Todavia, mesmo em seus momentos mais felizes, nem por um momento se esquecera de seu passado, de sua vida como escrava, e da maldade que infligiram a seu pai e sua mãe.
Estava tão determinada a se vingar, que mesmo anos depois, ainda sentia necessidade de retornar àquele lugar. Mas seus pais, temendo pelo pior, a impediam.
Tanto que, enquanto estiveram vivos, nunca a deixaram chegar nem perto da fazenda em que vivera. Assim, desde que fugira de lá, junto com outros negros, nunca mais voltou a ver os túmulos de seus pais, que agora estavam juntos na paz eterna.
Isso magoava sobremaneira a moça.
Mas Odete e Hélio não deixavam.
Para consolá-la, diziam que era melhor assim. Se ela aparecesse por ali, poderia levantar suspeitas e os fazendeiros da região poderiam deduzir que ela era das escravas homiziadas.
Thereza não poderia correr este risco. E em respeito a seus pais de criação, não ousava desobedecer suas recomendações. Seus pais, lhe eram demasiado caros, para que assim procedesse. A moça os adorava demais.
Por isso mesmo, somente depois de suas mortes, é que Thereza decidiu-se a retornar para a região.
Vou lhes contar.
Odete, sua mãe, foi a primeira a falecer. Thereza nesta época tinha vinte e dois anos.
Logo em seguida, seu pai, Hélio, entristecido com a morte da esposa, também faleceu, em decorrência de um ataque cardíaco.
Todavia, ao contrário da esposa, sofreu um pouco em seu passamento.
Isso por que, antes de morrer, sentiu uma dor aguda no peito. Nesse instante antes morrer, apesar da dor que sentia, teve ainda tempo de pedir a filha, que não prosseguisse com a vingança, já que ela seria a maior prejudicada com tudo isso.
Porém, não conseguiu fazer com que ela desistisse da vingança.
Isso fez com que ele morresse profundamente triste. E essa tristeza, Thereza carregaria por toda a vida.
Sim, por que, por ter negado o último pedido do pai, Thereza sentiu que o magoou. Mas o sentimento de ódio era muito grande para que pudesse deixar a vingança de lado.
O que Ataúfo e sua família fizeram a seus pais, não podia ser esquecido. Isso por que, não foi somente o fazendeiro que agira mal. Seu filho Diego, também era ruim, assim como boa parte da sociedade da época.
Por isso Thereza precisava se vingar. Para mostrar a todos o quão mal fizeram a ela e aos negros ao lhe impingirem uma vida indigna, pior do que a vida de um cachorro.
Assim, com a morte do pai, afrouxaram-se os laços que a prendiam aquele lugar. Com a morte de Odete e Hélio, não havia motivos para que ela permanecesse por ali.
Um ano depois, já no Rio de Janeiro, com seu marido Abelardo, Thereza conheceu alguns dos grandes jornalistas fluminenses. Boa parte deles, lutava em prol do movimento abolicionista.
Abelardo então, estava entre seus pares. Acostumado a convivência com jornalistas, já que mesmo em São Paulo, estava envolvido em movimentos abolicionistas, o rapaz sabia perfeitamente o que esperar desses encontros. Sua intenção era levar informações para São Paulo, sobre como estava o movimento no Rio de Janeiro. Da mesma forma, ele informava os jornalistas sobre os passos dos paulistas com relação a luta contra a escravidão.
O mancebo estava tão empolgado com isso, que até se esquecia de dar um pouco de atenção a esposa, mas Thereza não se importava. Ao contrário, sempre que o marido lhe pedia para passear, já que as reuniões eram longas, a moça, insistia em ficar.
Afinal, como todos podiam perceber, ela era negra. Só que, diferente dos demais negros de sua época, tivera a oportunidade de progredir e conseguir um lugar ao sol.
Contudo ela era uma exceção, o que sempre considerou injusto. Por isso, sempre que podia, aproveitava para ouvir as discussões e aprender um pouco mais sobre o movimento abolicionista.
No entanto, algumas vezes, percebendo que algumas informações eram sigilosas, educadamente se retirava do recinto e aproveitava alguns momentos para passear.
Foi num desses passeios pelas ruas da cidade que Thereza reencontrou Rodrigo.
Todavia, foi Rodrigo quem primeiro percebeu sua presença.
Apesar de haver se passado quase dez anos desde que aquele fatídico dia acontecera, Rodrigo foi capaz, de nos traços daquela jovem mulher, reconhecer a amiga de infância.
Por isso ao ver Thereza, gritou seu nome:
-- Thereza. Thereza.
Nisso a moça virou o rosto para trás, na tentativa de encontrar o dono daquela voz. Em vão.
Por mais que olhasse, Thereza não conseguiu descobrir quem a chamava.
Mas Rodrigo não se deu por vencido. Ao ver que Thereza continuou caminhando, o rapaz acorreu em seu encontro, na tentativa de reconhecer nela a menina que não via há anos.
Todavia, ao deparar-se com Thereza, ficou espantado. A moça que conhecera anos atrás, aparentemente, não existia mais. Pelo contrário, em seu lugar, havia uma bela moça. Bela e sofisticada.
Bem vestida, nem parecia a menina assustada que vivia maltrapilha como todos os negros. Estava bem, bonita, segura. Mas também parecia triste, apesar de vida que levava.
Esta foi a primeira coisa que Rodrigo percebeu. Contudo mesmo percebendo isso, resolveu não tocar no assunto. Afinal, não queria afugentá-la.
E assim ao se encontrarem, passaram a conversar.
Foi então que a moça percebeu que apesar de adulto, Rodrigo conservava alguns traços de sua meninice. O rosto algumas vezes lembrava o garoto que conhecera na fazenda. Além disso, seu eterno otimismo com a vida, também permaneciam intactos. Sua vivacidade era mesma, nem parecia que o tempo havia passado.
Contudo, a tristeza pela morte do pai, ainda permanecia. Porém acreditava que o mesmo, apesar das maneiras tortas, conseguiu ser um bom pai. Ataúfo só não fez mais por ele, por que não sabia como. E apesar dos erros, comentou com Thereza que seu pai acertara mais do que errara com ele. Isso para ele era um conforto.
Por esta razão, Thereza, ao entrar em uma confeitaria com ele, ao ouvir suas palavras a respeito do pai, resolveu não se manifestar. Afinal para Rodrigo, a lembrança de seu pai lhe era muito cara e muito terna. Assim a moça percebeu que não tinha o direito de estragar a ilusão do jovem.
No entanto o mancebo ao perceber o silêncio da moça, ficou intrigado. Tanto que chegou a perguntar:
-- E você, senhorita? Vejo que você conseguiu prosperar. Me conte. Como tem sido a sua vida?
-- Nada de mais. Eu simplesmente encontrei quem me ajudasse. – respondeu ela, laconicamente.
-- Depois de tantos anos sumida é só isso que você tem a dizer? – perguntou o rapaz, visivelmente desapontado. – Eu ... durante todos estes anos te procurei em cada lugar por onde passei, sabia?
-- Não diga isso, por que não é verdade. Por menos que você soubesse, sabias perfeitamente que eu dificilmente estaria no Rio de Janeiro. – respondeu ela, já se preparando para beber mais um pouco de chá.
-- É verdade sim. Depois que você sumiu da fazenda, eu te procurei como um louco. Por semanas eu esperei você aparecer no quilombo, e antes disso eu te procurei pelas estradas. Te procurei tanto, que antes mesmo de vir para cá, pensei na possibilidade de te trazer junto. Mas você preferiu vir sozinha ... – respondeu ele irritado.
-- Pois saiba que não estou sozinha. Eu me casei.
-- Casou-se? – perguntou ele, decepcionado com a novidade.
-- Sim, me casei. Já faz quase dois anos. Nesse ínterim, eu também tive infelizmente, duas perdas irreparáveis. Meus pais morreram.
-- Você está se referindo a Dona Odete e Seu Hélio. Sinto muito. Lamento muito. Os dois eram pessoas maravilhosas. – respondeu ele, um pouco emocionado.
-- Eu sei. Por que você acha que eu sinto tanto a falta deles? – perguntou ela chorando. – Eles eram as únicas pessoas que eu conheci, que não mereciam morrer.
Ao ver que Thereza estava profundamente sentida com a morte dos pais, Rodrigo resolveu, tentar consolá-la. E assim, enquanto tentava de alguma forma confortá-la, descobriu que os mesmos haviam falecido há um ano atrás, praticamente juntos.
Por conta disso, não fosse o marido e os amigos dos primeiros tempos, Thereza estaria praticamente só. Mas não estava.
E apesar de todos estarem tristes pelos últimos acontecimentos, a moça contou ao amigo de infância, que todos ficaram ainda mais unidos e lhe ajudaram em tudo o que precisou.
Foi então que Rodrigo perguntou sobre todos. E Thereza contou como iam.
Também falou dos que se dispersaram, procurando seguir outro caminho.
Nisso Rodrigo contou que estava em casa de um primo distante, parente de Ataúfo e conhecido pelo rapaz. Isso por que Ataúfo em freqüentes viagens que fazia, em algumas oportunidades, aproveitou para levar o filho. Queria que o mesmo conhecesse seus parentes. E um deles era o primo Altino, que desde o começo, gostara dele. Tanto que quando tudo virou uma grande confusão, o primeiro lugar em que o rapaz pensou em ir foi para a casa do tio, para que pudesse completar os estudos. E assim, graças a ajuda de seu tio – um senhor de quase sessenta anos –, que Rodrigo conseguiu se formar advogado.
Conversando com Thereza, revelou que em pouco tempo, voltaria para a fazenda e retomaria os negócios do pai.
Agora devidamente preparado, seria mais difícil para Diego, tentar prejudicá-lo.
Nesse momento, Thereza perguntou de Ricardo.
Ao ouvir a pergunta, Rodrigo então respondeu:
-- Mesmo após muitos anos, continuamos a nos corresponder. Com isso fico sabendo das novidades.
-- É mesmo? Quer dizer então, que mesmo depois de anos, continuam mantendo contato?
-- Sim. E pelo que sei agora, Diego está ainda mais intransigente que Ataúfo. Preocupado, Ricardo não sabe mais o que fazer. Por também ter se ausentado por alguns anos, acabou deixando as fazendas de lado, e nisso Diego aproveitou para se apossar de tudo. Em razão disso, devo voltar para lá o quanto antes. Não posso mais adiar a volta. – disse pensando um pouco. Nisso, parou por um instante e emendou. – Gostaria que você voltasse também.
Thereza fingiu que não ouviu.
Com isso, continuaram entabulando conversa.
Todavia, Thereza, ao dar-se conta do adiantado das horas, já que o sol sumia no horizonte, perguntou a Rodrigo, que horas eram.
Foi então que Rodrigo lhe disse:
-- São dezessete horas.
Thereza ao ouvir isso, desculpou-se com o amigo, mas disse que precisava ir. Seu marido a estava esperando.
Assim, levantou-se da mesa, despediu-se do amigo e saiu da confeitaria.
Luciana Celestino dos Santos
É permitida a reprodução, desde que citada a autoria.
Poesias
sexta-feira, 12 de fevereiro de 2021
A DEUSA NEGRA - CAPÍTULO 13
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