Sem saída, não restou outra alternativa ao fazendeiro senão confessar toda a história ao filho. Porém, não queria conversar com o filho na frente de todos os presentes.
Mas Rodrigo, revoltado com tudo o que estava acontecendo, insistiu em dizer que não sairia dali, sem a presença de Thereza.
Ataúfo ao ouvir as condições impostas pelo filho, ficou mais irritado. Alegando que se tratava de um assunto reservado, disse que não poderia contar sua história na frente de todos.
Rodrigo no entanto, insistia em dizer que não sairia dali sem a companhia de Thereza.
Foi então que irritado, o fazendeiro começou a falar:
-- Pois então que seja dito, e que o assunto fique por aqui mesmo... Sim eu errei. Eu tive um relacionamento com uma escrava. Você meu filho, é fruto dessa relação.
-- Relacionamento que o senhor teve com minha mãe, enquanto esteve casado sua mulher.
-- Sim. Eu já era casado. E como você já sabe, também já tinha os meus dois filhos. – respondeu Ataúfo, ao olhar penalizado para os filhos Diego e Ricardo.
Os dois ao ouvirem o pai confessar a traição, ficaram desapontados.
Mas perplexos, não sabiam o que falar. Tanto que só faziam ouvir o relato.
E assim, Ataúfo continuou a falar.
Contou que, aborrecido com a esposa, por esta dedicar maior atenção aos filhos do que a ele, sentiu-se negligenciado.
Insatisfeito com a pouca atenção que recebia da esposa, constantemente reclamava com ela sobre os cuidados excessivos que vinha dedicando aos filhos. Para ele, isso não era saudável. Mas eram ciúmes. Ciúmes de ver que seus filhos eram a principal preocupação de Rosália.
Foi por isso, unicamente por esta razão, que ele sentiu-se atraído por uma bela escrava que trabalhava na fazenda. Bonita como poucas, não havia negro que não olhasse para ela.
Conforme o tempo foi passando, esta bela negra passou a trabalhar na sede, junto a outros escravos, como Corina, que era de toda a confiança.
Assim, estando tão próximo da escrava, vendo-a todos os dias lhe servir o café, pôr as refeições na mesa ... Passou a cada vez mais se interessar pela moça.
A cabrocha, com seu jeito sestroso, conquistava cada dia mais, seu senhor.
Tanto que certa vez, não agüentando mais só a ter por perto, decidiu se aproximar, para ao menos conversar com ela.
Porém, ao contrário do que imaginara, a moça não lhe foi receptiva na primeira tentativa. Ao contrário, ele como senhor e dono de todos os escravos, ainda assim teve que insistir muito para conseguir que ela ao menos lhe sorrisse.
Mas enfim, com muita insistência, paciência, – isso por que não queria intimidá-la com seu poder de mando. Queria que a escrava se aproximasse, sem que para tanto, precisasse constrangê-la. E tanto fez que acabou conseguindo, sem que para isso, precisasse usar de força.
E assim a moça se tornou sua amante.
Sim, por que apesar de muito amar sua esposa, não agüentava mais ser posto de lado. Sua preferência pelos filhos a cada dia que passava se tornava mais óbvia. Tanto que nem mesmo quando ele queria se aproximar dos filhos, conseguia, – a sombra de Rosália não o deixava se entender com os filhos, segundo suas palavras.
Mas uma escrava, ofendida com as palavras do fazendeiro, gritou:
-- É mentira. O senhor nunca se interessou pelos meninos. Tanto que quem cuidava deles era mesmo Dona Rosália.
O fazendeiro irritado, ordenou a escrava que se calasse.
E a negra silenciou.
Nisso Ataúfo continuou seu relato.
Foi então que reconheceu que não tinha mesmo muito jeito com os meninos. Porém, com a ausência da mãe que morrera ainda muito jovem devido complicações em decorrência de problemas de saúde, o mesmo tivera que tomar para si, a responsabilidade de criá-los.
Com isso, comentou orgulhoso, que achava que havia feito um bom trabalho.
Apesar de não ser o pai que talvez seus filhos quisessem, sentia que tinha cumprido com competência sua função. Mesmo com Rodrigo, apesar de ter sido um pai ausente em seus primeiros anos de vida, com a morte da ex-amante, chamou para para si a responsabilidade de cuidar do garoto.
Logo, assim que soube da morte da amante e do pai adotivo do garoto, procurou trazê-lo para a fazenda.
Nisso Rodrigo, sem entender por que sua mãe havia ido parar naquela fazenda, perguntou ao fazendeiro por que o mesmo vendera sua mãe.
Foi então que ele comentou:
-- Meu filho. Não me censures. Não sabes o que aconteceu para que eu assim procedesse. Eu vendi você e sua família, por que eu não tive escolha. Com o escândalo do relacionamento extra-conjugal, eu não poderia manter vocês dois vivendo aqui. Por isso eu incumbi Jacinto de cuidar dos dois, como se fosse um verdadeiro pai. Eu não podia deixar que descobrissem que eu tinha um filho espúrio. Não depois do que Rosália fez. – confessou envergonhado.
-- Então eu sou filho de sua vergonha. – comentou Rodrigo desolado.
-- Quem diria, heim? Quem poderia imaginar que o senhor era um imoral. Um depravado. – disse Diego, reprovando severamente a conduta de seu pai. – E pior, ainda nos culpa por suas prevaricações.
Ataúfo, ao ouvir as desrespeitosas palavras do filho, gritou:
-- Me respeite. Eu não sou um moleque. Veja bem como fala comigo. Eu ainda sou teu pai. Exijo respeito.
-- Respeito. E desde quando alguém que faz o que o senhor fez, merece respeito? – pergunto Diego.
Ataúfo, então, desmoralizado, furioso com a atitude de seu filho, aproveitando que o mesmo estava próximo dele, e o esbofeteou.
O soco foi tão forte que o rapaz que caiu no chão.
Os escravos ficaram espantados. Afinal, Ataúfo bater em seu filho mais velho era algo impensável. Mas, o que nunca haviam imaginado estava acontecendo na frente de todos.
Diego havia apanhado de seu pai. O rapaz, porém, ao ver-se humilhado na frente de todos, proferiu algumas palavras, as últimas contra seu pai:
-- Pois saiba senhor meu pai. Está será a última vez que o senhor encostará o dedo em mim. Nunca mais o senhor irá levantar sua mão para mim. Está ouvindo? Seu imoral hipócrita. Eu não te respeito mais. Nunca mais eu vou te respeitar. – disse logo depois de se levantar, para em seguida, sair dali.
O escravos, que estava acompanhando tudo de perto, ficaram ainda mais assombrados.
A vida naquela fazenda nunca mais seria a mesma. Diante da confusão armada, tudo estava ficando muito confuso.
Rodrigo então, tentando entender a atitude de Ataúfo, perguntou então:
-- Do que o senhor está falando. Por acaso Rosália lhe foi infiel?
-- Sim. E infelizmente eu tive de puni-la. Primeiramente, matei seu amante, depois me livrei de sua filha.
-- Quer dizer então, que Rosália também teve uma filha ilegítima?
-- Teve. Uma bastarda. Uma maldita criança que só serviu para me humilhar. Sim, ela conseguiu me humilhar. Não bastasse seu desprezo, eu ainda tive que passar por isso ... Agora entende por que eu tive que vendê-lo. Com o escândalo, se eu os mantivesse na fazenda, isso não seria nada bom. Para nenhum de nós. Além disso, procurei vendê-los para alguém que sabia iria tratá-los bem.
-- Como escravos. Mas segundo o senhor, tratava-nos muito bem.
-- Não fales assim comigo. Eu sempre tentei te proteger. Se falhei me perdoe. Porém, saiba que fiz mais do que muitos pais fariam.
-- E isso ameniza suas omissões. – respondeu Rodrigo ironicamente.
-- Meu filho, eu sei que isso não resolve nem apaga todas mágoas. Mas me perdoe, eu não quero ter de conviver com seu ódio. O seu ódio não. – disse Ataúfo, em tom de súplica.
Foi então que Rodrigo perguntou sobre o fim que ele havia dado a criança.
Ao ouvir isso, Ataúfo tentou o quanto pôde, fugir da resposta. Mas Rodrigo insistiu, queria por que queria saber o que havia sucedido a criança.
Assim, sem ter como escapar das explicações o fazendeiro então disse:
-- Pois bem. A menina que causou toda a minha desgraça ainda vive. Está nesta fazenda. Diante de todos vocês. Inclusive você, meu filho, para minha tristeza, é um grande amigo dela.
Todos os presentes se espantaram.
Rodrigo mais ainda. Tanto que chegou a perguntar:
-- Thereza?
-- Sim. Esta maldita. – respondeu rispidamente o fazendeiro.
Thereza que até então, amarrada ao tronco, ouvia tudo calada, perguntou ao fazendeiro:
-- Quer dizer então, que é por isso que me odeia tanto? É por isso que todos me olham com desconfiança? É por isso? – perguntou ela desesperada.
No que Ataúfo respondeu:
-- Sim. É por isso. Você é a personificação de minha vergonha e de minha família. Eu não a suporto. – respondeu irado.
-- Então meus pais, não são os meus pais verdadeiros?
-- Não. Eu que arrumei esta família para você. Para que sua origem não levantasse suspeitas.
-- E se minha presença lhe era insuportável, por que deixou que eu permanecesse por aqui? Por que não me vendeu como fez a teu filho? – perguntou ela, visivelmente angustiada com a possível resposta.
-- Por que eu precisava me vingar de Rosália. Eu precisava me vingar da mulher que me traiu. E você me viabilizaria isso. Por esta razão eu fui seu carrasco durante todos esses anos. Por que eu não a suporto.
-- E o que o senhor fizeste a ela, não foi o suficiente? – perguntou Thereza já quase chorando.
-- E o que eu fiz a ela? Ela morreu por sua culpa. Eu não a matei. – respondeu secamente.
Thereza então, percebendo-se ainda amarrada ao tronco, começou a gritar que queria ser solta. Desesperada, se debatia, tentando se soltar inutilmente das correntes que a prendiam ao tronco.
Nisso Ricardo, que até então ouvira tudo calado, atordoado com as revelações de Ataúfo, mas percebendo o desespero de Thereza, acorreu em sua direção e mandou o feitor soltá-la.
Porém, ao ver que o mesmo não a soltaria enquanto não recebesse uma ordem de Ataúfo, Ricardo, tomado de fúria, resolveu tomar para si as chaves das correntes que a prendiam e soltou-a.
Thereza, horrorizada com a história, não sabia como agir. Ao ser solta, ficou imóvel por alguns instantes. Após, saiu correndo em desabalada carreira em direção aos cafezais.
Ataúfo, constrangido, também não sabia o que fazer. Porém, ao ver a moça fugindo, ordenou ao feitor que partisse em seu encalço. Não queria que fugisse.
Rodrigo, perplexo, ao ouvir as ordens de seu pai, saiu a correr em desabalada carreira em direção a sede.
O fazendeiro então, ordenou aos feitores e demais empregados da fazenda, que levasse os escravos de volta para a senzala.
Depois, voltou para casa.
Porém, ao pedir a Ricardo que o acompanhasse, o mesmo se recusou, e assim como Rodrigo, saiu dali em disparada. Estava desapontado com seu pai. Apesar de sempre saber que não era muito estimado por este, nunca imaginara em sua vida que ele seria capaz de ter atitudes tão cruéis.
Assim, ao saber de tantas revelações decidiu que queria ficar só. E assim o fez.
Nisso quando Ataúfo finalmente pôs os pés na sede, descobriu que seus dois filhos haviam brigado.
Diego revoltado com a descoberta, resolvera descontar toda a sua raiva em cima de Rodrigo, que por sua vez, não deixou por menos. A cada provocação, o revide vinha na mesma intensidade. Por conta disso, os dois acabaram chegando as vias de fato.
Brigaram de rolar no chão, comentou uma das escravas que permaneceu na sede cuidando da casa.
Horrorizada com a briga, a escrava, com a ajuda de dois negros, apartou a confusão.
Ataúfo ao ouvir o relato da escrava, ficou desolado.
Seu maior temor estava se concretizando, sua família estava mais uma vez se desagregando. Desalentado, temia que seus três filhos resolvessem partir.
Por isso, ao pensar nessa possibilidade, resolveu que faria todo o possível para impedir que isto acontecesse.
Em razão disso, ao ser informado que haviam capturado Thereza, ordenou que a mesma ficasse trancafiada em uma das casas dos agregados.
Queria com isso, fazer com que Rodrigo não partisse.
Isso por que o fazendeiro sabia já há muito tempo, que o interesse de Rodrigo por Thereza era algo maior que uma simples amizade. Assim, queria arrumar uma maneira de prender o rapaz na fazenda.
Em seu íntimo sabia que o rapaz jamais partiria sem levar Thereza consigo. Ainda mais agora que sabia o por que de tamanho ódio do fazendeiro pela moça.
Assim, numa tentativa desesperada de prender o filho ali na fazenda, resolveu que deixaria de lado seu ódio e passaria a tratar a moça bem.
Já com relação a Diego, prometeu-lhe deixar toda a fazenda em que a família morava se o mesmo não fosse embora dali.
Contudo, com relação a Ricardo, as coisas foram um pouco mais complicadas. Isso por que o rapaz não estava nem um pouco interessado nas desculpas do pai.
Ataúfo então, percebendo que nada nem ninguém o prenderia na fazenda, disse-lhe que financiaria seus estudos em São Paulo e que quando se formasse, passaria a cuidar de outra de suas fazendas.
Com isso se denota que também não fazia muita questão da presença de seu filho.
E Ricardo percebeu isso. Tanto, que ficou ainda mais sentido com seu pai.
Assim, apesar de toda a revolta dos filhos, Ataúfo conseguiu manter os filhos perto de si.
Contudo, alguns dias depois do acontecido, um outro fato digno de nota, aconteceu.
Os negros, então cansados de lidar com as duras exigências do fazendeiro, com seu jeito duro e ríspido, resolveram se rebelar. Aliados aos últimos acontecimentos, estavam firmemente decididos a colocar fogo na fazenda e matar Ataúfo, bem como qualquer um que os tentasse impedir de fugirem.
Sim, estava desejosos de liberdade.
E assim, movidos neste propósito, logo que os empregados da fazenda abriram as portas da senzala para que fossem trabalhar, passaram a enfrentá-los.
Esses determinados na função de defenderem a propriedade de Ataúfo, não facilitaram a fuga dos negros, por isso mesmo, foram todos mortos pelos escravos. Seus corpos, foram colocados na senzala e trancados no fétido lugar.
Com isso, os negros então, se dirigiram até a sede. Estavam determinados no propósito de liquidarem Ataúfo.
Porém, ao contrário do que imaginaram, não foi preciso invadir a sede. O próprio Ataúfo, ao perceber a estranha movimentação, resolveu sair para ver o que estava acontecendo.
Nisso, qual não foi sua surpresa ao ver que os escravos estavam defronte a sua casa.
Revoltado, o fazendeiro ao ver aglomeração de escravos à sua porta, resolveu perguntar o que estava acontecendo.
Os negros então, ao verem a arrogância do fazendeiro, disseram-lhe que estavam saindo da fazenda. Mas antes iriam libertar Thereza e nem mesmo ele poderia impedi-los de partirem.
Tanto que, de posse das armas dos empregados de Ataúfo, ameaçaram o fazendeiro com as armas. Se o mesmo resistisse as investidas dos escravos, fatalmente seria alvejado por estes.
Assim Ataúfo não tinha outra alternativa.
Sem saber como agir, ficou parado no alpendre, onde os negros podiam vê-lo. O fazendeiro agiu dessa forma por que sabia que se tentasse entrar em casa, certamente levaria um tiro.
Por isso resolveu não arriscar. Ficou imóvel então.
Nisso os escravos invadiram todas as casas que haviam ali próximas.
Com isso, depois de algum tempo procurando, finalmente encontraram Thereza, recostada a parede de uma das casas, amarrada para que não fugisse.
Os escravos ao se depararem com a moça, ao verem seu triste semblante, ficaram penalizados com seu sofrimento.
Este fato deu-lhes ainda mais raiva.
Como Sinhô Ataúfo pudera lhe ser tão cruel? Afinal de contas, que culpa tinha a moça de Dona Rosália tê-lo traído?
Para eles, as atitudes do fazendeiro contra Thereza demonstravam claramente o quanto ele era covarde.
Isso por que, Thereza, na flor de seus treze anos, era inofensiva.
Assim, nada justificava a ira do fazendeiro.
Luciana Celestino dos Santos
É permitida a reprodução, desde que citada a autoria.
Poesias
sexta-feira, 12 de fevereiro de 2021
A DEUSA NEGRA - CAPÍTULO 10
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