Poesias

sexta-feira, 19 de fevereiro de 2021

A DEUSA NEGRA - CAPÍTULO 17

Thereza por sua vez, sentada em uma confortável cadeira no alpendre de sua casa, conversando com Cleide, percebeu que a mesma não se convencera de que ela só estava ali para descansar. A preceptora, hoje grande amiga da moça, desconfiada de que havia algum interesse por trás de tudo aquilo, começou a se preocupar com a moça. Ao descobrir que um dos moradores da região era também seu amigo, a mulher ficou espantada. Curiosa, diversas vezes perguntou a ela de onde os dois se conheciam.
Quando Thereza explicou que se conheceram no Rio de Janeiro, Cleide continuou desconfiada. Isso por que, pouquíssimas vezes, desde que ela passara a conviver com a família da moça, a viu viajar para a Corte.
Thereza dizendo então que o conhecera durante suas viagens, encerrou a conversa. Irritada com a insistência de Cleide em saber mais detalhes sobre a suposta amizade, levantou-se e se dirigindo para dentro da casa, respondendo que tinha outras coisas com que se ocupar.
Abelardo, conhecendo a fazenda, feliz por estar com Thereza, decidiu se inteirar da vida no campo. Dedicado, procurou auxiliar a esposa em seus afazeres.
Thereza, notando o interesse de Abelardo em administrar a fazenda, perguntou se ele gostaria de permanecer algum tempo por lá.
Abelardo, fazendo-se de desentendido, respondeu que precisava pensar um pouco. Porém, conforme o tempo passava, o rapaz se mostrava cada vez mais interessado na vida ao ar livre.
Entusiasmado com a beleza que o cercava, desde que passara a viver na fazenda, Thereza nunca ouvira dele que já era hora de partir. Pelo contrário. Desde que colocara os pés naquelas terras, deixou-se encantar.
Animado, era freqüentemente visto na pequena vila que distava da região.
No começo, os fazendeiros, incomodados com sua presença, faziam questão de ignorá-lo. Mais tarde porém, com Thereza se esforçando cada vez mais para se fazer respeitar, os latifundiários, reconhecendo a importância das obras da moça em benefício da comunidade, passaram a respeitá-la.
Sim, Thereza, além de doar uma grande soma em dinheiro para a reforma da igreja da vila, também passou a colaborar com outras obras. Preocupada com a situação dos negros na região, sugeriu ao padre que construíssem uma nova igreja, para que os mesmos, pudessem participar das missas.
Incialmente, ao tomarem conhecimento da idéia de Thereza, os fazendeiros, ficaram verdadeiramente chocados. Revoltados, sempre que se reportavam ao padre, diziam que a igreja fosse construída, se instalaria o caos no lugar.
Padre Lívio, decidido, ao contrário do que se poderia imaginar, nem por um minuto, se acovardou. Dizendo que seria bom os escravos terem um lugar de orações, deixou bem claro aos fazendeiros que nada o faria mudar de idéia. Ademais, procurando convencê-los de que era uma ótima idéia, comentou que, ocupando a mente dos negros com as doutrinas e dogmas religiosos, certamente eles deixariam de pensar em fugas e em se rebelarem contra eles.
Os fazendeiros, ouvindo as palavras sensatas do padre, depois de muito pensar, acabaram concordando.
Sim, o sacerdote estava certo. Se eles não se opusessem a construção da obra, poderiam posar de bons homens, generosos e tolerantes.
Durante a confusão, Thereza pensou inúmeras vezes que o padre desistiria da idéia. Temendo que a pressão dos fazendeiros o fizesse desistir da idéia de construir uma igreja para os negros, a própria Thereza, cansada da incerteza sobre a feitura da obra, resolveu construir uma capela em sua fazenda.
Com a ajuda de um arquiteto de São Paulo e contando com o valoroso trabalho dos negros libertos de sua fazenda, Thereza conseguiu construir uma bela capela em sua fazenda.
Quando o padre soube disso, fez questão de dizer aos fazendeiros que precisava apressar as obras da nova igreja. Visitando cada uma das propriedades, foi conseguindo a colaboração de todos para que a obra se realizasse.
Os latifundiários, ao saberem da construção da capela, na fazenda de Thereza, trataram logo de contribuir para as obras da nova igreja.
Sentindo-se desafiados, não queriam deixar por menos. E assim, muitos contribuíram com vultosas somas em dinheiro.
Padre Lívio, feliz com isso, ao passar pela fazenda de Thereza, logo comentou que todos os fazendeiros estavam colaborando financeiramente na construção da nova igreja.
Thereza, ao ouvir as palavras do padre, ficou deveras feliz.
Surpreso, o padre perguntou:
-- Mas não te incomoda o fato deles estarem fazendo tudo isso, só para medirem forças com a senhora?
-- Não me importo nem um pouco com isso. Para quem viu a resistência desses fazendeiros de perto, vê-los contribuindo para a construção da nova igreja, parece até um milagre. O senhor não acha padre?
Sem saber o que responder, o sacerdote concordou com a moça.
Convidado para cear em sua casa, o padre declinou do convite. Dizendo que ainda tinha que visitar a fazenda da família de Diego, ouviu uma pergunta intrigante de Thereza.
-- E o senhor acha que eles tem condições de contribuírem com as obras da igreja?
-- Sempre existe uma forma de ajudar. Se não for financeiramente, certamente poderá oferecer braços para realizarem as obras... – respondeu o padre. Depois, surpreso com a curiosidade da moça, perguntou. – Mas por que o interesse? Não sabia que a senhora tinha conhecimento da situação financeira da família.
Surpreendida com a pergunta, a moça respondeu:
-- Nada demais. Perguntei por perguntar. É que eu soube, por meio de comentários, que eles estão atravessando uma situação financeira muito ruim. Não sei se é verdade, mas como conheço um pouco um deles, fiquei preocupada.
-- É verdade. – respondeu ele. – A situação da família não é nada boa... Mas eu não sabia que a senhora conhecia a família.
-- De fato, eu não conheço a família. Mas eu conheço um pouco Rodrigo. Chegamos a conversar quando estive de passagem pela Corte. – respondeu ela visando afastar qualquer suspeita.
-- Entendo. – respondeu o padre.
Nisso, repetindo que precisava partir, despediu-se dela, de Abelardo e de Cleide.

Lívio, indo então ao encontro da família de Diego, ao chegar na sede da fazenda, cumprimentou Ricardo e entrando na sala, depois de dizer amenidades, foi logo perguntando sobre o restante da família.
Ricardo, dizendo que os irmãos estavam se aprontando para o jantar, pediu licença ao padre e foi chamá-los.
Em alguns minutos, os três irmãos voltaram para a sala.
Como o jantar já ia ser servido, Diego e Rodrigo, cumprimentaram o padre e, convidando-o para a ceia, acompanharam-no até a mesa.
Enquanto jantavam, o padre comentou que Diego estava em falta com ele.
O rapaz não gostou nem um pouco de ser censurado pelo padre.
Padre Lívio, não se incomodou nem um pouco com a reação do rapaz porém. Pelo contrário, dizendo que ele precisava ir mais vezes à igreja, comentou que Rodrigo e seu irmão Ricardo, estavam de parabéns.
Irritado com as palavras do padre, Diego foi logo perguntando o que ele queria.
Padre Lívio, fazendo um pouco de voltas em torno do assunto, foi dizendo que como surgiram novas demandas, e novas gentes estavam interessadas em expressar sua religiosidade, um novo tempo se apresentava.
Diego, percebendo a demora do sacerdote em tocar no assunto que o levara até lá, foi logo dizendo:
-- Padre Lívio, deixe de história. Vamos, diga logo. O que o trouxe aqui?
Ao se ver interrompido por Diego, meio sem jeito, Lívio foi dizendo que estava ali, por uma coisa muito nobre.
Diego, sem cerimônia, e sem paciência para delongas, disparou:
-- Padre. Diga logo. O que o trouxe para cá?
O sacerdote respondeu então:
-- Pois então. Eu vim até a sua casa para contar que estamos construindo uma nova igreja. Só que este templo será somente para os negros. No entanto, muito embora isso seja ótimo para eles, construir uma igreja gasta muito dinheiro, e é por isso que eu estou aqui.
Diego irônico, respondeu:
-- Eu já imaginava. Sua visita não seria gratuita. Absolutamente.
-- Mocinho, o senhor está me ofendendo. – respondeu o padre irritado.
-- Não estou não. Querendo meu dinheiro para construir obras para negros! Era só o que me faltava! Depois de tudo o que esses desgraçados nos fizeram.
Ricardo bem que tentou apartear, mas Diego, desabrido, mandou que ele se calasse.
Rodrigo, tentando discutir, foi logo dizendo que mais mal tinham feito os brancos. Só o fato de fazerem outros homens escravos, tornava tudo pior. Pior até do que destruírem uma fazenda.
Diego, ao ouvir as palavras de Rodrigo, criticou-o duramente. Dizendo que fora ele quem reerguera a fazenda enquanto ele se divertia na Capital, salientou que ele não era ninguém para criticá-lo.
Rodrigo retrucou. Dizendo que não partira a toa, e nem estivera se divertindo na Corte, respondeu que estudou e trabalhou para se manter. Depois de formado, chegou até a advogar.
Diego, irritado, respondeu:
-- Muito bom! E o que você fez de valor para esta fazenda?
Rodrigo então se calou.
Sorrindo, Diego continuou a proferir impropérios. Furioso, respondeu ao padre, que jamais ajudaria os negros que tiraram a vida de seu pai, e destruíram aquela terra. Dizendo que desde que a aquela tragédia se abatera sobre eles, nunca mais a fazenda se recuperou totalmente, disse ao padre que todas as dificuldades pelas quais a família estava passando, era culpa dos negros. Segundo ele, dos malditos escravos que os portugueses trouxeram para cá.
Desconcertado com a situação, Padre Lívio, resolvendo se retirar, despediu-se de todos, e dizendo que precisava voltar para sua igreja, tratou de sair o quanto antes.
Rodrigo e Ricardo, dizendo para ele terminar a ceia, bem que tentaram contornar a situação, mas a atitude intempestiva de Diego, impedia que o padre permanecesse ali.
Constrangido, o sacerdote, saiu da sede e guiando seu cavalo, voltou para a igreja.
Quando os demais fazendeiros tomaram conhecimento do ocorrido, a situação ficou muito ruim para ele.
Diego, que sempre fora por eles considerado com um sujeitinho arrogante e insuportável, filho de uma mulher ordinária e de um pai fraco, passou a ser ainda mais não tolerado por todos.
Os mesmos, ao saberem que ele em nada contribuíra para a feitura da obra, ficaram ainda mais revoltados com ele.
Com isso, enquanto o rapaz era mal visto por todos, Thereza, em razão de seu empenho em participar da vida na comunidade, era cada vez mais valorizada por todos.
A despeito de sua condição de mulher negra, e de viver em uma sociedade escravagista, ao perceberem que a moça não tinha o menor interesse em se indispor com eles, os fazendeiros, constatando ser ela bastante generosa, passaram a tratá-la cada vez melhor.
Sim, Thereza, colocando em prática seu plano, não media esforços para causar em todos uma ótima impressão.
Como benemérita, ajudou financeiramente na construção da nova igreja. Além disso, prometeu aos seus escravos, construir-lhes uma escola para que os mesmos pudessem aprender a ler.
Surpreso, os negros, ao tomarem conhecimento das intenções de Thereza, ficaram um tanto desconfiados. Depois porém, ao ver que a moça não estava de brincadeira, todos colaboram para construir a edificação. E assim, depois de algum tempo, as crianças, puderam ter um primeiro contato com as palavras. Os adultos, por sua vez, também foram ensinados.
E assim, na fazenda de Thereza, os empregados ficaram ainda mais agradecidos a ela.
A moça, porém, não fazia isso para conquistá-los.
Pelo contrário, o que ela queria era ajudá-los. Isso por que sendo um dia, escrava, Thereza sabia muito bem o que era viver em senzalas, ser destratado e desprezado. Por isso mesmo, depois de ver que todos aprovavam as mudanças que fazia em suas terras, Thereza pensou em construir casas para que eles tivessem um lugar melhor para viverem.
Quando ela sugeriu a eles que construíssem suas casas, todos a aplaudiram.
Satisfeitos com a patroa que tinham, percebiam que tudo estava melhorando para eles. Ganhando um salário, tendo uma casa boa para morar, escola para estudar, igreja para rezar, os negros estavam muito felizes por terem encontrado uma pessoa com Thereza em suas vidas.

Luciana Celestino dos Santos
É permitida a reprodução, desde que citada a autoria.

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