Saudade de um tempo, que os anos não trazem mais.
Verde visão dos vastos campos do lugar.
Agora que em terra firme eu piso, vou lhes contar uma história.
Esta é a história de uma vida.
Há muito tempo, numa cidadezinha qualquer, uma curiosa história se passou.
História essa que foi criada pela pena do artista.
Começa assim.
Um dia, há muitos anos atrás, surgiu em um pequeno moisés, uma criança abandonada.
A mãe provavelmente, sem condições de cuidar do bebê o abandonou na porta de uma casa e foi embora para nunca mais voltar.
E assim a pequena criança por sua ficou lá. Deitada e protegida do mal tempo, a menina dormia placidamente dentro do cestinho.
Até que, a certa altura, ao acordar, já em plena madrugada, começou a chorar. Chorava tanto que em dado momento, a família que lá morava, escutando o choro, resolveu se levantar e ver o que era.
Qual não foi a surpresa dos moradores da residência, ao se depararem com um moisés abandonado, dentro do qual uma criança dormia.
De tão admirados, não sabiam o que fazer.
Até que Carla, mãe de três crianças, comentou:
-- Por hora, a única solução que vejo, é entregar esta criança para a polícia. Afinal de contas, não queremos ter problemas. Criança é caso sério. Não podemos ficar com ela.
No que seu marido concordou.
Mas as crianças, ao verem o bebê, começaram logo a brincar com ela. Encantadas com o diminuto tamanho do bebê, elas só queriam saber de segurá-la e de alguma maneira, chamar sua atenção.
Carla, ao perceber isso, resolveu levar a criança para a polícia no dia seguinte.
Isso por que, dado o adiantado da hora, nem dava mais para ir até a delegacia, que aquela hora já devia estar fechada. Assim, só lhe restava esperar para resolver o assunto no dia seguinte.
Por isso, depois dos moradores ajeitarem a criança, todos foram dormir.
Para tranqüilidade da família, a criança não acordou mais. Dormiu tranqüilamente por toda a noite. Um sossego total.
No dia seguinte, Carla tratou de se arrumar para ir até a delegacia e entregar a criança. Mas qual não foi sua surpresa ao perceber que seus três filhos, brincavam com a menina.
Aborrecida com a cena, Carla foi logo avisando os filhos que aquela criança não ficaria por muito tempo em sua casa.
Os três, ao ouvirem isso, ficaram desapontados.
Estranhamente, não sentiram ciúmes ao verem um bebê em casa. Ao contrário. Para eles, era até divertido ter alguém menor que eles para brincar. O bebê lhes lembrava uma boneca. Coisa rara para pessoas tão pobres quanto eles.
Com o bebê, as duas meninas poderiam de certa forma, brincar de boneca. Era divertido.
Mas Carla insistia em dizer, que a menina deveria ir embora.
Contudo, Érica, Elena e Carlos, não queriam que a menina fosse levada.
Nessa época as três crianças tinham, sete, seis e nove anos, respectivamente. Portanto, já eram grandinhos.
Com isso, percebendo que a mãe faria de tudo para levar a criança para longe, os três insistiam em dizer que seriam capazes de cuidar dela.
Foi o suficiente para que se instalasse uma confusão.
Antônio, marido de Carla, percebendo a confusão, tratou logo de sugerir uma solução.
Vendo que a mulher estava irritada com a teimosia dos filhos, Antônio sugeriu que eles ficassem com a menina durante alguns dias. Dessa forma, as crianças, ao perceberem que cuidar de um bebê dá trabalho, fariam de tudo para que a mãe a levasse embora dali.
Carla, ao ouvir a idéia do marido, tratou logo de concordar. Contudo, exigiu que os três filhos, se responsabilizassem pela criança. Sim, Elena, Carlos e Érica, teriam que cuidar da menina.
Mas as crianças, felizes com a possibilidade de ficarem com o bebê, concordaram prontamente com a idéia de Antônio.
E assim, terminada a discussão, Carla, observando melhor o cesto onde a criança estava, percebeu um bilhete fixado no cobertor. Nisso, cuidadosamente abriu a carta e começou a ler.
No bilhete estava escrito:
“Deixo Anne aos cuidados de Vossa Senhoria, por que neste momento eu não tenho condições de fazê-lo. Minha situação é muito complicada. Tentei o máximo que pude, cuidar do bebê. Mas não consegui. Contudo, por pouco que tenha feito, registrei-a em meu nome, e deixo a certidão de nascimento com a senhora. Desculpe pelo incômodo. Espero que vocês cuidem bem dela.
Assinado, Estela.”
Ao terminar de ler o bilhete, Carla comentou com o marido:
-- Esta Estela coloca filho no mundo, e eu é que sou obrigada a criar. Essa é muito boa, realmente!
Nisso, Antonio se despediu da esposa. Tinha que trabalhar.
Foi o bastante para ouvir uma bronca de Carla:
-- Que ótimo! Você trabalha fora, e eu aqui me mato para cuidar dessa criança chorona.
Ao ouvir a reclamação, Antônio não deu atenção a mulher. Isso por que, sabia que quando ela ficava contrariada com alguma coisa, começava a resmonear. Quanto a isso nada podia ser feito.
Dessa forma, o homem resolveu sair o mais depressa possível de casa. Antes mesmo de ouvir outra bronca. Isso por que, logo que percebeu que viriam mais reclamações Antônio, fez questão de sumir dali.
Com isso, durante todo o dia Carla ficou com as crianças. Com as crianças – os filhos dela –, e mais Anne.
Ela no entanto, ao contrário do que se poderia esperar, não cuidou da criança. Muito pelo contrário. Também, não moveu uma palha para ajudar seus filhos a cuidarem da menina.
Intencionalmente, ela queria que eles se aborrecessem o quanto antes da dura empreitada a que haviam se submetido.
Mas Érica, Elena e Carlos, para sua decepção, não desistiram. Cuidaram da menina durante toda a tarde. Deram-lhe banho, alimentaram-na, e a colocaram para dormir.
No entanto, mesmo sem participar ativamente dos cuidados com a menina, Carla teve que diversas vezes, responder as perguntas dos filhos sobre como cuidar de um bebê.
Quanto ao restante, os três sabiam se virar muito bem.
Isso por que, Carla, apesar de não trabalhar fora, não era muito afeita a trabalhos domésticos. Assim, quando as crianças sentiam fome, e ela não estava interessada em cozinhar, eram as próprias que preparavam sua comida.
Até por que, de outra forma, teriam que esperar até o horário do jantar para comerem alguma coisa.
Com isso se pode perceber que Carla não era uma mãe exemplar. Extremamente relapsa, só fazia as vezes de dona de casa, quando o marido chegava.
Diante disso, Antônio, apesar de viver há quase onze anos com Carla, não sabia nada sobre a mulher. Enganado, mal sabia que durante o dia, eram as crianças que tomavam conta da casa.
E assim, as crianças lavavam, passavam e cozinhavam. Mal tinham tempo para brincar.
Por isso, quando Anne apareceu, surgiu a possibilidade delas resgatarem uma parte da infância que haviam perdido. Poderiam brincar com ela. Daí o empenho em cuidar bem da menina.
E foi o que fizeram.
A casa, composta de três cômodos, no entanto, era pequena demais para uma família tão numerosa. Mas eles se ajeitavam. E a casa, apesar de pequena, era limpa e arrumada.
As crianças era caprichosas. Até por que, se não o fossem, seriam severamente castigadas por Carla. Assim, entre surras e ameaças, os três aprenderam praticamente sozinhos, a cuidarem de uma casa.
Com isso, dado o fato de haver um benefício para quem matriculava e mantinha os filhos na escola, Érica, Elena e Carlos, freqüentavam assiduamente o lugar. Assim, além de cuidar da casa, os três tinham também que estudar.
Mas eles já estavam acostumados com essa rotina.
Carla, por sua vez, raramente passava as tardes em casa.
Desta forma se percebe que os três estavam mais do que acostumados a ficarem sozinhos. Sempre sozinhos.
Assim, para eles, ter a companhia de Anne era algo compensador.
Anne, a garotinha, mal dava trabalho. Como era muito pequena, passava boa parte do tempo dormindo. Assim, os três podiam trabalhar sossegados. E durante algum tempo, essa convivência foi pacifica.
Contudo, ao longo de uma semana, os três começaram a se dar conta, de que cuidar de uma criança pequena dava trabalho.
Sim, os três estavam cansados.
Carla ao perceber isso, ficou extremamente satisfeita. Isso por que, apesar de raramente cuidar da criança, sabia que um bebê incomodaria bastante a todos.
Aborrecida com a novidade, ela não cansava de dizer que mais uma boca para alimentar não era bom. Afinal, mal tinham para eles, e criança dava muita despesa.
Com isso, os três, cansados que estavam de cuidar da menina, começaram a pedir para os pais que levassem-na para outro lugar.
Porém, quando finalmente foram atendidos, e Antônio e Carla concordaram em levar a menina embora, os três, arrependidos do gesto, pediram para que eles não a levassem. Alegando que sentiriam saudades da Anne, não queriam se despedir dela.
Antônio então, comovido com o gesto dos filhos, disse a eles que também ajudaria a cuidar da criança.
E dessa forma, para desespero de Carla, a criança ficou.
Ficou e por quase todos foi bem tratada, pelo menos durante aqueles primeiros anos.
Contudo, conforme os anos foram se passando, Anne começou a perceber que aquele não era seu lugar.
Isso por que, embora inicialmente tenha sido bem tratada, com o passar dos anos, passou a sistematicamente a ser posta de lado.
Tanto que com apenas cinco anos, já ajudava a cuidar da casa. E assim, Anne cozinhava, limpava os cômodos, lavava a louça, a roupa e passava.
Lentamente, Anne passou a ser tratada por todos como empregada.
E aquilo que parecia ser um afeto verdadeiro, converteu-se em mera tolerância.
Nisso, Érica, agora com doze anos, só queria saber de sair.
Elena por sua vez, influenciada por Érica, só queria saber de seguir os passos da irmã.
Já Carlos, acostumado a competir com os meninos, não se interessava mais pela companhia das irmãs, e como Érica, só queria saber de ficar na rua. Para ele, não havia lugar melhor.
E nisso o tempo foi passando.
As crianças foram crescendo, e as coisas foram mudando.
Anne então, foi ficando cada vez mais sozinha. Ela, uma garota muito pobre, foi criada por uma família igualmente pobre.
Contudo, como se pode perceber, pobre, não só por que desprovida de recursos, mas também por que fora duramente cruel para com ela.
Isso por que, o brinquedo que os meninos tanto queriam, revelou-se ao longo do tempo, precisar de alguns cuidados e requerer muita atenção. E isso não era bom. Não era bom por que os três, já submetidos a uma rotina cansativa, passaram a ter que cuidar de uma criança.
Criança que chora, que tem fome, que precisa de banho, e isso era muito para eles.
Com isso, Carla então, percebendo que a menina crescia, resolveu que seria uma ótima alternativa colocá-la no lugar dos filhos, para fazer o serviço da casa.
E sem pensar duas vezes, foi exatamente isso que fez.
Não sem antes brigar muito com Anne. Algumas vezes chegou até a bater nela, por que o serviço não estava bem feito.
E nem mesmo com o choro da menina, ela se continha.
Antônio então, preocupado com os excessivos castigos que a mulher lhe impunha, chegou diversas vezes a questioná-los.
Mas, o pior ele não sabia.
Como não ficava durante o dia em casa, Antônio não sabia que seus filhos cuidaram da casa durante muitos anos e que agora era a vez de Anne.
Mas com Anne era pior. Isso por que, além de ter de cuidar da casa inteira sozinha, ainda tinha que suportar o mal-humor de Carla, que sempre implicou com ela.
Isso por que, Carla, diversas vezes fez questão de humilhá-la na frente dos filhos. Tal fato contribuiu e muito para que estes perdessem o pouco respeito que ainda tinham por ela.
Considerada agregada, Anne agora era como uma empregada da casa.
E assim, maltratada e desrespeitada, Anne era uma garota triste. Tão triste, que não sabia o que era ser alegre. Tão triste, que achava normal seu estado de espírito. Tanto que nunca lutou contra isso.
Pior. Com o passar dos anos, Anne acostumou-se com os maus-tratos e a indiferença. Isso por que, com bastante freqüência, era agredida por Carla, que sempre implicou com ela.
Mas isso não era tudo.
Até por que, conforme os anos foram se passando, Anne cada vez mais se distanciava da família Pereira.
Quando finalmente ingressou na escola, Anne, pouco a pouco foi aproveitando para ficar cada vez mais tempo longe de casa.
Assim, conforme os anos se passavam, a moça aproveitava para ficar vagando pelas ruas da cidadela, até voltar para casa.
Isso para Carla, era a gota d’água.
Certo dia, irritada com a demora da moça em voltar para casa, Carla resolveu trancar a porta da sala e deixá-la do lado de fora.
Com isso, quando Anne chegou em casa, por mais que batesse na porta pedindo para entrar, ninguém a atendia. Dessa forma, só restou a ela, dormir em outro lugar.
E assim o fez.
Por conta da raiva que sentia daquela família que a maltratava, Anne passou dias afastada de casa.
Porém, por mais que não quisesse, ela precisava retornar. Isso por que, não tinha como se manter. Dependia da família Pereira. E assim, Anne contrariada, voltou para casa.
Foi então que Carla, ao vê-la novamente, espantada com o seu comportamento, perguntou:
-- Onde é que a senhorita pensa que vai? Por acaso não sabe que aqui temos regras? E que história é essa de ficar tantos dias longe de casa? Está pensando que isto é um albergue? Não se esqueça que você tem uma casa para cuidar.
Mas Anne não deu ouvidos. Ignorando as palavras de Carla, foi para o seu quarto e lá se fechou.
Sim, à essa altura a família já estava melhor estabelecida, morando em uma casa maior.
Anne até possuía um quarto só para ela. Mas era um quarto bagunçado e mal cuidado.
Carla quando via aquilo, dizia que Anne era preguiçosa e indolente. Pronto, estava criado mais um motivo para discussões.
Mas a moça, ao contrário do que se poderia imaginar, raramente respondia as provocações. Ao contrário, quando ela sentia que as coisas iriam esquentar, tratava logo de sumir dali.
Contudo, nem sempre Anne conseguia se livrar das broncas.
E as broncas eram pesadas. Isso quando não viravam castigos, os quais passaram a ser sempre desrespeitados pela moça.
Assim, ante o comportamento desobediente de Anne, Carla ficava cada vez mais irada com a moça. Por conta de sua raiva chegou várias vezes a ameaçar Anne com surras. Mas Antônio, apiedando-se da moça, pedia a esposa para que não batesse nela.
No entanto, mesmo ele já tinha reservas quanto a moça. Isso por que, com a campanha que Carla fazia contra ela, ele já tinha também, se acostumado a desprezá-la.
E assim, mesmo sentindo pena de Anne, não conseguia mais gostar dela.
Esta era a vida de Anne.
Quando ficava em casa, era compelida a trabalhar para pagar os anos de dedicação que os Pereira lhe dedicaram. Por conta disso, todo serviço doméstico ficava por sua conta.
E era por isso que todos a queriam por perto. Para que ela cuidasse da casa deles, quando eles próprios não faziam isso.
E assim, manipulada e as custas de muita chantagem sentimental, ela permanecia naquela casa, trabalhando como uma empregada, sem nada receber em troca.
Mas mesmo assim, nos últimos tempos, Anne tentava se libertar dessa exploração.
Por isso, freqüentemente se afastava de casa.
Por conta dos anos de escola, em meio a seus colegas, Anne começou a conhecer outras realidades.
Com os anos de convivência escolar, Anne pôde constatar que o seu modo de vida não era saudável. Porém, apesar de existirem formas de convivência melhores do que a dela, Anne também pôde presenciar diversas vezes, a triste realidade de muitas crianças.
Diversas vezes Anner viu colegas seus, machucados e abalados por conta das surras que levavam.
E não era só. Durante o tempo em estava freqüentando o colégio, Anne também, conheceu esconderijos ótimos. E em um desses lugares, decidiu fazer sua morada.
Era um lugar retirado, calmo e tranqüilo. Ficava tão longe da cidade, e que ninguém, nem mesmo os garotos do colégio conheciam. Assim, seu recanto estava a salvo.
Com isso, sempre que sentia vontade de ficar sozinha, sem ter ninguém para chateá-la, – como Carla, Érica, Elena e Carlos – Anne aproveitava para ficar lá.
Acostumada a viver sozinha, não se importava em ficar por dias a fio, afastada de casa. Para ela, aqueles momentos em que ali ficava, eram bons. Tão bons que sentia um aperto no coração quando tinha que voltar para casa.
Sim, por que era ali, naquela pequena choupana, que ela se sentia em casa.
A casa abandonada ela conheceu quando, em diversas caminhadas que fazia, acabou por se distanciar da cidade. Preocupada, por um momento, chegou a pensar que estava perdida. Mas não. Ao se aproximar da uma construção, Anne descobriu que havia um atalho para retornar a cidade. Percebendo isso, se acalmou.
Curiosa, ao se deparar com a humilde construção, Anne resolveu entrar para ver o que havia na casa. Qual não foi sua surpresa ao descobrir que a casa estava abandonada.
Isso por que, os móveis que guarneciam a casa, estavam bastante empoeirados. Mas, com uma boa limpeza, ficariam como novos.
Foi então que Anne descobriu que a casa tinha tudo que precisava. Cama, armário, uma pequena estante, uma mesa, uma cozinha, um banheiro. A única coisa que faltava, era se mudar para lá.
Com isso, aos poucos, Anne foi levando seus poucos pertences para a casa. Entre eles, alguns livros, roupas, dois pares de sapatos, e um pouco de comida. Sim, por que de nada adiantava ter uma casa para morar, se não tivesse o que comer.
E assim, sempre que podia, a moça fugia para lá.
Em contrapartida, ali perto da cabana, havia algumas plantações, e um belo pomar. De formas que, em sentido fome, e não tendo levado nada para comer, poderia facilmente se alimentar, com o que a natureza lhe oferecia.
Assim, quando descobriu o recanto, Anne passou a freqüentemente, visitá-lo.
Feliz por ter descoberto um lar, a moça aproveitava para sempre cuidar dele. E com o passar do tempo, aquela humilde choupana ficou brilhando de limpa.
Com isso, sempre que terminava de cuidar da casa, Anne aproveitava para estudar um pouco. E assim, ficava entretida por algumas horas.
Quando se cansava, Anne aproveitava para passear pelos arredores, na tentativa de conhecer melhor aquelas paragens.
Assim, como se pode constatar, pela primeira vez na vida, ela foi feliz.
Mas, para todos os efeitos, Anne não podia deixar que percebessem que ela tinha outro lugar para ficar. Por isso, mais uma vez a moça resolveu voltar para casa, depois de alguns dias.
Para sua tristeza, teria que novamente enfrentar Carla.
Assim o fez.
Quando retornou, foi recebida agressivamente por Carla.
Sim, ela estava enfurecida com o fato de a moça não a ter avisado que iria ficar longe de casa por alguns dias.
Aborrecida, só sabia reclamar. Enervada com Anne, Carla comentou que durante todo o tempo que esteve sumida, ela própria teve que cuidar da casa. Todavia, segundo as palavras da mulher, Anne deixava tudo tão desorganizado, que ela demorou horas para achar tudo o que precisava.
Mas Anne, não estava nem um pouco interessada nas reclamações de Carla.
Carla, percebendo então que a garota estava distraída, resolveu puxá-la pelo braço.
Nesse momento, Anne gritou:
-- Solta meu braço, sua bruxa.
Quando Carla ouviu isso, ficou com tanta raiva, que passou a puxar o braço dela com mais força ainda.
Anne, então, sentindo um pouco de dor, pediu para ela soltar seu braço, pois a estava machucando.
Carla no entanto, estava com tanta raiva que fazia questão de puxar cada vez mais forte o braço da garota.
Anne pôs-se então, a chorar.
Contudo, nem isso fez Carla desistir de impingir-lhe um castigo.
E assim o fez.
Arrastando Anne até o quarto, empurrou-a para dentro e fechou a porta.
Anne, ao cair no chão, machucou ainda mais o seu braço. No entanto, ao perceber que a porta do quarto era trancada, levantou-se rapidamente. Ao girar a maçaneta, notou que a porta estava trancada. Desesperada, a moça começou a bater na porta e gritar:
-- Dona Carla. Abra essa porta. Abra essa porta.
Mas não adiantou. Por mais que Anne se debatesse, ninguém se atrevia a abrir a porta.
E as horas passaram.
Nesse dia porém, para surpresa de Carla, Antônio chegou mais cedo do trabalho. Tanto que, quando chegou, Carla não estava em casa.
Assim, o homem, pôde perceber que havia algo errado.
Nisso, Anne, cansada de bater na porta, já estava quase desistindo.
Quando então ouviu o barulho de chave, chegou a pensar que era Carla voltando.
Mas não. Era Antônio que, ao adentrar a casa, foi logo perguntando:
-- Onde está todo mundo?
Pronto, Antônio havia chegado em casa.
Nisso ao ouvir a voz, Anne voltou a bater na porta, pedindo para que alguém a abrisse.
Antônio, surpreendido pelos gritos de Anne, foi imediatamente ao quarto dela.
Qual não foi sua surpresa ao descobrir que a porta do quarto estava trancada. Percebendo isso, o homem procurou por toda a casa as chaves necessárias para abrir o quarto da moça.
Em vão. Vasculhando todas as gavetas e todos os cantos da casa, Antônio nada encontrou.
De dentro do quarto, Anne, contou chorando, que havia machucado seu braço, e que este, estava dolorido.
Antônio ao ouvir o relato da moça, ficou bastante preocupado.
Contudo, ele como não havia encontrado a chave, Anne teria que esperar Carla voltar para conseguir sair do quarto.
Isso por que, Carla, prevenida das escapadelas da moça durante a noite, resolveu colocar uma grade na janela de seu quarto. Assim, Anne estava impossibilitada de fugir. Além disso, para piorar ainda mais as coisas, Anne suspeitava de que havia quebrado o braço, quando Carla a empurrou para dentro do quarto.
Sim, a situação estava mesmo complicada.
Com isso, depois de quase duas horas, finalmente Carla apareceu.
Surpreendida com a inesperada presença do marido, a mulher ficou desconcertada. O que fazer para explicar o fato de haver trancado Anne dentro do quarto?
Sem saber bem o que dizer, Carla comentou que a moça havia sido rude com ela, ao chamá-la de bruxa. Desacostumada de ouvir com grosserias, ela acabou perdendo a paciência e colocando Anne de castigo.
Antônio porém, ao ouvir a explicação da esposa, não ficou muito convencido de sua veracidade. Por isso, ao vê-la insistir que Anne merecia um castigo e que por isso, deveria ficar mais algum tempo trancada, Antônio, pela primeira vez, resolveu enfrentar a esposa e dizer que queria a porta aberta. Isso por que, parecia que Anne estava machucada. Assim, precisavam abrir a porta, para ver como a garota estava.
No entanto, mesmo diante das evidências, Carla insistiu com o marido para que Anne ficasse mais algum tempo de castigo.
Foi então, que Antônio aborrecido, exigiu que ela abrisse a porta do quarto para que ele visse com seus próprios olhos como a moça estava.
Surpreso, ao abrir da porta, Antônio, constatou que Anne parecia estar com o braço esquerdo quebrado.
Nisso, Carla teimou em dizer que aquilo tudo era encenação. Segundo Carla, Anne só queria fazer com que ele brigasse com ela.
Irritado, ao ouvir estas palavras, Antônio mandou que Carla se calasse. Isso por que ele, já estava cansado de ouvir sua voz.
Surpreendida com a atitude do marido, a mulher resolveu se calar.
Antonio então, amparando Anne, levou-a até o hospital, para que lá, se verificasse o que havia acontecido.
Era realmente fratura.
Os médicos, preocupados com a situação de Anne – que nesta época tinha doze anos –, informaram Carla e Antônio que chamariam a polícia, para que esta apurasse o que havia acontecido, já que alegação da moça, não convencia os médicos.
Anne então, ao ser atendida, temendo uma futura repreensão de Carla, resolveu se omitir sobre os verdadeiros motivos que a levaram até o hospital.
Mas isso de nada adiantou.
Isso por que, os médicos resolveram tomar providências quanto o caso.
Contudo, como não havia necessidade de a moça permanecer no hospital, assim que ela teve o braço imobilizado, foi logo levada para casa.
Nisso, um dos médicos, preocupado, cuidadosamente, deu-lhe um cartão, para que em caso de necessidade ela ligasse para ele.
Assim, quando Anne chegou em casa, Érica, Elena e Carlos – com dezenove, dezoito e vinte e um anos, respectivamente –, orientados pela mãe procuraram tratá-la da melhor forma possível. Isso por que, Carla não queria levantar suspeitas de que ela havia agredido a garota.
Com isso, impossibilitada de retornar ao seu esconderijo, Anne teve que ficar por semanas presa em casa. Por conta de seu braço quebrado, o único lugar em que ainda podia ir era a escola. Mas mesmo assim, acompanhada por alguém da família.
Mas, por mais incrível que isso possa parecer, foi uma época tranqüila.
Temerosa de ser indiciada por maus-tratos, Carla, resolveu adotar uma postura diferente com Anne.
Contudo, foram só as semanas se passarem, para que tudo voltasse a ser como era antes.
E assim, sem a atenta vigilância de Antônio, Carla começou a exigir que a garota trabalhasse mesmo com o braço enfaixado.
Diante disso, sem ter ninguém que a pudesse ajudar, Anne teve que cuidar da casa sem pestanejar. Porém, por mais que se esforçasse, não conseguia fazer o serviço direito.
Por conta disso, Carla não se furtou de reclamar de seu serviço. Chamando-a de relaxada, relapsa e preguiçosa, tratou logo de colocar defeito em tudo o que fazia.
Anne estava cansada disso.
Contudo, não sabia o que fazer.
Ir até o seu esconderijo não podia. Afinal, mesmo sem a ajuda de ninguém, enquanto não estivesse totalmente recuperada, não teria como cuidar do local, com um braço imobilizado.
Até por que a cabana devia estar imunda.
Com isso, Carla passou a cada vez mais, se intrometer em sua vida.
Certa vez, vasculhando seus pertences, a mulher descobriu que boa parte dos objetos pessoais de Anne, haviam sumido.
Curiosa, Carla quis logo saber com Anne, a razão do sumiço de algumas de suas coisas.
Anne contudo, foi evasiva. Além de tentar desviar a conversa para outros assuntos, a moça respondeu que nada havia sumido de seu quarto.
Mas Carla ficou desconfiada. Pensando no assunto, chegou a seguinte conclusão:
-- Se ela some por dias, e retorna, como se nada tivesse acontecido, é por que provavelmente alguém a convida para passar alguns dias em sua casa. Mas quem será que faz isso?
Cismada com a história, Carla resolveu que ficaria de olho na moça.
Além disso, acreditava contar com a ajuda dos filhos para que vigiassem Anne.
Mas os três, alegando que estavam trabalhando, disseram que não teriam como ficar de olho nela.
Carla ao ouvir isso, ficou furiosa.
-- Como? Vocês não vão me ajudar? Quer dizer que eu coloquei três imprestáveis no mundo?
-- Não é isso mãe. – respondeu Carlos. – Mas é que não temos o dia inteiro livre como a senhora.
-- E quem disse a vocês que eu tenho o tempo todo livre? Se esqueceram que quem cuida de tudo isso aqui sou eu?
-- Essa é boa. Desde quando? – perguntou Érica.
-- Desde que eu me casei com seu pai. Desde antes de vocês nascerem, seus ingratos. Ou acha que ninguém cuidava da casa antes?
-- Isso pode até ser. Mas desde que nós nos entendemos por gente, somos nós quem cuidamos da casa. Primeiro fomos nós e depois a Anne. – comentou Érica.
-- Mas é claro. Com os filhos vem as compensações. – disse Carla.
E assim, encerrou-se a discussão.
Os três sem alternativas, resolveram ajudar a mãe a vigiar Anne. Isso por que, Carla queria descobrir onde era que a moça ía quando se afastava de casa.
Nisso Anne, percebendo que era vigiada, resolveu não ir tão cedo para a cabana. Procurando despistar a todos, resolveu permanecer mais algum tempo em casa.
Dessa forma, mesmo quando tirou o gesso do braço, Anne resolveu ficar mais alguns dias em casa. Enquanto isso, aproveitava para fazer o serviço doméstico que Carla fazia questão de lhe impor.
E assim, Anne passou a ser novamente ignorada pela família.
Mas isso agora, era bom para Anne, pois sendo ignorada, poderia facilmente sair dali, que ninguém iria notar.
Por isso, depois de alguns dias, Anne resolveu finalmente, voltar para sua cabana.
Entretanto, qual não foi sua surpresa, quando, ao separar um pouco de comida para levar, deu de cara com Carla, que a espreitava de longe.
Anne tentou se explicar, mas só conseguiu balbuciar algumas palavras.
-- Eu ... eu ...
-- Desembucha. O que é que você está fazendo a esta hora, na cozinha? Acaso estava pensando em roubar a comida?
-- Mas é claro que não.
Carla porém, não ficou convencida. Desconfiada, tratou logo de trancar toda a comida dentro do armário.
Em seguida mandou que Anne voltasse para o quarto.
Quando a moça entrou, tratou de trancar a porta.
Com isso, voltou para seu quarto.
No dia seguinte, cismada com a história, resolveu prestar mais a atenção em Anne. Isso por que, se ela precisava levar comida, quando sumia de casa, era sinal de não era pra casa de nenhum amigo que ela ía.
-- Mas para onde então que esta criatura vai, Deus do céu? – perguntava-se ela, cada vez mais intrigada com os sumiços de Anne. – Acaso ela teria algum esconderijo? E se tivesse? Onde seria?
Por isso, antes de seus filhos saírem para trabalhar, Carla, insistiu com estes para que continuassem vigiando Anne. Até por que, só assim eles descobririam para onde a moça ía, toda vez que sumia de casa.
Luciana Celestino dos Santos
É permitida a reprodução, desde que citada a fonte.
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