Após a cerimônia religiosa houve festa. Uma linda festa ao ar livre, aberta para todos os moradores do vilarejo. Para os convivas, uma fartura de comes e bebes.
E assim, a festa transcorreu.
Para tocar, uma pequena banda fora contratada, o que permitia a todos que assim quisessem, dançar. No entanto, para iniciar o baile, o casal precisa dançar a primeira valsa. Foi então que Ataúfo estendeu o braço para Rosália, e a conduziu até o meio da praça do lugarejo para que todos os vissem dançando.
Encantados, os convidados ao final da dança, aplaudiram o casal e começaram a formar seus pares para também dançarem.
E assim, a festa se seguiu memorável.
Enfim, Rosália havia se casado. O casamento dos sonhos de seus pais, que sempre sonharam casá-la bem. Depois de casada, passou a cuidar da fazenda onde ela e o marido passaram a morar.
No ano seguinte engravidou e deu à luz ao filho mais velho do casal, Diego. Logo em seguida, engravidou novamente, dando à luz ao segundo filho do casal, Ricardo.
Nisso a vida conjugal seguia bem. Seu Ataúfo estava feliz com a vinda dos filhos. Apesar do falecimento recente do pai – na época do nascimento do seu segundo filho –, estava feliz com a chegada do mais novo integrante da família. Triste pela perda do pai, mas contente por possuir um linda família.
Acostumado a trabalhar desde cedo com o pai, sentia falta de sua presença firme. De sua altivez. De seus ensinamentos. Tudo o que sabia sobre administrar fazendas, aprendera com ele.
Para aprender a cuidar de uma propriedade, chegou a trabalhar junto com os escravos, fazendo o serviço pesado. Assim, desde cedo soube o valor do trabalho. Isso porque, desde cedo lhe fora ensinado isso.
Para que soubesse que na vida, tudo custa muito para ser alcançado.
Firme, Seu Valério sempre dizia:
-- Na vida, é muito difícil conseguir alguma coisa através do trabalho. Mas quando se consegue, é neste momento que nos damos conta do quanto vale uma vida inteira de trabalho. Contudo, assim com é muito difícil conseguir construir um império, a facilidade para destruí-lo é enorme. A desproporção é imensa. Por isso, valorize o trabalho alheio. É graças a ele e ao nosso esforço, que hoje temos o que temos, e destruí-lo é muito fácil.
Assim, para ter a vida de rei que tinha, também teria que se esforçar para mantê-la. Pois se assim não fosse, acabaria por perder tudo o que seu pai já tinha conquistado.
Mas Seu Valério estava satisfeito com os ensinamentos que passara ao filho.
Pouco antes de se casar, Valério, passou a ele a propriedade, a fazenda, com tudo que havia dentro dela.
No entanto, ao constatar o estado de degradação em que estava a sede, e preocupado em agradar a noiva, atribuiu a alguns escravos a incumbência de arrumar a casa para ele. Como paga, passariam a ser empregados da casa grande, possuindo algumas regalias que os outros escravos não tinham. Ali vivendo, poderiam, se fizessem um bom trabalho, contar com a boa vontade dos patrões.
E para muitos, isso era motivo mais que suficiente para querer por ali ficar. Dedicados, fizeram o melhor possível, para tornar a sede, há muito tempo desabitada, apropriada para uma família morar.
Como os móveis estavam em péssimo estado, foi necessário fazer algumas aquisições. Muitas delas inclusive, intermediadas pelo sogro, Rafael. Oportunamente, este se ofereceu para adquirir alguns móveis. Para tanto, precisava que financiassem sua viagem para a Corte. E assim ficou acertado.
Seu Rafael ficaria hospedado na casa de uns parentes da família do genro, na Capital do Império. Enquanto isso, compraria os móveis que queria para expor em sua loja, assim como os móveis para a nova casa de sua filha. Quanto aos móveis para a casa do genro, ficara acordado, que os mesmos seriam o presente de casamento dele para a filha.
Assim, enquanto a família do noivo financiava a festa do casamento, o sogro fornecia os móveis para a casa do genro.
Rosália, perdida em meio as suas lembranças, recordou-se ainda, dos primeiros encontros com seu noivo. De como se sentia desconfortável em sua presença. Ainda mais por saber estar sendo vigiada por seu pai.
Seu Rafael ficava de longe, a espreita, observando o casal. Por isso, por esta razão, não devia realmente ser muito confortável a corte do rapaz. Além de não estar interessada em se casar, sabia que não poderia nem bem conversar com o seu noivo, dada as circunstâncias dos encontros.
Vigiada, não poderia dar motivos para que seu pai a repreendesse.
E assim os meses foram se passando até o momento da fatídica hora do casamento.
E a despeito de sua insatisfação com o acontecimento, ela não tinha escolha, posto que o casamento era uma convenção naquela sociedade patriarcal.
Nesse momento então, Rosália, deu-se conta do adiantado das horas. Enfraquecida pelo sofrimento, mal conseguia se mexer.
Horrorizada com a morte de Rubens – seu amante –, o único motivo que ainda a fazia viver era o fato de sua filha ainda estar viva. E assim, enquanto a menina vivesse, de forma alguma poderia desistir da idéia de tentar salvá-la.
Desta forma, mesmo presa na cama, debilitada, sabia que ainda poderia fazer alguma coisa pela filha. Um último gesto de redenção. Uma tentativa de diminuir sua culpa, por todo o mal e sofrimento que causou a todos os que a amaram.
Sua mãe, sua eterna defensora, fora uma das pessoas a quem ela mais magoou. Irene, ao saber da infidelidade da filha, ficou extremamente desapontada.
Isso por que, nunca em sua vida, imaginou que sua filha fosse capaz de um ato tão impensado.
Entrementes, agora já era muito tarde para se arrepender e Rosália sabia disso.
Por isso, para ela, vivenciar aquelas horas silenciosas, era um verdadeiro tormento. Ter tempo para pensar na vida e se lembrar de tudo o que passou, de tudo o que viveu, era doloroso para ela. Agora sem alento, até mesmo as lembranças mais felizes, eram amargas para ela. Era tudo um tormento.
E assim, sem saber o que pensar, só queria saber se Thereza estava bem.
Mas ninguém lhe dizia nada.
Tal fato só serviu para deixá-la ainda mais inquieta.
Afastada da criança, não sabia se menina estava bem ou não.
Isso por que, desde que a criança nascera, só tivera tempo de lhe dar um nome, e vê-la por alguns momentos.
Dias depois, tiraram a criança de seu quarto.
Alegando que a menina precisava de cuidados especiais, levaram a criança para longe dali.
Mas isso era apenas uma desculpa e Rosália sabia disso. Temerosa de que matassem a menina, reiteradas vezes pediu para que a mesma fosse poupada.
Isso por que sabia que era questão de tempo para que a matassem.
Com isso Ataúfo, certa vez, cansado de ouvir o choro da criança e não suportando mais aquela presença, que para ele era nociva em sua casa, resolveu então completar sua vingança.
Como a criança não ficava no mesmo quarto em que Rosália estava, a mesma não sabia da situação da filha. E assim, mais e mais sua agonia aumentava.
Assim, quando Ataúfo pegou a criança e levou até um riacho que havia por perto, Rosália nada pode fazer para impedir.
Contudo, ao tentar afogar a menina mergulhando sua cabeça no rio, o mesmo, num lampejo de humanidade, apiedou-se da criança e desistiu de seu intento nefando.
Porém, horas antes, ao arrebatar a criança do leito em que dormia, fez questão de que avisassem a esposa de que ele estava com a criança.
Rosália então se desesperou mais e mais. Ciente de que Ataúfo mataria Thereza, Rosália implorou a todos para que fizessem algo para impedir que ele cometesse tal crime. Mas ninguém fez nada. Não havia nada para ser feito.
Ataúfo, como senhor de todos os que ali estavam, tinha poder de vida e de morte sobre eles. Assim, se investissem contra ele, tentando impedir seu gesto, fatalmente seriam punidos e até mortos. Não tinham coragem. Temiam-no. Ataúfo era perigoso.
E Rosália, ciente de que nada fariam para salvar Thereza, ficou desconsolada. Por conta disso, seu estado de saúde, que já era delicado, dado os últimos acontecimentos, piorou ainda mais.
Sim, Rosália estava morrendo.
Porém, agüentou tempo suficiente para esperar o marido voltar e trazer a menina de volta, viva.
Ataúfo, ao voltar para a sede da fazenda, foi logo informado de que Rosália estava morrendo. Ao saber disso, com Thereza nos braços, dirigiu-se até o quarto onde a esposa estava e lhe mostrou a menina, que neste momento, começou a chorar.
Rosália ao perceber que a filha estava viva e bem, agradeceu o gesto de generosidade do marido e lhe implorou para que deixasse a menina viver.
Foi então que ele respondeu, que ainda tinha que se vingar de todos os que humilharam-no.
Ao ouvir tão duras palavras, Rosália então disse:
-- Não basta que tenhas matado Rubens, que me tenhas torturado por tantos dias? O que mais o senhor quer? Quer que eu morra? Se é isso que queres, é isso que terás. Eu sei que vou morrer, e para isso, não precisarás mover um dedo. É só esperar. E como forma de retribuir, espero que com meu sofrimento, poupe a vida desta criança, que nada teve de culpa. O erro foi meu. Eu lhe fui infiel. Eu mereço morrer, Thereza não. Por favor, deixe-a viver. Porém, se for difícil para o senhor tê-la por perto, leve-a para longe. Não me importo. Contanto que ela esteja bem.
Mas Ataúfo, nem mesmo com essas palavras abrandou seu coração. Movido por um profundo sentimento de vingança, fez questão de torturá-la dizendo que não poderia manter viva a lembrança viva de sua vergonha.
Para ele não havia outra forma de apagar a mácula em sua honra do que matando a todos.
Mas Rosália, ao constatar que marido não conseguira concretizar seu intento, acreditou que o mesmo se apiedara, ao menos por um instante de Thereza. Tanto que sabendo disso, apelou para o sentimento cristão do marido e pediu mais uma vez, que não a matasse.
Desta vez porém, seu pedido não foi em vão. Condoído pelo sofrimento da mulher, concordou em deixar a menina viva. Afinal, Rosália já estava pagando muito caro pelo havia feito.
Ataúfo poupou a vida de Thereza portanto.
Quando então Rosália ouviu a promessa do marido, tranqüilizou-se. Afinal, conhecendo Ataúfo como conhecia, sabia que ele cumpriria com o prometido.
Pronto, agora podia partir em paz. E assim o fez. Depois de escutar a promessa do marido, após longas horas, dias, semanas de agonia, de desespero e de dor, Rosália finalmente despediu-se deste mundo, indo habitar a morada celestial.
Contudo, por mais que ainda gostasse da esposa, conhecedor de sua traição, não podia, de forma nenhuma, aceitá-la no cemitério, ao lado dos mortos de sua família. Por isso, quando do passamento da esposa, resolveu enterrá-la na fazenda, mas bem longe dos olhos curiosos de todos os que ali viviam.
Assim, mandou enterrá-la no meio do bosque que havia nas proximidades da fazenda.
Ataúfo, cumprindo o que havia prometido a Rosália, manteve a menina viva. Todavia, nunca a tratou com consideração.
E nisso, Thereza, sem consciência de nada do que acontecia ao seu redor, passou a ser criada por um casal de escravos.
Desde pequena, criada por uma família de escravos, viveu na senzala.
Quanto a sua origem, a mesma nunca teve conhecimento de que era filha de uma branca. Ao contrário, durante toda sua infância imaginou ser filha dos escravos que a criaram.
E assim, vivendo em tão humilde condição, passou a sofrer os primeiros reveses em sua vida.
Ataúfo por sua vez, após o combinado, decidiu-se por esquecer completamente a criança. Apesar de todo o seu ódio pela menina, optou por não vendê-la. Preferia tê-la por perto. Precisava acompanhar seu sofrimento. Essa seria sua vingança.
E dessa forma, depois de fazer um acordo com um casal de escravos, ordenou-lhes que assim que a menina tivesse idade para trabalhar, ela iria fazer alguma coisa, como todos os filhos de escravo. Não haveria privilégios.
E assim foi feito.
Nos primeiros tempos, Thereza sofreu com as péssimas condições da senzala. Por pouco não morreu.
Isso por que, em razão de seu pouco tempo de vida e das condições em que nasceu, a menina necessitava de cuidados especiais. Coisa que o irascível Ataúfo, nem por um momento pensou em fazer.
Dona Irene, ao saber da situação da menina, apesar de sua espúria origem, exigiu que Ataúfo não a deixasse morrer. Mesmo envergonhada com o que a filha fizera, conspurcando o nome da família, por um momento foi capaz de deixar o orgulho de lado e pedir ao duro fazendeiro para que ajudasse a criança de alguma forma.
Em razão disso, nos primeiros tempos, a família foi alojada em uma das casas que foram construídas para os agregados da família. Ali em meio a um pouco mais de conforto, a menina pôde se fortalecer, se alimentar melhor, e resistir.
Todavia, assim que a menina melhorou de saúde, novamente o casal voltou para a senzala, e aí Thereza pôde finalmente entender o sofrimento dos seus semelhantes.
Comida ruim, más condições de higiene. Um verdadeiro horror.
Certa vez, aproveitando que estava só na senzala, resolveu brincar por ali. Brincou, brincou, e continuaria se divertindo não fosse um ruído estranho.
Curiosa resolveu ir ver o que era o barulho. Ao ver do que se tratava, levou um susto. Uma ratazana enorme estava rondando a senzala.
Aterrorizada a menina soltou um grito e saiu em desabalada carreira da senzala.
Ao encontrar seus pais, insistiu em dizer que não queria dormir mais lá.
Contudo, a dureza da realidade falou mais alto. Ou ela dormia ali, ou ficaria ao relento.
E assim, sem ter alternativa, teve de obedecer seus pais e dormir ali mesmo.
Porém, por mais que não quisesse criar problemas, durante noites seguidas, não conseguiu dormir.
Foram tempos difíceis.
Tão difíceis que Thereza nunca mais se esqueceria deles.
Nem em seus melhores momentos seria capaz de esquecê-los.
Luciana Celestino dos Santos
É permitida a reprodução, desde que citada a autoria.
Poesias
sexta-feira, 12 de fevereiro de 2021
A DEUSA NEGRA - CAPÍTULO 5
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