disso, não se furtaram de comentar as peripécias em que se envolveram, só para impressioná-la. Sim, estava sendo muito fácil descobrir detalhes da guerra. Não só os detalhes, como também, alguns dos crimes cometidos.
A certa altura, rodeada de tantas confissões e soberba, a moça levantou-se, e desculpando-se, comentou que precisava ir até o toillet.
Assim encaminhou-se para lá e retornou, após alguns minutos.
Quando voltou a ocupar seu lugar junto a mesa, os mesmos continuaram a adulá-la. Cada qual a sua maneira, mas todos visando ficar a sós com ela, após o jantar.
Nisso, quando ela percebia que a conversa estava recaindo em amenidades, aproveitava a oportunidade para instigá-los:
-- Mas então, rapazes, me contem o que de mais terrível os senhores fizeram durante a guerra, afinal, a conversa estava tão interessante!
E nisso a conversa retomava o rumo originalmente iniciado.
Era um grande pesar ouvir tudo aquilo.
As atrocidades e ignomínias cometidas contra as minorias eram realmente brutais, sem contar a ganância e a volúpia pelo lucro que tomava conta desses homens. Para eles o dinheiro era sinônimo de poder. Para tanto, precisavam do maior número de notas para que assim, se fizessem respeitar.
Mas esse era o trabalho de Eleonora, e a jovem não podia se furtar a isso.
Assim, mesmo diante dos riscos envolvidos, resolvera se tornara espiã. Tinha verdadeiro fascínio pelo mister.
Contudo, precisava ser cautelosa.
Afinal, por implicar em segredos de guerra, não podia deixar que percebessem que se tratava de uma espiã. Assim, quando percebeu que a conversa estava indo longe demais, resolveu interrompê-los perguntando, o seguinte:
-- Então estou diante de bem sucedidos homens de negócio?
No que eles responderam que sim. Tão bem sucedidos que tinham grandes aliados no exército e na polícia secreta alemã.
Aliás, diga-se de passagem, apesar de estarem na França, muitos dos que ali participavam do jantar, eram estrangeiros, grande parte, de origem germânica.
Daí resultando o interesse da organização em ter alguém de confiança, acompanhando os passos dos principais convidados do jantar. E nesse ponto, acertaram em cheio ao escolherem-na para a missão. Elegante, polida, educada e charmosa, não seria difícil convencer a todos que ali estavam, de que se tratava de uma verdadeira dama.
Ousada, mas uma dama.
E assim, dessa maneira, a conversa estava rendendo frutos.
Contudo, chegou a hora do jantar.
Como prato principal, uma suculenta lagosta acompanhada de um bom vinho da terra.
Nesse ponto um dos convidados chegou até a comentar:
-- Realmente, um dos melhores vinhos do mundo.
E assim, brindaram. Em seguida cearam.
Mas antes disso, o conviva, satisfeito com a presença de todos os convidados, ergueu-se de sua cadeira e propôs um brinde.
Feliz, estava brindando ao futuro casamento de sua filha, com uma das grandes fortunas da França. Satisfeito com o enlace, propôs a todos que celebrassem com ele esta alegria.
Assim, todos brindaram novamente.
Depois, conforme já dito, todos cearam.
Mas após a ceia, a despeito do término do jantar, alguns dos convidados tentados com a magnífica pista de dança que se apresentava para eles, no magnífico salão onde ficava o restaurante, aproveitaram para, em companhia das melodiosas músicas tocadas no piano, dançarem.
E assim, dançando, muitos dos convidados permaneceram por horas no restaurante.
Eleonora por exemplo, cercada pelos cavalheiros que lhe fizeram companhia durante o jantar, se viu compelida a dançar com todos eles.
Isso por que, maravilhados com a moça, quiseram testá-la na pista de dança.
Assim, para surpresa dos mesmos, Eleonora deslizou na pista.
E apesar de ter de dançar com muitos dos convidados, não perdeu nem por um instante a classe. Exímia dançarina, encantou a todos que com ela dançaram.
Entre passos marcados e valsas, Eleonora não decepcionou.
Mas, com o passar das horas, Eleonora comentou que precisava partir.
Como teria um compromisso durante a manhã, era imperioso que fosse logo para o hotel onde estava hospedada.
Diante disso, alguns de seus admiradores insistiram para que ela ficasse mais um pouco.
Mas Eleonora, reiterando a necessidade de se retirar, insistiu que precisava ir embora.
Com isso, sem terem como convencê-la a ficar mais um pouco, três dos rapazes que lhe fizeram companhia durante todo o jantar, fizeram questão de acompanha-la até o hotel onde estava hospedada.
Eleonora no entanto, resistiu a proposta. Alegando que não havia necessidade de tamanho cuidado, recusou o quanto pôde, a oferta.
Mas os rapazes eram insistentes.
Assim, diante de tanta insistência dos mesmos, acabou aceitando o convite e voltou para o hotel, na companhia de dois deles.
Isso por que, como todos ofereceram-se para levá-la até o local onde estava hospedada e ela era apenas uma, Eleonora só poderia seguir em um carro. Com isso, depois da disputa para saber quem a levaria de carro, um dos rapazes, muito atrevido, insistiu para fazer-lhe companhia até a ida ao hotel. Tal fato quase causou uma briga, que foi prontamente evitada pelo anfitrião do jantar. Assim, vendo-se numa situação constrangedora, desculparam-se e levaram a moça até o carro.
Lá gentilmente abriram a porta traseira do carro, e a convidaram a entrar.
Após entrar no carro, o rapaz que havia se convidado para a carona, também entrou e, fazendo-lhe companhia, ficou conversando com a moça, durante todo o caminho.
Isso deixou o dono do carro furibundo.
Afinal de contas, se ele convidara a moça para entrar em seu carro, por que um sujeitinho inconveniente tinha que se intrometer na conversa e se oferecer para acompanhá-la? A presença do incômodo rapaz, atrapalhou sobremaneira, sua aproximação com a moça.
Maçada! Como fazer então, para reverter o quadro desfavorável?
Nisso, o rapaz ficou a pensar.
Enquanto isso o penetra, em conversa com Eleonora fez todo o possível para conhecê-la um pouco.
Curioso e interessado na moça, fez-lhe muitas perguntas. Queria saber de onde ela vinha, se tinha conhecidos na cidade, se estava acompanhada por alguém, por que tinha ido sozinha ao jantar, há quanto tempo ela conhecia o anfitrião do jantar, etc.
Estava verdadeiramente, fascinado pela jovem.
Nisso, enquanto Clarissa acompanhava a aventura de Eleonora na França, no rádio tocou a música “Fascinação”.
“... Os sonhos mais lindos, sonhei
De quimeras mil, um castelo ergui
E no teu olhar
Tonto de emoção,
Com sofreguidão, mil venturas previ
O teu corpo é luz, sedução
Poema divino, cheio de esplendor
Teu sorriso prende, inebria, entontece
De tua fascinação ... ”
Sucesso na voz de Carlos Galhardo, esta música era o tema da heroína Eleonora.
E embalada por trechos da música, a história prosseguiu.
Ao chegar no hotel, delicadamente, agradeceu a gentileza dos dois cavalheiros e adentrou o edifício, numa uma magnífica despedida.
Muito embora os dois tivessem insistido para que ela novamente se encontrasse com eles, Eleonora respondeu que seria impossível. Afinal, dentro de poucos dias, teria que resolver uma série de assuntos, e depois, teria que novamente partir.
Ao ouvirem isso, os dois rapazes ficaram desolados.
Mas não desolados o suficiente para desistirem de novamente encontrá-la. Por isso, sabendo onde a moça estava hospedada, cuidaram em fazer plantão em frente ao hotel, aguardando sua saída.
Finalmente, depois de algumas horas, Eleonora saiu do hotel.
Mas precavida, antes mesmo de sair, teve o cuidado de olhar pela janela, para tentar saber se algum conhecido a estava esperando.
Contudo, dada a altura em que estava o quarto onde estava hospedada, não pôde ver com clareza, se via algum conhecido rondando o hotel.
Mas, por via das dúvidas, a moça tratou logo de se vestir e sair para um passeio pela cidade.
Isso por que, dada a boa impressão que causara na noite anterior, se saísse diretamente para seu encontro secreto, fatalmente seria seguida por algum dos rapazes. Por isso, todo o cuidado era pouco.
Assim, para despistar qualquer um que estivesse em seu encalço, passeou por horas pela cidade praiana.
Com isso, à certa altura, foi abordada pelo rapaz que lhe oferecera carona até o hotel. Gentilmente, este se aproximou da moça, enquanto ela admirava uma vitrine, e perguntando-lhe se havia gostado de alguma das peças que estavam sendo expostas, ofereceu-se para comprá-la.
Mas Eleonora não gostou nem um pouco da atitude do rapaz.
Alegando que não havia necessidade de que ele comprasse nada para ela, a mesma disse que tinha pressa, e tinha que voltar para o hotel.
O rapaz então, ao ouvir isso, perguntou:
-- Desculpe-me Eleonora. Acaso eu fiz algo de errado?
-- Absolutamente. Eu simplesmente tenho que voltar. Desculpe. – disse já caminhando em direção ao hotel.
Nisso, o rapaz, então, parado, comentou:
-- A senhorita mentiu para mim. E não só para mim, para o Herman também. Por quê?
Ouvindo isso, Eleonora voltou-se para trás e encarando-o, respondeu:
-- Eu menti? Quando?
-- Ontem, quando disse que tinha muitos compromissos para os próximos dias e que não poderia aceitar nenhum convite para sair.
-- Me desculpe. Mas não é nada disso, apenas não quis criar uma situação embaraçosa para ambos. – respondeu Eleonora, calmamente.
-- Está bem. Me desculpe então a precipitação. Mas agora que estamos sozinhos, poderia me dar uma resposta para aquele convite que te fiz ontem?
Nisso, maliciosamente, Eleonora perguntou:
-- Que convite?
-- Não me torture. A senhorita sabe muito bem do que estou falando.
Sem ter muita alternativa, Eleonora acabou concordando.
Contudo, para evitar qualquer falsa impressão, insistiu em dizer que se tratava apenas de um encontro entre amigos, nada além disso.
No que o rapaz concordou.
Diante disso, Eleonora despediu-se, e continuou caminhando.
Nisso o rapaz gritou:
-- Não se esqueça, jantar às oito horas.
Eleonora continuou caminhando.
Enquanto caminhava, a moça aproveitava para verificar discretamente, se não era seguida.
Isso por que, precisava se encontrar com seu contato, antes de voltar para o hotel.
Mas temerosa de qualquer aproximação inesperada com um de seus recentes admiradores, decidiu então, voltar novamente ao hotel e trocar de roupa.
E assim o fez.
Enquanto procurava uma roupa mais discreta, aproveitou para criar um penteado diferente. Assim, parecendo mais uma professora do que uma mulher fatal, Eleonora, tomando ainda, o cuidado de sair pela porta dos fundos do hotel, e esgueirando-se entre muros e árvores para não ser vista, conseguiu finalmente sair e seguiu até o local em que teria que se encontrar com seu contato.
Enquanto Eleonora era informada dos próximos passos da missão, posto que toda a conversa que tivera no restaurante fora gravada, os admiradores na moça, tentavam de tudo para localizá-la e marcar um encontro com ela.
Mas Handolph, já tendo conseguido marcar um jantar, estava cuidadosamente escolhendo a roupa que usaria durante a noite. Animado com a possibilidade de conversar a sós com a jovem, já pensava numa estratégia para tentar seduzi-la e fazê-la ficar encantada por ele.
Mal sabia ele, onde estava se metendo.
Ou será que era ela que estava se envolvendo em uma trama muito perigosa?
Enfim, ainda era muito cedo para saber.
Nesse instante então, Clarissa que estava acompanhando a rádio-novela, ouviu dos locutores, as seguintes frases:
“E assim termina mais um emocionante capítulo da sua rádio-novela ‘Encontro com o Desconhecido’. E não percam os próximos capítulos das emocionantes aventuras de nossa heroína aventureira.
Assim, desligou o rádio.
Depois, entediada, resolveu sair um pouco de casa.
Mas, ao contrário das outras vezes, sua saída não se deveu a nenhum encontro clandestino com outros operários. Estava sozinha.
Procurando pensar um pouco, resolveu caminhar para poder refletir sobre os últimos acontecimentos de sua vida. Desejosa de mais movimento, achava que sua vida não tinha sentido. Precisava agir.
Por isso, quando Bruno, o líder do movimento do qual era partidária, cogitou a possibilidade de começarem a agir ... tal fato foi como uma fonte luminosa em sua vida.
Contudo, não queria ter muitas esperanças. Afinal, o movimento ainda começava a se formar. Por isso, talvez ainda não fosse a hora de se organizarem ações. Primeiramente precisavam se fortalecer e terem uma sólida organização. Só assim, estariam em condições de enfrentar os empresários, os grandes perpetuadores das injustiças com as quais tinham que conviver.
Enfim, para enfrentá-los, precisavam ter força, ou então, seriam facilmente desarticulados.
Pensando nisso, Clarissa, resolveu então, que deveria ter paciência.
Por isso, quando tiveram então, uma nova reunião Clarissa disse que não deveriam ter pressa. Para organizar uma ação, precisavam estar preparados para possíveis enfrentamentos e tentativas de desarticulação. Não poderiam ser imprudentes, ou seriam facilmente massacrados. Primeiramente, precisavam se fortalecerem.
Bruno, ouvindo então as palavras da moça, concordou totalmente com ela. Por isso, disse a mesma, que os mesmos só agiriam quando estivessem em condições de enfrentar o empresário – dono da fábrica –, em condições de igualdade.
Clarissa então, sabendo da dificuldade da luta, prometeu paciência.
E assim, os operários retomaram seus trabalhos.
Enquanto alguns aproveitaram para corrigir algumas imperfeições dos textos que redigiram, os demais, com seus textos prontos, trataram logo de prepará-los para a impressão.
Estava quase tudo pronto para a impressão do primeiro jornal do movimento.
No entanto, faltava um detalhe importante.
Qual seria o nome do jornal?
Foi então que Bruno deu-se conta de que havia se esquecido de um detalhe fundamental. Por isso, ao deparar-se com esta situação, prometeu pensar e escolher cuidadosamente um nome para o jornal.
E assim, durante semanas, ficou pensando num nome para dar ao jornal.
Entre os nomes que pensou, estavam: ‘A Voz do Operário’; ‘Sem Nome’; ‘Semanário do Povo’; ‘Revolução Fabril’. Mas nenhum desses nomes, lhe parecia bom o suficiente para passar a ser o nome do jornal.
Por isso, ao final de duas semanas, sem saber ao certo, qual seria o nome do jornal, perguntou aos seus companheiros, se os mesmos tinham alguma sugestão.
Para seu desespero, nenhum deles apresentou uma boa idéia.
Clarissa então, percebendo que estavam diante de um impasse, perguntou então a Bruno, em quais nomes ele tinha pensado.
Foi então que o rapaz disse os nomes.
Ao ouvir os nomes, considerou que o primeiro e o último nome, eram muito bons.
Mas para Bruno, seria importante que o jornal tivesse um nome de impacto, que se associasse ao ideal de luta de todos eles.
Clarissa, então, percebendo a insatisfação de Bruno, sugeriu que colocassem: ‘Revolução Fabril: A Voz do Operário’.
Ao ouvirem a sugestão de Clarissa, os demais sequazes discordaram. O nome era muito comprido.
Mas Bruno, encantado com o nome, insistiu:
-- Não. É esse o nome do jornal.
Diante disso, tiveram que concordar.
Isso por que, Bruno estava convencido de que este era o nome perfeito para o jornal.
Assim, após a escolha do nome, passaram a imprimir jornal.
E imprimindo o famigerado jornal, passaram quase toda a madrugada.
Após, como já era chegada a hora de se divulgar os jornais recém impressos, Bruno achou por bem, recrutar Clarissa e mais alguns auxiliares para espalharem os jornais pela cidade.
Clarissa, ao se ver escolhida para executar a tarefa, encheu-se de animação.
Finalmente iria fazer algo de útil para o movimento do qual fazia parte. À exceção do havia feito anteriormente, ao arrecadar dinheiro para a confecção do jornal, o que já foi há algum tempo, já estava começando a sentir falta de movimento.
Sim, por que a moça, desde que passara a participar das reuniões, sentia que as coisas poderiam se dinamizar.
Enfim, parecia que as coisas estavam mudando.
Assim, quando recebeu a ordem de sair madrugada afora entregando os jornais, aceitou prontamente a incumbência. Contudo, sugeriu a Bruno, que este organizasse pequenos grupos, para que assim, o serviço terminasse mais depressa. No entanto, precisavam agir discretamente, na sorrelfa, ou então, facilmente seriam pegos.
Dessa forma, atarefados que estavam, logo que se retiraram do velho galpão, decidindo-se cada qual, para que lado seguiriam, combinaram entre si, onde cada um deles iria sair para entregar o jornal.
E assim, sabedores de onde tinham que ir, trataram de seguirem seus respectivos caminhos.
Clarissa, então, percebendo que já era tarde, resolveu se apressar, ou não conseguiria entregar em tempo, todos os jornais.
Por conta disso, caminhou durante toda a madrugada por São Paulo, entregando os jornais, de casa em casa.
De tão longa sua caminhada, durante o longo trajeto que empreendeu, pôde ver alguns boêmios na rua.
Mas, por ser tratar de uma época antiga, boa parte dos moradores àquela altura, já dormiam a sono solto.
Portanto, à exceção de alguns boêmios, não se via vivalma nas ruas da cidade.
Silenciosa, a cidade parecia dormir, assim como as pessoas que nela moravam.
Tão silenciosa que Clarissa podia até ouvir seus pensamentos.
Sim, por que enquanto caminhava a garota, ensimesmada, pensava na vida e nos últimos acontecimentos que sucederam.
Surpresa ainda com os rumos que sua vida havia tomado, a moça se perguntava agora, como tudo havia se demudado tão rapidamente.
Isso por que, apesar da condição de vida de seus tios, mesmo em criança, exceto para ajudar em casa, nunca foi compelida a trabalhar.
Zelosos, criança para eles tinha mais é que estudar e brincar. Por isso, graças a eles, Clarissa conseguiu ao menos, terminar o primeiro grau.
Dessa forma, seu trabalho na fábrica de tecidos, era o seu primeiro trabalho de fato. E a despeito de suas convicções sociais, gostava muito de seu trabalho. O que único problema é que nunca fora de admitir injustiças. Por isso, considerava desumanas, as condições de trabalho a que ela, e muitos outros operários, estavam submetidos.
Mas, tirando isso, Clarissa estava gostando de trabalhar, e o fato de estar ganhando seu próprio dinheiro, era uma grande conquista para ela. Contudo, dadas as condições de vida que tinha, uma boa parcela do que ganhava ía fatalmente para as mãos de sua tia Raquel, já que era ela quem cuidava das compras da casa.
Dessarte, desde pequena, por influência de um tio afastado, foi incutida na idéia de que a sociedade em que viviam era muito injusta com os pobres.
Assim, foi dado o primeiro passo para que Clarissa passasse a se interessar cada vez mais pelo assunto. Acostumada a ouvir esse seu tio comentando sobre o assunto, passou então a se interessar mais e mais pelo tema.
Por conta disso, Raquel, Bartolomeu e Ludovico chegaram a discutir seriamente com Ataúfo – o referido tio. Extremamente politizado, o tio conseguiu convencer a sobrinha, de que algo de muito errado vinha acontecendo, e que isto tinha que mudar.
Além disso, Ataúfo, sempre que aparecia para visitar os irmãos, trazia consigo algum texto recentemente publicado sobre o assunto, para que a sobrinha pudesse ler.
E apesar disso causar alguns problemas para ele, nunca deixou de levar livros, revistas e jornais que tratavam do assunto. Queria que a sobrinha conhecesse melhor o movimento comunista. Ademais, sempre que a garota perguntava algo sobre o assunto, ele sempre respondia.
Ao falar da Revolução Russa de 1917, percebeu que estava conseguindo ganhar mais uma sectária para suas idéias.
Tal fato provocou uma briga na família.
Ludovico e Bartolomeu, percebendo a doutrinação em cima de Clarissa, foram logo tomar satisfações com o irmão. Afinal de contas, os três não estavam cuidando da menina, para que um destrambelhado como ele, viesse encher a cabeça dela com bobagens.
Ataúfo então, percebendo a reprovação dos irmãos, apenas disse:
-- Sinceramente. Eu não entendo vocês. Mesmo sendo os maiores prejudicados neste processo, vocês agem como se nada disso se referisse à suas vidas. A exclusão para vocês é algo que só acontece para os outros. É como se tudo estivesse ótimo para nós.
Foi então que, depois de ouvir essas palavras, Ludovico atalhou:
-- Espere um momento. Nós temos uma vida boa. Conseguimos nos manter com o nosso trabalho e temos uma vida razoavelmente boa. Apesar dos problemas, não temos do que nos queixar.
-- Vocês são uns conformados. Aceitam tudo. Mas isso não pode continuar. As pessoas tem o direito de saber que podem ter uma vida melhor. Afinal de contas nem todo mundo é obrigado a aceitar continuar vivendo na miséria, em condições sub-humanas de existência. É isso que fortalece esse sistema, o conformismo das pessoas em aceitar tudo isso caladas. Por que que tudo tem que ficar nas mãos de uns poucos privilegiados? Eu também tenho direito a um pouco de felicidade. Tenho direito a uma melhor condição de vida.
Nisso, Bartolomeu que até o momento, praticamente só ouvia a discussão, resolveu então tomar parte. Dizendo que aquela idéia de sociedade justa e igualitária que o irmão tinha era uma quimera, comentou com o irmão que tudo do que se faz com base no ideário da justiça, começa com sangue e morte e termina mal.
Mas, Ataúfo, convicto de que o ideal era o justo, retrucou:
-- Ah, é mesmo? Pois então me explique como foi que a Revolução Francesa, na qual houve um grande derramamento de sangue, conseguiu então espalhar pelo mundo os ideais de liberdade, igualdade e fraternidade? Como é que com aquela luta sanguinária, conseguiram derrubar um sistema político despotista e florescer as bases de um sistema político mais justo? Me explique isso. Como pode ser, não é mesmo? Mas infelizmente, em raros momentos na história, é que foi possível se alcançar algum ideal, por meio de luta pacífica.
-- Ora Ataúfo, não me venha com essas tolices. Nós podemos não conhecer a história, mas eu e Ludovico sabemos muito bem, que as mudanças não acontecem da noite para o dia, e muito provavelmente, de todos esses movimentos operários de que ouvimos tanto falar, poucos conseguirão alguma coisa. E mesmo quando conseguirem, se conseguirem, provavelmente os benefícios não se reverterão para os que lutaram. Além disso, vai ser preciso que muito sangue seja derramado, para se alcançar algum resultado. Por isso, se você não dá valor a sua vida, respeite ao menos a vida de sua sobrinha que ainda é uma criança. Está claro? Não a envolva nesse tipo de problema.
Mas mesmo com as discussões, Ataúfo nunca deixou de levar matérias para a sobrinha ler.
Afinal a menina já havia sido mordida pelo bicho do inconformismo e da vontade de mudar.
Assim, mesmo diante da resistência de seus tios mais próximos, a única família que possuía, Clarissa, continuava a ouvir e a acatar às palavras de seu tio afastado. Envolvida pelos ideais que seu tio Ataúfo lhe lançara, sempre que podia, lia algo referente ao movimento comunista.
E assim, muito embora isso contrariasse muito a vontade de seus tios, Ataúfo, quando de passagem pela cidade, sempre aproveitava para passar na casa dos irmãos e contar as novidades.
Das várias vezes que esteve de passagem por São Paulo, muitas delas se deveram ao fato de ter arrumado confusão na cidade em que morava.
Por conta de suas idéias, freqüentemente tinha que se mudar. Isso por que, as autoridades não gostavam de seu discurso político.
Por conta deste discurso, conseguiu amealhar muitos sectários para suas idéias, e assim, mobilizou muita gente. Com esse apoio, conseguiu até fazer algumas greves e paralisar as atividades de algumas fábricas.
Tal fato, no entanto, não foi visto com bons olhos pelo empresariado do lugar. E assim, ameaçado de prisão, e perseguido pela polícia, para não ser preso, fugia dessas cidades.
E assim, dessa maneira, mais uma vez, o motivo para sua vinda se deveu a mais uma de suas confusões.
Ludovico, já cansado das confusões do irmão, chegou até a comentar:
-- Ataúfo. Quando é que você vai tomar jeito?
Mas não adiantava que o aconselhassem, pois o mesmo não dava ouvidos às súplicas de seus irmãos.
Mesmo quando eles o avisavam de que nem sempre ele conseguiria fugir, ainda assim, ele insistia em continuar metido em confusão.
No entanto, o que mais preocupava a Raquel, Ludovico e Bartolomeu, era a sobrinha Clarissa. Isso por que, dada a pouca idade da menina, para eles, ela era um alvo fácil de todas aquelas idéias malucas do tio.
Por isso, sempre que Ataúfo estava visitando a família, os mesmos procuravam alertá-la de que nem tudo o que ele falava acontecia daquela forma.
Por isso, não deveria levar a sério suas idéias.
Mas já era tarde.
Convencida dos bons propósitos da luta, conforme os anos se passavam, mais e mais ela tinha certeza de que estava no caminho certo.
Para desespero de Raquel, Bartolomeu e Ludovico, nada a demovia da idéia de se integrar a um desses movimentos.
Contudo, num primeiro momento, conseguiram refrear os impulsos de Clarissa. Mas até quando?
Nisso, Clarissa envolta em pensamentos, continuou andando. Precisava entregar todos os jornais ainda aquela noite. Por isso, precisa continuar andando.
E assim o fez.
Ao final da madrugada, já havia entregue todos os jornais.
Ao voltar para casa, estava alquebrada.
Por isso, procurando evitar que seus tios acordassem, entrou pé ante pé em casa. Cuidadosamente, adentrou seu quarto, e cansada que estava, jogou-se na cama.
No dia seguinte, logo que acordou, ao se dirigir até a copa, antes mesmo de pegar o bule de café, foi imediatamente, inquirida por sua tia Raquel.
-- Posso saber onde foi que a senhorita esteve?
-- Em lugar nenhum. – respondeu a moça.
-- Não se faça de sonsa. Você sabe muito bem do que eu estou falando.
-- Me desculpe tia. Mas eu realmente não sei do que a senhora está falando. Ontem eu cheguei um pouco tarde sim, mas é por que eu estava fazendo serão na fábrica. Vocês sabem disso.
-- Há, é mesmo?
-- Sim. Por isso que quando eu cheguei, vocês já estavam dormindo.
-- Mas então, você faz serão quase todos os dias?
-- Pois sim. É isso mesmo. E é por isso que muitos operários estão se mobilizando. Não temos que aceitar esse tipo de situação.
Ao ouvir isso, sua tia ficou preocupada. Afinal de contas, por que sua sobrinha estava falando sobre este assunto?
Pensativa, chegou a seguinte conclusão:
-- Por um acaso, a senhorita não andou se metendo com esses malucos?
-- Que malucos?
-- Clarissa. Não me enrole. Você sabe muito bem do que eu estou falando. Me responda, você está envolvida com algum movimento clandestino? Está?
-- Por que a senhora está me perguntando isso? Acaso acha que estou fazendo alguma coisa errada?
-- Clarissa, me responda logo. Olha que eu estou perdendo a paciência.
-- Mas tia, o que eu posso dizer, eu não estou fazendo nada de mais. Eu só cheguei tarde ontem por que, como não tinha condução, eu tive que voltar a pé.
-- E a que horas, a senhorita retornou?
-- Ah, madrinha. Eu cheguei morta de cansaço. Como é que eu vou poder me lembrar? Do jeito que eu cheguei, já me atirei na cama e dormi com a roupa que estava.
-- É. Estou vendo. Deve ter chegado muito tarde mesmo. Nem eu mesma, percebi.
-- Tia, por favor. Acaso eu já dei motivos para você desconfiar de mim?
-- Não, minha querida. É que estamos muito preocupados com você. De uns tempos pra cá, você tem andado muito estranha. Desde que você começou a trabalhar naquela fábrica, que você está diferente. Fica pouco tempo em casa. E mesmo quando está de folga, arruma algum motivo para ficar longe da gente.
Clarissa, então, percebendo que a vigilância excessiva era resultado de seu comportamento negligente com a família, respondeu:
-- Oh, tia. Acaso acha que eu não me importo com vocês? Pois sim, me importo muito. Só que às vezes eu também sinto vontade de ficar sozinha, ou mesmo conversando com minhas colegas da fábrica. Mas, independente disso, eu gosto muito dos meus três tios queridos. Não só gosto, por que gostar é pouco, amo-lhes, e lhes sou muito grata pelo que fizeram por mim, durante todos esses anos. Realmente, não tenho do que me queixar, desde que me entendo por gente, vocês são a única família que eu tenho.
-- Ah, Clarissa, minha querida. – respondeu a tia docemente enquanto se encaminhava para abraçar a sobrinha.
De tão enternecida com as palavras da sobrinha, delicadamente pegou o bule de café, e perguntou a moça, o quanto ele queria da bebida. Depois, cortou um pedaço de pão e deu para ela comer.
Quando Bartolomeu e Ludovico voltaram da rua, chegaram até, a ficarem admirados com a cena. Isso por que, fazia tempos, que não viam Raquel tão dedicada a sobrinha.
Constantemente preocupada com o comportamento da moça, sua tia ultimamente só se preocupava em vigiá-la. Não por que fosse má, mas por que temia que a sobrinha, estivesse se metendo em encrencas.
Em razão da influência nefanda de Ataúfo, temiam que a moça se guiasse pelas mesmas idéias do tio.
Mas, por enquanto, para eles, parecia que tudo estava calmo.
Clarissa, também, visando não chamar a atenção dos tios, resolveu naquele dia, permanecer em casa.
Enquanto fazia companhia a tia, aproveitava para auxiliá-la em seu serviço doméstico. Prestativa, até sua tia espantou-se. Não que a moça não ajudasse em casa, mas é que nem sempre ela estava disponível para tanto.
Mas como ultimamente passava boa parte do tempo longe de casa, raramente ajudava sua tia com as roupas. Além disso, por voltar constantemente, tarde para casa, não tinha tempo para mais nada além do trabalho.
Por isso, ao ajudar Raquel, a lavar algumas das roupas de suas freguesas era uma novidade.
Contudo, não pensem que Clarissa gostava de mentir para seus tios.
Ela simplesmente o fazia por que, se contasse a eles a verdade, certamente seus tios fariam de tudo para impedi-la de continuar. E por isso não podia deixar que eles soubessem.
No entanto, não poderia esconder este fato, por muito tempo. Mais cedo ou mais tarde, seus tios acabariam por descobrir que a moça estava envolvida em algo muito sério. Mas isso é assunto para os próximos capítulos.
Luciana Celestino dos Santos
É permitida a reprodução, desde que citada a autoria.
Como não podia chamar a atenção para o que estava fazendo, aconselhou aos próprios companheiros, realizarem às reuniões em horários apropriados.
Com isso, após dias alguns os mesmos passaram a se reunir até em fins de semana. Tudo com vistas a redigirem os textos para que o jornal fosse finalmente impresso.
Empolgados, conforme iam escrevendo as matérias, aproveitavam para mostrá-las a Bruno, para que esse autorizasse ou não a edição das mesmas.
Esse, impressionado que estava com a dedicação da moça, ao perceber o desempenho de seus sequazes na pesquisa e redação das matérias, sempre sugeria que os mesmos levassem as matérias à apreciação de Clarissa.
A moça ao ler os textos, disse a Bruno que os mesmos estavam bons. Mas ela, interessada que estava na publicação do jornal, sugeriu que também poderia escrever algo.
Bruno no entanto, considerou ainda prematura a participação da jovem na efetiva redação do jornal.
Tal fato, entretanto a frustrou deveras. Escrever sempre fora seu maior sonho. Contudo, ao ver-se diante da possibilidade de realizar seu desiderato, foi inesperadamente tolhida em seu intento. Isso a deixou profundamente desolada. Tanto que, quando voltou para casa, depois da infrutífera reunião, seus tios preocupados, quiseram logo saber o que teria acontecido.
Mas ela, fechada em si, não quis saber de conversa. Decepcionada com os rumos que sua participação estava tomando na organização, Clarissa chegou até mesmo a cogitar a possibilidade de desistir de tudo, já que não estava tendo voz ativa.
Por isso, Bruno, o líder do movimento, certa vez, ao ver a moça tão desolada, resolver tomar uma atitude no sentido de tornar sua participação mais ativa.
Preocupado com a possibilidade da moça abandonar a luta, este resolveu incluí-la em uma futura ação, que ainda estava planejando.
Portanto, logo que cogitou a possibilidade de uma ação efetiva, chamou a moça para uma conversa reservada. Nessa conversa, Bruno então comentou sobre essa sua intenção.
Contudo, como ainda não tinha detalhes da operação, não havia como adiantar nada.
Mas para Clarissa, que ultimamente não estava vendo nenhuma utilidade em sua participação nas reuniões, decidiu então, que aguardaria mais um pouco para tomar uma decisão.
Sim, precisa verificar até que ponto chegariam os acontecimentos, para então se decidir se permaneceria ou não lutando.
Isso por que, quando passou a fazer parte da organização clandestina, o que ela mais queria era participar de ações. Também, se fosse possível, gostaria de expor as outras pessoas, sua maneira de pensar.
Sim, ela queria convencer as pessoas de que a luta por melhores condições de trabalho era justa. Tão justa, que a tão propalada luta não era só dela, desta organização, ou daquele sindicato. A luta era de todos os trabalhadores.
No entanto, para que isso acontecesse, precisava ser conhecida. E que meio melhor de se tornar conhecida do que escrevendo.
Clarissa acreditava nisso.
Idealista, sempre que em conversas, discutiu sobre as desigualdades sociais com seus tios, fez questão de comentar que todos deveriam lutar por seus direitos. Que assim o fizessem, com certeza, a luta seria mais fácil.
Mas, infelizmente para ela, as pessoas estava se acovardando. Temerosas da reação da elite econômica do país, muitos trabalhadores temiam reagir contra essa exploração.
Ouvir isso, para Clarissa era pior do que apanhar de fato.
Por isso quando a moça, via seus tios tão acomodados em seu conformismo, chegava até a sentir um certo desgosto.
Para eles, ter que viver num lugar miserável como aquele, sem conforto e sem privacidade era algo quase que normal. Considerando que conseguiam o necessário para a subsistência e argumentando que não precisavam de muita coisa, diziam que a vida deles era boa na medida do possível.
Mas, para Clarissa, trabalhar para sobreviver não era certo.
Em suas palavras:
-- Sempre me disseram que o trabalho enobrece o homem. Mas o que eu vejo, é um empobrecimento geral do homem com o trabalho. Aqui nesta terra, trabalha-se para sobreviver. Para mim, isto não é vida.
Bartolomeu então comentou:
-- Pois eu gosto muito da minha vida. Não vejo nada de mau em trabalhar. Até gosto.
-- E eu não estou dizendo o contrário. Mas existe uma diferença muito grande entre trabalho e exploração humana. Não somos escravos. Não temos que ficar submetidos à jornadas de trabalho extenuantes. Temos o direito de descansarmos e recebermos uma remuneração justa pelo nosso trabalho. – insistiu a moça.
Mas não adiantava. Como todas as outras conversas, essa também resultou infrutífera. Afinal, assim como ela, seus tios eram muito teimosos para entenderem a importância da luta que estava sendo travada.
Assim, sempre que esse tipo de conversa se iniciava na casa da família, acabava resultando em um grande vazio.
Ademais, como já fora dito várias vezes, Clarissa devia se conter ou logo logo descobririam a razão de seus longos sumiços e o por que de voltar tantas vezes, tão tarde para casa.
Por isso, retomando a estratégia já iniciada, sempre que podia aproveitava para ouvir um pouco de rádio e se distraía com a rádio novela.
Enquanto o locutor anunciava mais um capítulo da rádio-novela ‘Encontro com o Desconhecido’, Clarissa aproveitou para aumentar um pouco o volume do rádio.
Isso por que, queria que seus tios tomassem conhecimento de que ela passara a ter outros interesses.
Nisso, o narrador retomou a história. Enquanto Eleonora aproveitava as férias oferecidas pela organização, banhando-se e aproveitando o sol da Riviera Francesa, a moça foi novamente chamada para desempenhar uma missão.
Ao receber o comunicado de um misterioso funcionário do hotel em que estava hospedada, a moça, ao contrário do que seria de se esperar, ficou exultante.
Sim, finalmente depois de algumas semanas de férias, poderia novamente imiscuir-se em nova trama.
Ao receber o bilhete do funcionário, no saguão do hotel, tratou logo de subir para seu quarto, e leu-o calmamente.
Neste constava que haveria um jantar com alguns altos funcionários que estavam de férias no local.
Como estratégia da organização da qual fazia parte, apropriadamente, recebeu também um convite para fazer parte da celebração.
Mas, desta vez, ao contrário da anterior, deveria juntar-se aos convidados e em meio a brindes e comemorações, e descobrir detalhes sobre os próximos passos que seriam dados em relação a guerra que acontecia.
Quanto a isso, precisava ser discreta. Em relação ao resto, não.
Dessa forma, quando finalmente era chegada a hora do famigerado jantar, grande parte dos convidados já havia chegado ao local.
Eleonora no entanto, a despeito da pontualidade dos europeus, chegou bastante atrasada ao lugar.
Contudo, logo que adentrou o saguão do hotel e se encaminhou para o restaurante, todos pararam para olhá-la, até mesmo as mulheres, que entre conversas e frivolidades, acompanhavam cada passo da misteriosa jovem que adentrava o salão do restaurante.
Usando um exuberante vestido de veludo verde, delicadamente moldado ao seu corpo, a jovem Eleonora estava realmente magnífica. De tão bem vestida, ofuscou até mesmo as convidadas mais belas do banquete.
Esse era o seu intuito.
Calculista, media cada um de seus passos até conseguir alcançar seus objetivos. E nesse caso, o objetivo, era chamar a atenção. Como orientação no bilhete que recebera, horas antes, apenas, ‘seja o foco de todas as atenções’.
E que forma melhor de o ser, do que se preparando com o esmero e alinho? Precisava estar perfeita esta noite, e desta forma, o jantar prometia.
Após sua entrada triunfal no salão onde ficava o restaurante, aproveitou para sentar-se no balcão do bar. Um belo e sofisticado bar, diga-se de passagem. Com bancos forrados de veludo vermelho, boas bebidas, e ao fundo um som de piano. Dessa forma, a moça podia ficar à vista de todos os convidados do jantar.
Os mesmos, ao verem-na tão sozinha, foram solertes em convidá-la para sentar-se junto a eles.
Eles no caso, estavam sentados em uma das mesas centrais do restaurante, possuindo portanto, um ótimo campo de visão.
Estava tudo indo muito bem para ela.
Contudo, não se pode dizer o mesmo, para as mulheres dos convidados. Grande parte delas, enciumadas com a presença de tão inconveniente mulher, tentaram fazer o possível para que seus respectivos maridos fossem embora acompanhando-as. Entrementes, não foi possível.
Alegando que seria uma grande desfeita saírem sem se despedirem e nem ao menos cearem, conseguiram, pelo menos por alguns momentos, frearem os impulsos hostis de suas mulheres.
Com isso se denota que jantar seria demorado.
Por isso, enquanto esperavam pela refeição, os convivas eram constantemente servidos de bebidas e entradas.
E nisso, durante a espera pela refeição principal, os homens aproveitavam para falar de seus principais projetos. Até por que estavam entre seus pares, e assim não haveria o problema de cometerem inconfidências.
Por esta razão, na mesa que Eleonora dividia com outros homens, os mesmos, aproveitando para exibirem seu grande poder para ela, não se cansavam de repetir que era influentes. Além disso, não se furtaram de comentar as peripécias em que se envolveram, só para impressioná-la. Sim, estava sendo muito fácil descobrir detalhes da guerra. Não só os detalhes, como também, alguns dos crimes cometidos.
A certa altura, rodeada de tantas confissões e soberba, a moça levantou-se, e desculpando-se, comentou que precisava ir até o toillet.
Assim encaminhou-se para lá e retornou, após alguns minutos.
Quando voltou a ocupar seu lugar junto a mesa, os mesmos continuaram a adulá-la. Cada qual a sua maneira, mas todos visando ficar a sós com ela, após o jantar.
Nisso, quando ela percebia que a conversa estava recaindo em amenidades, aproveitava a oportunidade para instigá-los:
-- Mas então, rapazes, me contem o que de mais terrível os senhores fizeram durante a guerra, afinal, a conversa estava tão interessante!
E nisso a conversa retomava o rumo originalmente iniciado.
Era um grande pesar ouvir tudo aquilo.
As atrocidades e ignomínias cometidas contra as minorias eram realmente brutais, sem contar a ganância e a volúpia pelo lucro que tomava conta desses homens. Para eles o dinheiro era sinônimo de poder. Para tanto, precisavam do maior número de notas para que assim, se fizessem respeitar.
Mas esse era o trabalho de Eleonora, e a jovem não podia se furtar a isso.
Assim, mesmo diante dos riscos envolvidos, resolvera se tornara espiã. Tinha verdadeiro fascínio pelo mister.
Contudo, precisava ser cautelosa.
Afinal, por implicar em segredos de guerra, não podia deixar que percebessem que se tratava de uma espiã. Assim, quando percebeu que a conversa estava indo longe demais, resolveu interrompê-los perguntando, o seguinte:
-- Então estou diante de bem sucedidos homens de negócio?
No que eles responderam que sim. Tão bem sucedidos que tinham grandes aliados no exército e na polícia secreta alemã.
Aliás, diga-se de passagem, apesar de estarem na França, muitos dos que ali participavam do jantar, eram estrangeiros, grande parte, de origem germânica.
Daí resultando o interesse da organização em ter alguém de confiança, acompanhando os passos dos principais convidados do jantar. E nesse ponto, acertaram em cheio ao escolherem-na para a missão. Elegante, polida, educada e charmosa, não seria difícil convencer a todos que ali estavam, de que se tratava de uma verdadeira dama.
Ousada, mas uma dama.
E assim, dessa maneira, a conversa estava rendendo frutos.
Contudo, chegou a hora do jantar.
Como prato principal, uma suculenta lagosta acompanhada de um bom vinho da terra.
Nesse ponto um dos convidados chegou até a comentar:
-- Realmente, um dos melhores vinhos do mundo.
E assim, brindaram. Em seguida cearam.
Mas antes disso, o conviva, satisfeito com a presença de todos os convidados, ergueu-se de sua cadeira e propôs um brinde.
Feliz, estava brindando ao futuro casamento de sua filha, com uma das grandes fortunas da França. Satisfeito com o enlace, propôs a todos que celebrassem com ele esta alegria.
Assim, todos brindaram novamente.
Depois, conforme já dito, todos cearam.
Mas após a ceia, a despeito do término do jantar, alguns dos convidados tentados com a magnífica pista de dança que se apresentava para eles, no magnífico salão onde ficava o restaurante, aproveitaram para, em companhia das melodiosas músicas tocadas no piano, dançarem.
E assim, dançando, muitos dos convidados permaneceram por horas no restaurante.
Eleonora por exemplo, cercada pelos cavalheiros que lhe fizeram companhia durante o jantar, se viu compelida a dançar com todos eles.
Isso por que, maravilhados com a moça, quiseram testá-la na pista de dança.
Assim, para surpresa dos mesmos, Eleonora deslizou na pista.
E apesar de ter de dançar com muitos dos convidados, não perdeu nem por um instante a classe. Exímia dançarina, encantou a todos que com ela dançaram.
Entre passos marcados e valsas, Eleonora não decepcionou.
Mas, com o passar das horas, Eleonora comentou que precisava partir.
Como teria um compromisso durante a manhã, era imperioso que fosse logo para o hotel onde estava hospedada.
Diante disso, alguns de seus admiradores insistiram para que ela ficasse mais um pouco.
Mas Eleonora, reiterando a necessidade de se retirar, insistiu que precisava ir embora.
Com isso, sem terem como convencê-la a ficar mais um pouco, três dos rapazes que lhe fizeram companhia durante todo o jantar, fizeram questão de acompanha-la até o hotel onde estava hospedada.
Eleonora no entanto, resistiu a proposta. Alegando que não havia necessidade de tamanho cuidado, recusou o quanto pôde, a oferta.
Mas os rapazes eram insistentes.
Assim, diante de tanta insistência dos mesmos, acabou aceitando o convite e voltou para o hotel, na companhia de dois deles.
Isso por que, como todos ofereceram-se para levá-la até o local onde estava hospedada e ela era apenas uma, Eleonora só poderia seguir em um carro. Com isso, depois da disputa para saber quem a levaria de carro, um dos rapazes, muito atrevido, insistiu para fazer-lhe companhia até a ida ao hotel. Tal fato quase causou uma briga, que foi prontamente evitada pelo anfitrião do jantar. Assim, vendo-se numa situação constrangedora, desculparam-se e levaram a moça até o carro.
Lá gentilmente abriram a porta traseira do carro, e a convidaram a entrar.
Após entrar no carro, o rapaz que havia se convidado para a carona, também entrou e, fazendo-lhe companhia, ficou conversando com a moça, durante todo o caminho.
Isso deixou o dono do carro furibundo.
Afinal de contas, se ele convidara a moça para entrar em seu carro, por que um sujeitinho inconveniente tinha que se intrometer na conversa e se oferecer para acompanhá-la? A presença do incômodo rapaz, atrapalhou sobremaneira, sua aproximação com a moça.
Maçada! Como fazer então, para reverter o quadro desfavorável?
Nisso, o rapaz ficou a pensar.
Enquanto isso o penetra, em conversa com Eleonora fez todo o possível para conhecê-la um pouco.
Curioso e interessado na moça, fez-lhe muitas perguntas. Queria saber de onde ela vinha, se tinha conhecidos na cidade, se estava acompanhada por alguém, por que tinha ido sozinha ao jantar, há quanto tempo ela conhecia o anfitrião do jantar, etc.
Estava verdadeiramente, fascinado pela jovem.
Nisso, enquanto Clarissa acompanhava a aventura de Eleonora na França, no rádio tocou a música “Fascinação”.
“... Os sonhos mais lindos, sonhei
De quimeras mil, um castelo ergui
E no teu olhar
Tonto de emoção,
Com sofreguidão, mil venturas previ
O teu corpo é luz, sedução
Poema divino, cheio de esplendor
Teu sorriso prende, inebria, entontece
De tua fascinação ... ”
Sucesso na voz de Carlos Galhardo, esta música era o tema da heroína Eleonora.
E embalada por trechos da música, a história prosseguiu.
Ao chegar no hotel, delicadamente, agradeceu a gentileza dos dois cavalheiros e adentrou o edifício, numa uma magnífica despedida.
Muito embora os dois tivessem insistido para que ela novamente se encontrasse com eles, Eleonora respondeu que seria impossível. Afinal, dentro de poucos dias, teria que resolver uma série de assuntos, e depois, teria que novamente partir.
Ao ouvirem isso, os dois rapazes ficaram desolados.
Mas não desolados o suficiente para desistirem de novamente encontrá-la. Por isso, sabendo onde a moça estava hospedada, cuidaram em fazer plantão em frente ao hotel, aguardando sua saída.
Finalmente, depois de algumas horas, Eleonora saiu do hotel.
Mas precavida, antes mesmo de sair, teve o cuidado de olhar pela janela, para tentar saber se algum conhecido a estava esperando.
Contudo, dada a altura em que estava o quarto onde estava hospedada, não pôde ver com clareza, se via algum conhecido rondando o hotel.
Mas, por via das dúvidas, a moça tratou logo de se vestir e sair para um passeio pela cidade.
Isso por que, dada a boa impressão que causara na noite anterior, se saísse diretamente para seu encontro secreto, fatalmente seria seguida por algum dos rapazes. Por isso, todo o cuidado era pouco.
Assim, para despistar qualquer um que estivesse em seu encalço, passeou por horas pela cidade praiana.
Com isso, à certa altura, foi abordada pelo rapaz que lhe oferecera carona até o hotel. Gentilmente, este se aproximou da moça, enquanto ela admirava uma vitrine, e perguntando-lhe se havia gostado de alguma das peças que estavam sendo expostas, ofereceu-se para comprá-la.
Mas Eleonora não gostou nem um pouco da atitude do rapaz.
Alegando que não havia necessidade de que ele comprasse nada para ela, a mesma disse que tinha pressa, e tinha que voltar para o hotel.
O rapaz então, ao ouvir isso, perguntou:
-- Desculpe-me Eleonora. Acaso eu fiz algo de errado?
-- Absolutamente. Eu simplesmente tenho que voltar. Desculpe. – disse já caminhando em direção ao hotel.
Nisso, o rapaz, então, parado, comentou:
-- A senhorita mentiu para mim. E não só para mim, para o Herman também. Por quê?
Ouvindo isso, Eleonora voltou-se para trás e encarando-o, respondeu:
-- Eu menti? Quando?
-- Ontem, quando disse que tinha muitos compromissos para os próximos dias e que não poderia aceitar nenhum convite para sair.
-- Me desculpe. Mas não é nada disso, apenas não quis criar uma situação embaraçosa para ambos. – respondeu Eleonora, calmamente.
-- Está bem. Me desculpe então a precipitação. Mas agora que estamos sozinhos, poderia me dar uma resposta para aquele convite que te fiz ontem?
Nisso, maliciosamente, Eleonora perguntou:
-- Que convite?
-- Não me torture. A senhorita sabe muito bem do que estou falando.
Sem ter muita alternativa, Eleonora acabou concordando.
Contudo, para evitar qualquer falsa impressão, insistiu em dizer que se tratava apenas de um encontro entre amigos, nada além disso.
No que o rapaz concordou.
Diante disso, Eleonora despediu-se, e continuou caminhando.
Nisso o rapaz gritou:
-- Não se esqueça, jantar às oito horas.
Eleonora continuou caminhando.
Enquanto caminhava, a moça aproveitava para verificar discretamente, se não era seguida.
Isso por que, precisava se encontrar com seu contato, antes de voltar para o hotel.
Mas temerosa de qualquer aproximação inesperada com um de seus recentes admiradores, decidiu então, voltar novamente ao hotel e trocar de roupa.
E assim o fez.
Enquanto procurava uma roupa mais discreta, aproveitou para criar um penteado diferente. Assim, parecendo mais uma professora do que uma mulher fatal, Eleonora, tomando ainda, o cuidado de sair pela porta dos fundos do hotel, e esgueirando-se entre muros e árvores para não ser vista, conseguiu finalmente sair e seguiu até o local em que teria que se encontrar com seu contato.
Enquanto Eleonora era informada dos próximos passos da missão, posto que toda a conversa que tivera no restaurante fora gravada, os admiradores na moça, tentavam de tudo para localizá-la e marcar um encontro com ela.
Mas Handolph, já tendo conseguido marcar um jantar, estava cuidadosamente escolhendo a roupa que usaria durante a noite. Animado com a possibilidade de conversar a sós com a jovem, já pensava numa estratégia para tentar seduzi-la e fazê-la ficar encantada por ele.
Mal sabia ele, onde estava se metendo.
Ou será que era ela que estava se envolvendo em uma trama muito perigosa?
Enfim, ainda era muito cedo para saber.
Nesse instante então, Clarissa que estava acompanhando a rádio-novela, ouviu dos locutores, as seguintes frases:
“E assim termina mais um emocionante capítulo da sua rádio-novela ‘Encontro com o Desconhecido’. E não percam os próximos capítulos das emocionantes aventuras de nossa heroína aventureira.
Assim, desligou o rádio.
Depois, entediada, resolveu sair um pouco de casa.
Mas, ao contrário das outras vezes, sua saída não se deveu a nenhum encontro clandestino com outros operários. Estava sozinha.
Procurando pensar um pouco, resolveu caminhar para poder refletir sobre os últimos acontecimentos de sua vida. Desejosa de mais movimento, achava que sua vida não tinha sentido. Precisava agir.
Por isso, quando Bruno, o líder do movimento do qual era partidária, cogitou a possibilidade de começarem a agir ... tal fato foi como uma fonte luminosa em sua vida.
Contudo, não queria ter muitas esperanças. Afinal, o movimento ainda começava a se formar. Por isso, talvez ainda não fosse a hora de se organizarem ações. Primeiramente precisavam se fortalecer e terem uma sólida organização. Só assim, estariam em condições de enfrentar os empresários, os grandes perpetuadores das injustiças com as quais tinham que conviver.
Enfim, para enfrentá-los, precisavam ter força, ou então, seriam facilmente desarticulados.
Pensando nisso, Clarissa, resolveu então, que deveria ter paciência.
Por isso, quando tiveram então, uma nova reunião Clarissa disse que não deveriam ter pressa. Para organizar uma ação, precisavam estar preparados para possíveis enfrentamentos e tentativas de desarticulação. Não poderiam ser imprudentes, ou seriam facilmente massacrados. Primeiramente, precisavam se fortalecerem.
Bruno, ouvindo então as palavras da moça, concordou totalmente com ela. Por isso, disse a mesma, que os mesmos só agiriam quando estivessem em condições de enfrentar o empresário – dono da fábrica –, em condições de igualdade.
Clarissa então, sabendo da dificuldade da luta, prometeu paciência.
E assim, os operários retomaram seus trabalhos.
Enquanto alguns aproveitaram para corrigir algumas imperfeições dos textos que redigiram, os demais, com seus textos prontos, trataram logo de prepará-los para a impressão.
Estava quase tudo pronto para a impressão do primeiro jornal do movimento.
No entanto, faltava um detalhe importante.
Qual seria o nome do jornal?
Foi então que Bruno deu-se conta de que havia se esquecido de um detalhe fundamental. Por isso, ao deparar-se com esta situação, prometeu pensar e escolher cuidadosamente um nome para o jornal.
E assim, durante semanas, ficou pensando num nome para dar ao jornal.
Entre os nomes que pensou, estavam: ‘A Voz do Operário’; ‘Sem Nome’; ‘Semanário do Povo’; ‘Revolução Fabril’. Mas nenhum desses nomes, lhe parecia bom o suficiente para passar a ser o nome do jornal.
Por isso, ao final de duas semanas, sem saber ao certo, qual seria o nome do jornal, perguntou aos seus companheiros, se os mesmos tinham alguma sugestão.
Para seu desespero, nenhum deles apresentou uma boa idéia.
Clarissa então, percebendo que estavam diante de um impasse, perguntou então a Bruno, em quais nomes ele tinha pensado.
Foi então que o rapaz disse os nomes.
Ao ouvir os nomes, considerou que o primeiro e o último nome, eram muito bons.
Mas para Bruno, seria importante que o jornal tivesse um nome de impacto, que se associasse ao ideal de luta de todos eles.
Clarissa, então, percebendo a insatisfação de Bruno, sugeriu que colocassem: ‘Revolução Fabril: A Voz do Operário’.
Ao ouvirem a sugestão de Clarissa, os demais sequazes discordaram. O nome era muito comprido.
Mas Bruno, encantado com o nome, insistiu:
-- Não. É esse o nome do jornal.
Diante disso, tiveram que concordar.
Isso por que, Bruno estava convencido de que este era o nome perfeito para o jornal.
Assim, após a escolha do nome, passaram a imprimir jornal.
E imprimindo o famigerado jornal, passaram quase toda a madrugada.
Após, como já era chegada a hora de se divulgar os jornais recém impressos, Bruno achou por bem, recrutar Clarissa e mais alguns auxiliares para espalharem os jornais pela cidade.
Clarissa, ao se ver escolhida para executar a tarefa, encheu-se de animação.
Finalmente iria fazer algo de útil para o movimento do qual fazia parte. À exceção do havia feito anteriormente, ao arrecadar dinheiro para a confecção do jornal, o que já foi há algum tempo, já estava começando a sentir falta de movimento.
Sim, por que a moça, desde que passara a participar das reuniões, sentia que as coisas poderiam se dinamizar.
Enfim, parecia que as coisas estavam mudando.
Assim, quando recebeu a ordem de sair madrugada afora entregando os jornais, aceitou prontamente a incumbência. Contudo, sugeriu a Bruno, que este organizasse pequenos grupos, para que assim, o serviço terminasse mais depressa. No entanto, precisavam agir discretamente, na sorrelfa, ou então, facilmente seriam pegos.
Dessa forma, atarefados que estavam, logo que se retiraram do velho galpão, decidindo-se cada qual, para que lado seguiriam, combinaram entre si, onde cada um deles iria sair para entregar o jornal.
E assim, sabedores de onde tinham que ir, trataram de seguirem seus respectivos caminhos.
Clarissa, então, percebendo que já era tarde, resolveu se apressar, ou não conseguiria entregar em tempo, todos os jornais.
Por conta disso, caminhou durante toda a madrugada por São Paulo, entregando os jornais, de casa em casa.
De tão longa sua caminhada, durante o longo trajeto que empreendeu, pôde ver alguns boêmios na rua.
Mas, por ser tratar de uma época antiga, boa parte dos moradores àquela altura, já dormiam a sono solto.
Portanto, à exceção de alguns boêmios, não se via vivalma nas ruas da cidade.
Silenciosa, a cidade parecia dormir, assim como as pessoas que nela moravam.
Tão silenciosa que Clarissa podia até ouvir seus pensamentos.
Sim, por que enquanto caminhava a garota, ensimesmada, pensava na vida e nos últimos acontecimentos que sucederam.
Surpresa ainda com os rumos que sua vida havia tomado, a moça se perguntava agora, como tudo havia se demudado tão rapidamente.
Isso por que, apesar da condição de vida de seus tios, mesmo em criança, exceto para ajudar em casa, nunca foi compelida a trabalhar.
Zelosos, criança para eles tinha mais é que estudar e brincar. Por isso, graças a eles, Clarissa conseguiu ao menos, terminar o primeiro grau.
Dessa forma, seu trabalho na fábrica de tecidos, era o seu primeiro trabalho de fato. E a despeito de suas convicções sociais, gostava muito de seu trabalho. O que único problema é que nunca fora de admitir injustiças. Por isso, considerava desumanas, as condições de trabalho a que ela, e muitos outros operários, estavam submetidos.
Mas, tirando isso, Clarissa estava gostando de trabalhar, e o fato de estar ganhando seu próprio dinheiro, era uma grande conquista para ela. Contudo, dadas as condições de vida que tinha, uma boa parcela do que ganhava ía fatalmente para as mãos de sua tia Raquel, já que era ela quem cuidava das compras da casa.
Dessarte, desde pequena, por influência de um tio afastado, foi incutida na idéia de que a sociedade em que viviam era muito injusta com os pobres.
Assim, foi dado o primeiro passo para que Clarissa passasse a se interessar cada vez mais pelo assunto. Acostumada a ouvir esse seu tio comentando sobre o assunto, passou então a se interessar mais e mais pelo tema.
Por conta disso, Raquel, Bartolomeu e Ludovico chegaram a discutir seriamente com Ataúfo – o referido tio. Extremamente politizado, o tio conseguiu convencer a sobrinha, de que algo de muito errado vinha acontecendo, e que isto tinha que mudar.
Além disso, Ataúfo, sempre que aparecia para visitar os irmãos, trazia consigo algum texto recentemente publicado sobre o assunto, para que a sobrinha pudesse ler.
E apesar disso causar alguns problemas para ele, nunca deixou de levar livros, revistas e jornais que tratavam do assunto. Queria que a sobrinha conhecesse melhor o movimento comunista. Ademais, sempre que a garota perguntava algo sobre o assunto, ele sempre respondia.
Ao falar da Revolução Russa de 1917, percebeu que estava conseguindo ganhar mais uma sectária para suas idéias.
Tal fato provocou uma briga na família.
Ludovico e Bartolomeu, percebendo a doutrinação em cima de Clarissa, foram logo tomar satisfações com o irmão. Afinal de contas, os três não estavam cuidando da menina, para que um destrambelhado como ele, viesse encher a cabeça dela com bobagens.
Ataúfo então, percebendo a reprovação dos irmãos, apenas disse:
-- Sinceramente. Eu não entendo vocês. Mesmo sendo os maiores prejudicados neste processo, vocês agem como se nada disso se referisse à suas vidas. A exclusão para vocês é algo que só acontece para os outros. É como se tudo estivesse ótimo para nós.
Foi então que, depois de ouvir essas palavras, Ludovico atalhou:
-- Espere um momento. Nós temos uma vida boa. Conseguimos nos manter com o nosso trabalho e temos uma vida razoavelmente boa. Apesar dos problemas, não temos do que nos queixar.
-- Vocês são uns conformados. Aceitam tudo. Mas isso não pode continuar. As pessoas tem o direito de saber que podem ter uma vida melhor. Afinal de contas nem todo mundo é obrigado a aceitar continuar vivendo na miséria, em condições sub-humanas de existência. É isso que fortalece esse sistema, o conformismo das pessoas em aceitar tudo isso caladas. Por que que tudo tem que ficar nas mãos de uns poucos privilegiados? Eu também tenho direito a um pouco de felicidade. Tenho direito a uma melhor condição de vida.
Nisso, Bartolomeu que até o momento, praticamente só ouvia a discussão, resolveu então tomar parte. Dizendo que aquela idéia de sociedade justa e igualitária que o irmão tinha era uma quimera, comentou com o irmão que tudo do que se faz com base no ideário da justiça, começa com sangue e morte e termina mal.
Mas, Ataúfo, convicto de que o ideal era o justo, retrucou:
-- Ah, é mesmo? Pois então me explique como foi que a Revolução Francesa, na qual houve um grande derramamento de sangue, conseguiu então espalhar pelo mundo os ideais de liberdade, igualdade e fraternidade? Como é que com aquela luta sanguinária, conseguiram derrubar um sistema político despotista e florescer as bases de um sistema político mais justo? Me explique isso. Como pode ser, não é mesmo? Mas infelizmente, em raros momentos na história, é que foi possível se alcançar algum ideal, por meio de luta pacífica.
-- Ora Ataúfo, não me venha com essas tolices. Nós podemos não conhecer a história, mas eu e Ludovico sabemos muito bem, que as mudanças não acontecem da noite para o dia, e muito provavelmente, de todos esses movimentos operários de que ouvimos tanto falar, poucos conseguirão alguma coisa. E mesmo quando conseguirem, se conseguirem, provavelmente os benefícios não se reverterão para os que lutaram. Além disso, vai ser preciso que muito sangue seja derramado, para se alcançar algum resultado. Por isso, se você não dá valor a sua vida, respeite ao menos a vida de sua sobrinha que ainda é uma criança. Está claro? Não a envolva nesse tipo de problema.
Mas mesmo com as discussões, Ataúfo nunca deixou de levar matérias para a sobrinha ler.
Afinal a menina já havia sido mordida pelo bicho do inconformismo e da vontade de mudar.
Assim, mesmo diante da resistência de seus tios mais próximos, a única família que possuía, Clarissa, continuava a ouvir e a acatar às palavras de seu tio afastado. Envolvida pelos ideais que seu tio Ataúfo lhe lançara, sempre que podia, lia algo referente ao movimento comunista.
E assim, muito embora isso contrariasse muito a vontade de seus tios, Ataúfo, quando de passagem pela cidade, sempre aproveitava para passar na casa dos irmãos e contar as novidades.
Das várias vezes que esteve de passagem por São Paulo, muitas delas se deveram ao fato de ter arrumado confusão na cidade em que morava.
Por conta de suas idéias, freqüentemente tinha que se mudar. Isso por que, as autoridades não gostavam de seu discurso político.
Por conta deste discurso, conseguiu amealhar muitos sectários para suas idéias, e assim, mobilizou muita gente. Com esse apoio, conseguiu até fazer algumas greves e paralisar as atividades de algumas fábricas.
Tal fato, no entanto, não foi visto com bons olhos pelo empresariado do lugar. E assim, ameaçado de prisão, e perseguido pela polícia, para não ser preso, fugia dessas cidades.
E assim, dessa maneira, mais uma vez, o motivo para sua vinda se deveu a mais uma de suas confusões.
Ludovico, já cansado das confusões do irmão, chegou até a comentar:
-- Ataúfo. Quando é que você vai tomar jeito?
Mas não adiantava que o aconselhassem, pois o mesmo não dava ouvidos às súplicas de seus irmãos.
Mesmo quando eles o avisavam de que nem sempre ele conseguiria fugir, ainda assim, ele insistia em continuar metido em confusão.
No entanto, o que mais preocupava a Raquel, Ludovico e Bartolomeu, era a sobrinha Clarissa. Isso por que, dada a pouca idade da menina, para eles, ela era um alvo fácil de todas aquelas idéias malucas do tio.
Por isso, sempre que Ataúfo estava visitando a família, os mesmos procuravam alertá-la de que nem tudo o que ele falava acontecia daquela forma.
Por isso, não deveria levar a sério suas idéias.
Mas já era tarde.
Convencida dos bons propósitos da luta, conforme os anos se passavam, mais e mais ela tinha certeza de que estava no caminho certo.
Para desespero de Raquel, Bartolomeu e Ludovico, nada a demovia da idéia de se integrar a um desses movimentos.
Contudo, num primeiro momento, conseguiram refrear os impulsos de Clarissa. Mas até quando?
Nisso, Clarissa envolta em pensamentos, continuou andando. Precisava entregar todos os jornais ainda aquela noite. Por isso, precisa continuar andando.
E assim o fez.
Ao final da madrugada, já havia entregue todos os jornais.
Ao voltar para casa, estava alquebrada.
Por isso, procurando evitar que seus tios acordassem, entrou pé ante pé em casa. Cuidadosamente, adentrou seu quarto, e cansada que estava, jogou-se na cama.
No dia seguinte, logo que acordou, ao se dirigir até a copa, antes mesmo de pegar o bule de café, foi imediatamente, inquirida por sua tia Raquel.
-- Posso saber onde foi que a senhorita esteve?
-- Em lugar nenhum. – respondeu a moça.
-- Não se faça de sonsa. Você sabe muito bem do que eu estou falando.
-- Me desculpe tia. Mas eu realmente não sei do que a senhora está falando. Ontem eu cheguei um pouco tarde sim, mas é por que eu estava fazendo serão na fábrica. Vocês sabem disso.
-- Há, é mesmo?
-- Sim. Por isso que quando eu cheguei, vocês já estavam dormindo.
-- Mas então, você faz serão quase todos os dias?
-- Pois sim. É isso mesmo. E é por isso que muitos operários estão se mobilizando. Não temos que aceitar esse tipo de situação.
Ao ouvir isso, sua tia ficou preocupada. Afinal de contas, por que sua sobrinha estava falando sobre este assunto?
Pensativa, chegou a seguinte conclusão:
-- Por um acaso, a senhorita não andou se metendo com esses malucos?
-- Que malucos?
-- Clarissa. Não me enrole. Você sabe muito bem do que eu estou falando. Me responda, você está envolvida com algum movimento clandestino? Está?
-- Por que a senhora está me perguntando isso? Acaso acha que estou fazendo alguma coisa errada?
-- Clarissa, me responda logo. Olha que eu estou perdendo a paciência.
-- Mas tia, o que eu posso dizer, eu não estou fazendo nada de mais. Eu só cheguei tarde ontem por que, como não tinha condução, eu tive que voltar a pé.
-- E a que horas, a senhorita retornou?
-- Ah, madrinha. Eu cheguei morta de cansaço. Como é que eu vou poder me lembrar? Do jeito que eu cheguei, já me atirei na cama e dormi com a roupa que estava.
-- É. Estou vendo. Deve ter chegado muito tarde mesmo. Nem eu mesma, percebi.
-- Tia, por favor. Acaso eu já dei motivos para você desconfiar de mim?
-- Não, minha querida. É que estamos muito preocupados com você. De uns tempos pra cá, você tem andado muito estranha. Desde que você começou a trabalhar naquela fábrica, que você está diferente. Fica pouco tempo em casa. E mesmo quando está de folga, arruma algum motivo para ficar longe da gente.
Clarissa, então, percebendo que a vigilância excessiva era resultado de seu comportamento negligente com a família, respondeu:
-- Oh, tia. Acaso acha que eu não me importo com vocês? Pois sim, me importo muito. Só que às vezes eu também sinto vontade de ficar sozinha, ou mesmo conversando com minhas colegas da fábrica. Mas, independente disso, eu gosto muito dos meus três tios queridos. Não só gosto, por que gostar é pouco, amo-lhes, e lhes sou muito grata pelo que fizeram por mim, durante todos esses anos. Realmente, não tenho do que me queixar, desde que me entendo por gente, vocês são a única família que eu tenho.
-- Ah, Clarissa, minha querida. – respondeu a tia docemente enquanto se encaminhava para abraçar a sobrinha.
De tão enternecida com as palavras da sobrinha, delicadamente pegou o bule de café, e perguntou a moça, o quanto ele queria da bebida. Depois, cortou um pedaço de pão e deu para ela comer.
Quando Bartolomeu e Ludovico voltaram da rua, chegaram até, a ficarem admirados com a cena. Isso por que, fazia tempos, que não viam Raquel tão dedicada a sobrinha.
Constantemente preocupada com o comportamento da moça, sua tia ultimamente só se preocupava em vigiá-la. Não por que fosse má, mas por que temia que a sobrinha, estivesse se metendo em encrencas.
Em razão da influência nefanda de Ataúfo, temiam que a moça se guiasse pelas mesmas idéias do tio.
Mas, por enquanto, para eles, parecia que tudo estava calmo.
Clarissa, também, visando não chamar a atenção dos tios, resolveu naquele dia, permanecer em casa.
Enquanto fazia companhia a tia, aproveitava para auxiliá-la em seu serviço doméstico. Prestativa, até sua tia espantou-se. Não que a moça não ajudasse em casa, mas é que nem sempre ela estava disponível para tanto.
Mas como ultimamente passava boa parte do tempo longe de casa, raramente ajudava sua tia com as roupas. Além disso, por voltar constantemente, tarde para casa, não tinha tempo para mais nada além do trabalho.
Por isso, ao ajudar Raquel, a lavar algumas das roupas de suas freguesas era uma novidade.
Contudo, não pensem que Clarissa gostava de mentir para seus tios.
Ela simplesmente o fazia por que, se contasse a eles a verdade, certamente seus tios fariam de tudo para impedi-la de continuar. E por isso não podia deixar que eles soubessem.
No entanto, não poderia esconder este fato, por muito tempo. Mais cedo ou mais tarde, seus tios acabariam por descobrir que a moça estava envolvida em algo muito sério. Mas isso é assunto para os próximos capítulos.
Luciana Celestino dos Santos
É permitida a reprodução, desde que citada a autoria.
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