Debalde, porém.
Abelardo, conhecendo a posição da esposa, negou qualquer envolvimento na ação.
A moça então, sem ter o que fazer, respondeu que rezaria por ele. Sabendo que ele estavam mentindo, disse a ele para que tivesse cuidado. Isso por que, depois do ocorrido, quando o fazendeiro tomasse conhecimento de quem fora o responsável por aquela debandada de escravos, certamente tentaria se vingar.
Nisso seguiram-se alguns dias de tranqüilidade.
No entanto, após algum tempo de calmaria, novamente uma ação libertou outros escravos em uma fazenda vizinha.
Nova ação bem sucedida.
Todavia, na terceira operação, quando Abelardo, mascarado, tentava ajudar os escravos a fugir, o feitor da propriedade, percebendo a estranha movimentação, driblando a vigilância dos homens que acompanhavam o rapaz, foi até a sede da fazenda.
O fazendeiro, ao saber do que estava acontecendo, pegou sua arma e atirando na direção de Abelardo atingiu-o bem no peito.
O rapaz, ao sentir o impacto do tiro, caiu do cavalo imediatamente. Provavelmente nem teve tempo para se dar conta do que estava acontecendo.
Nisso os negros, que estavam por perto, percebendo a confusão, trataram de fugir. Correndo feito loucos, sumiram no mato.
E assim, muito embora o fazendeiro gritasse com os negros exigindo que os mesmos voltassem para a senzala, os mesmos não o obedeciam.
O fazendeiro desesperado, mandou o feitor tentar pegar os negros no meio do mato.
O homem, dizendo que não sabia o que fazer para achá-los, pediu para que o fazendeiro o liberasse para chamar primeiramente o capitão-do-mato. Percebendo que era o melhor a fazer, o fazendeiro concordou.
E assim seguiu a madrugada tormentosa.
Os demais integrantes do movimento abolicionista, ao perceberem que Abelardo estava morto, trataram se evadir da fazenda.
Nisso, o fazendeiro, se aproximando do corpo já sem vida do rapaz, ao puxar o capuz, percebendo que havia atirado em Abelardo, ficou espantado.
Surpreso, por um instante pensou que Thereza estivesse envolvida em toda aquela confusão. Diante dessa possibilidade, o homem ficou furioso. Depois porém, cauteloso, temendo a reação de Thereza, que nessa época era muito influente na região, o fazendeiro, escondeu o corpo.
Embrulhando o corpo de Abelardo numa manta, o fazendeiro enterrou o jovem longe dali.
Enquanto isso, Thereza, depois de ficar três dias sem ver o marido, preocupada com sua ausência, foi até o sítio. Ao lá chegar, percebendo que Abelardo não estava por lá, Thereza ficou ainda mais preocupada.
Intranqüila com a ausência de Abelardo, Thereza pediu a Antenor para que fosse até a vila para descobrir se algo estranho estava acontecendo.
Antenor, foi.
Ao chegar na venda que havia na região, ouviu comentários a respeito de uma nova ação numa fazenda vizinha.
Contudo, sob a desculpa de que precisava comprar alguns mantimentos para a fazenda, muito embora tenha tentado, não conseguiu maiores detalhes sobre a ação dos invasores.
Thereza, ao saber que uma nova ação ocorrera, ficou apavorada.
Comentando com Cleide que ele poderia estar em perigo, confessou que temia que ele pudesse estar morto.
A amiga, notando o desespero, tentou de todas as maneiras possíveis, convencer Thereza de que ela estava errada.
Inutilmente.
Thereza, convencida de que Abelardo estava morto, pediu que a quatro de seus funcionários que vasculhassem os arredores das três propriedades em busca de algum indício da presença de Abelardo.
Cautelosa, sabia que não podia dizer o que sabia. Assim, procurou agir o mais discretamente possível.
No entanto, não foi preciso muito empenho para que descobrissem o paradeiro de Abelardo. Isso por que, na pressa em se livrar do corpo, o autor da morte, não tivera o devido cuidado em fazer uma cova profunda. Assim, em questão de dias, uma das mãos, surgindo na flor da terra, deu o sinal que precisavam. Um dos homens, ao ver a mão, tratou de desenterrar o corpo. Ao ver que era Abelardo, o homem ficou chocado.
Assim, ao final de alguns dias, finalmente Thereza soube o que havia sucedido ao marido.
Desolada, apesar de saber o que tinha se sucedido, a mulher sentiu muito a morte do esposo. A despeito de estarem brigados, Thereza e Abelardo se amavam e para ela, perder seu companheiro, foi extremamente doloroso.
Em razão disso, Cleide, percebendo o penar de Thereza, prestativamente se ofereceu para cuidar de todos os detalhes da cerimônia fúnebre.
A Thereza restou portanto, se recordar dos bons momentos que tivera com Abelardo. Sentida e emocionada, Thereza se lembrou do casamento com Abelardo, da presença amiga de seus pais de criação, e da atmosfera de tranqüilidade e amor que enchiam seu coração de paz, naquele momento tão sublime de sua vida.
A cerimônia, realizada numa igreja simples, causou espanto na sociedade paulistana. Isso por que, um casamento entre pessoas da raça negra não era comum, entre a elite. Assim, por menos interesse que as pessoas tivessem em comparecer ao casamento, os jornais publicaram a notícia. E assim, mesmo em se tratando de uma igreja modesta, o casamento foi celebrado diante de muita gente. Amigos e até mesmo figuras ilustres da sociedade paulistana, compareceram à cerimônia.
Durante a cerimônia, esqueceu-se de sua triste história. Por alguns instantes esqueceu-se da idéia de vingança.
Assim, a moça ouviu atentamente as palavras do padre. Felizes, Dona Odete e Seu Hélio, acompanharam o casamento da única filha que tiveram na vida.
No final da cerimônia de celebração do casamento, uma cena de conto de fadas. Thereza, acompanhada de Abelardo, subiu em uma carruagem, cuidadosamente decorada para a ocasião, e passearam um pouco pela cidade. Mais tarde, foram aproveitar a lua-de-mel.
Feliz por ter encontrado alguém como Abelardo, Thereza pensou em desistir de sua vingança, ao menos por alguns instantes.
Agora com a morte de seu fiel companheiro, não havia mais nada que impedisse de finalmente executar seus planos de vingança. Triste porém, não conseguia pensar em mais senão na idéia de que estava completamente sozinha. Sozinha como sempre estivera, durante boa parte de sua vida.
Pesarosa, apesar de toda a dor que decerto sentia, a moça ficou o tempo todo ao lado do caixão. Lacrado, posto que o corpo já se encontrava em decomposição, Padre Lívio dizendo a moça que não podiam ficar com o corpo dentro de casa, pediu para rezar uma pequena missa.
Thereza, aturdida, envolvida em um turbilhão de emoções, concordou com o padre.
E assim, o sacerdote, percebendo o estado de espírito de Thereza, tratou de se apressar para começar a cerimônia. Cumprindo toda a liturgia exigida pela igreja, o homem terminou a missa, encomendando o corpo.
Dizendo a todos que rezassem para que Abelardo descansasse na morada do Pai Celestial, rezou um pai nosso. Depois, dizendo que poderiam levar o corpo, pediu a quatro empregados, que conduzissem o caixão.
Alguns fazendeiros, ao saberem da morte repentina do rapaz, foram até a fazenda de Thereza prestar suas condolências.
A mulher de luto, ao ver aqueles homens em sua casa, por um instante, pensou em expulsar a todos de lá.
Furiosa, quase colocou tudo a perder. Não fosse a intervenção de Cleide teria destruído seu trabalho de meses em convencer aqueles fazendeiros de que ela não era uma ameaça.
Sim, Cleide agil rápido.
Dizendo que Thereza não estava bem, pediu a eles que a desculpassem. Afinal de contas ela estava vivendo um momento muito difícil.
Um dos fazendeiros, dizendo que compreendia a atitude da moça, comentou que era totalmente aceitável o fato dela não estar sendo muito amigável com eles naquele momento.
Cleide agradeceu a compreensão.
Nisso, depois do término da missa, os empregados da fazenda, Thereza, seus amigos e os demais fazendeiros da região, acompanharam o enterro de Abelardo.
Solenes, acompanharam o enterro.
Ao verem o caixão receber as primeiras pás de terras, alguns homens comentaram com Thereza que a perda de Abelardo era lastimável.
Thereza tristemente, só ouvia.
Sentida com a perda de Abelardo, a mulher prestou sua última homenagem. Despetalando as rosas que trazia consigo, Thereza lançou-as no túmulo de seu querido Abelardo. Emocionada, disse ainda, que inscrevessem na lápide: ‘Ao meu querido esposo’.
Ao ouvirem isso, todos elogiaram Thereza.
A morte, comentada em toda a região, chegou até a fazenda de Diego. Mas este, ao saber da morte de Abelardo, não se incomodou nem um pouco. Dizendo que a morte de um negro não significava nada para ele, comentou que era até bom aqueles negros morrerem, pois assim, não misturavam sua cor com a cor dos brancos.
Ricardo ao ouvir as palavras do irmão, ficou assombrando com a indiferença de Diego. Por isso mesmo recriminou-o.
Diego no entanto, não se importava com o que Ricardo pensava a seu respeito.
O jovem mancebo porém sentindo-se no dever de prestar suas condolências, foi até a fazenda de Thereza. Lamentando sinceramente a morte de Abelardo, ofereceu seus préstimos.
Thereza, visivelmente abatida, agradeceu a gentileza.
Quanto a Rodrigo, este por estar viajando, só tomou conhecimento do óbito, semanas após o ocorrido. Determinado a vender as sacas de café estocadas em sua fazenda, o rapaz foi até Santos negociá-las.
Assim, negociando a mercadoria, o rapaz passou algum tempo longe da fazenda.
Quando finalmente retornou para casa, qual não foi sua surpresa ao saber que Thereza se encontrava na triste condição de viúva.
O jovem mancebo, sentindo-se no dever de amparar a amiga de infância, foi até a fazenda de Thereza. Apressado, nem desfez suas malas. Ansioso por ver a moça, o mandou o capataz preparar um cavalo. Dizendo que queria sair imediatamente para cavalgar, causou surpresa.
Como havia voltado de viagem, todos acreditavam que Rodrigo devia estar exausto. Porém, ao saber da morte de Abelardo, o rapaz, ao invés de esperar o dia seguinte, quando então estaria mais descansado para visitá-la, resolveu fazer a visita imediatamente.
Rodrigo, percebendo o espanto de todos, comentou que precisava dar umas voltas. Mais tarde voltaria e descansaria.
Ricardo, sabendo Rodrigo era amigo de Thereza, entendendo a atitude do mesmo, disse a ele que não tivesse pressa.
Isso por que, apesar do mesmo nunca ter admitido a natureza de sua admiração por Thereza, sabia perfeitamente que ele sentia por ela bem mais do uma simples amizade.
E assim, montando um cavalo o rapaz cavalgou veloz, em direção a fazenda de sua amiga Thereza. Angustiado, cada trote do cavalo acompanhava as batidas do seu coração. Exausto, finalmente chegou a fazenda.
Adentrando a propriedade, a certa altura, foi interpelado por Antenor que curioso, queria saber onde o mancebo almejava ir.
Rodrigo, apeando de seu cavalo, usando de toda sua diplomacia, respondeu que precisava conversar com Thereza. Dizendo que tinham um assunto muito importante para resolver, pediu ao capataz que o deixasse seguir. Alegando o assunto que tinha a resolver com ela mudaria para sempre sua vida, pediu novamente licença.
Antenor, percebendo o ar de gravidade do rapaz, consentiu que o mesmo seguisse até a sede. Rodrigo agradecido, retirou seu chapéu, e fazendo um cumprimento, subiu em seu cavalo e continuou cavalgando.
Agora porém, percebendo a proximidade da sede, passou a cavalgar cada vez mais lentamente. Estava nervoso.
E a cada passada de seu animal, mais Rodrigo sentindo que não podia mais recuar, enchendo-se de coragem, prosseguiu.
Finalmente, ao chegar em frente a sede, percebendo a beleza da construção, pensou o quanto Thereza devia estar sozinha. Imaginando-a triste e meditativa, chegava a se perguntar, como faria para dizer o que ía em seu coração.
Nessa dúvida, o rapaz permaneceu durante um longo tempo. Depois a certa altura, cansado de esperar, decidiu entrar na casa.
Enquanto caminhava pelo alpendre, Cleide, que circulava pela sala, acabou o encontrando. Perguntando o que ele desejava, ouviu como resposta que ele precisava conversar com Thereza.
Cleide, dizendo que Thereza não estava em condições de receber ninguém, pediu a ele esperasse para conversar com ela outro dia.
Rodrigo, imaginando que isto poderia acontecer, disse a Cleide que o que tinha a dizer a Thereza era de suma importância. Tão importante que não poderia esperar nem um dia para ser dito.
Cleide, tentando então saber o teor da conversa, começou a fazer perguntas ao rapaz.
Rodrigo, percebendo a curiosidade da mulher, respondia apenas que o assunto era reservado e que só conversaria sobre ele com Thereza.
Cleide, percebendo então que não faria o rapaz desistiu, tratou logo de chamar Thereza. Conversando com a moça, que abatida, mal saíra da cama, a mulher disse-lhe que Rodrigo estava aguardando-a. Dizendo que algo muito importante para falar, Cleide alegou que o mancebo parecia bastante afoito.
Thereza, ao ouvir as palavras de Cleide, desistiu de tentar resistir ao encontro. Assim, dizendo para que ela que primeiramente se vestiria e depois iria conversar com o rapaz, pediu a Cleide que o deixasse entrar na sala.
Cleide concordou.
Thereza então, escolhendo um vestido preto, arrumou-se e foi até a sala conversar com Rodrigo. Tentando esconder seu abatimento, passou um pouco de carmim sobre as maçãs do rosto.
Mesmo assim sua tristeza era evidente.
Rodrigo ao vê-la se aproximando, sentado, logo se levantou.
Thereza cumprimentou-o e perguntando qual era o assunto, sentou-se.
Rodrigo, retribuindo o cumprimento também novamente sentou-se. Depois, dizendo que primeiramente gostaria de hipotecar sua solidariedade, respondeu que sentia muito o que havia acontecido.
Thereza, agradeceu a preocupação.
Rodrigo, desculpando-se então por sua ausência, disse que estivera viajando, e que só soube do passamento de Abelardo a poucas horas.
Thereza respondeu que compreendia sua situação.
Rodrigo então, se aproximando, segurou as mãos de Thereza. Gaguejando, comentou que embora aquele não fosse o momento oportuno, disse que há muito tempo que dedicava a ela a mais distinta consideração.
Thereza, ouvindo as palavras de Rodrigo, respondeu aturdida, que não estava entendendo onde ele queria chegar.
O mancebo, tomando coragem, respondeu que quando encontrou-a no Rio de Janeiro, ficou muito desapontado ao saber que ela estava casada com Abelardo.
Thereza, ao ouvir estas palavras, ficou chocada.
Rodrigo, percebendo que se excedera, pediu desculpas. Em seguida, dizendo que ficara enciumado, confessou que inúmeras vezes desejou estar em seu lugar.
Thereza ficou ainda mais espantada.
Rodrigo, percebendo que a moça tentava soltar sua mão, passou a segurá-la com mais força. Decidido, o rapaz, percebendo o constrangimento da moça, logo disparou a seguinte pergunta:
-- Quer se casar comigo?
Thereza, ao ouvir a proposta de Rodrigo, ficou espantada. Sem saber o que dizer, precisou pensar bastante antes de perguntar se ele estava ficando maluco. Dizendo que fazia semanas que enviuvara, a moça respondeu que não tinha como se casar.
Rodrigo sabendo disso, respondeu-lhe que não precisavam se casar imediatamente. Também não precisava lhe dar uma resposta naquele instante.
Thereza disse então:
-- Não sei o que pensar.
Rodrigo percebendo que surpreendera a moça, insistiu em dizer-lhe que não precisava ter pressa.
Thereza atônita, depois de muito pensar, respondeu que não sabia o que dizer. Por isso mesmo, tentando ganhar tempo, pediu ao mancebo que esperasse um pouco para que ela pudesse responder sua proposta.
Rodrigo dizendo que esperaria o tempo que fosse necessário, comentou que precisava voltar para casa. Dizendo que precisava ver como ficaram as coisas quando ficou ausente, respondeu que nos próximos passaria por lá para saber sua resposta.
Thereza sem direito o que dizer, perguntou ao rapaz se ele não queria ficar para jantar.
Rodrigo, mesmo sentindo vontade de ficar, respondeu que precisava voltar. Antes de partir porém, pediu a ela que ficasse bem.
Educada Thereza se despediu dele.
Rodrigo então, apressadamente, voltou para a fazenda. Como a noite estava prestes a cair, o rapaz decidiu se apressar.
Cavalgando velozmente, chegou ao cair da noite na fazenda. Cansado, resolveu tomar um banho e logo em seguida, deitou-se. Fatigado, nem quis saber de jantar.
Ricardo, percebendo que o dia fora longo para ele, resolveu não incomodá-lo. No dia seguinte, durante a tarde Ricardo, percebendo o ar de tranqüilidade de Rodrigo, foi logo perguntando como tinha sido a conversa entre eles.
Rodrigo, dizendo fora até lá somente para prestar suas condolências, respondeu que não tinha nada para comentar. Alegando que tinha que conversar com o feitor da fazenda, respondeu que precisava saber como tudo estava.
Ricardo dizendo que ele poderia perfeitamente informá-lo de tudo o que acontecera nos últimos dias, disse que ele e Diego cuidaram muito bem da propriedade.
Rodrigo, dizendo que confiava nele pediu a ele que contasse então como tudo transcorrera.
Foi o que Ricardo fez.
Luciana Celestino dos Santos
É permitida a reprodução, desde que citada a autoria.
Poesias
sexta-feira, 19 de fevereiro de 2021
A DEUSA NEGRA - CAPÍTULO 19
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