Poesias

quinta-feira, 5 de agosto de 2021

TEMPOS DE OUTRORA - CAPÍTULO 26

Nisso, ao ouvir todo o relato, Ticiano, perguntou:
-- E o que é que isso tem a ver comigo?
Rogério então respondeu:
-- Isto. – e segurando Ticiano, rasgou sua camisa, deixando-o nu. 
Foi então que toda e qualquer desculpa dada pelo rapaz caiu por terra.
Com as roupas de Ticiano em farrapos, Rogério ao ver uma pala, decidiu então, dar o golpe de misericórdia. Mais uma vez segurando Ticiano, Rogério puxou o pala e assim deixou-o completamente desnudo.
Percebendo que não havia mais como esconder nada, Ticiano simplesmente cruzou seus braços por cima do peito, tentando disfarçar o indisfarçável.
Rogério então, comentou irônico:
-- E agora, como devo tratar Vossa Senhoria? Ou será que vai continuar tentando negar o inegável? Heim, Senhorita Letícia Carvalho?
Desconcertada, Letícia não sabia o que dizer. Desorientada, pegou seu casaco, abotoou-o, e saiu em disparada, em desabalada carreira sabe-se lá para onde.
Rogério, percebendo isso, tentou seguir a moça. Debalde. 
Por um instante chegou a se sentir culpado por ter feito todas aquelas revelações. Preocupado com Letícia, perguntou-se inúmeras vezes se não havia exagerado.
Porém agora era demasiado tarde.
Letícia havia caído no mundo. 
Contudo, Rogério temia que ela nunca mais voltasse. Por esta razão, ao perceber que conforme os dias passavam a moça não voltava, Rogério tratou de colocar Horácio novamente em seu encalço. Sentindo-se culpado, sabia que ainda tinha muito o que contar a amiga. E a o contrário do que esta poderia pensar, ele não estava ali para prejudicá-la. Muito embora Letícia não soubesse, Rogério sentia muita admiração por ela. 
Mal sabia ele que Letícia havia partido no encalço de Otávio, na vã tentativa de desvendar o seu passado. 
Sim, depois de ter seu passado desvendado por Rogério, Letícia, sentindo-se ameaçada, tratou logo de partir. Tão logo arrumou sua trouxa, caiu no mundo. Desesperada  por ter sido descoberta por Rogério, Letícia temia, que em resolvendo ficar, este revelasse toda a verdade. 
Triste não conseguia entender por que sempre que estava bem, alguma coisa acontecia para desviá-la de seus planos. Sim, mesmo anos após a tragédia que se abatera sobre sua vida, Letícia continuava fugindo, se escondendo. Por que não podia ter uma vida normal? Por que tinha que viver assim?
Desencantada, a moça partira sem rumo. Estava determinada apenas a acertar as contas definitivas com seu passado. Cansada de ficar o tempo todo se escondendo, Letícia resolvera enfrentar a situação. Acreditando que Otávio era a chave para fazer as pazes com seu passado, decidiu procurá-lo. 
Porém, por mais determinada que estivesse, sentia-se ainda muito angustiada com os últimos acontecimentos. E assim, desorientada, seguia em direção a nada. E foi assim, sem rumo, que a moça acabou caindo em uma armadilha. Ao cavalgar nas proximidades de um palacete, acabou sendo confundida com um dos inimigos do morador, e desta forma, foi aprisionada.
Mantida em cárcere privado, Letícia não conseguia atinar o porquê de tudo aquilo estar acontecendo. Por que afinal fora confundida com um inimigo? Acaso os inimigos se mostram assim tão abertamente aos adversários?
Mas não tinha jeito. Por mais que Letícia argumentasse, nada convencia o morador de que ele estava cometendo um engano. Álvaro, não acreditava nas palavras da jovem. Ainda mais vendo a jovem vestida com suas roupas habituais, todas elas ainda do tempo em que trabalhou para José. Assim vestida, Letícia dava a impressão de ser um homem. 
Todavia, não demorou muito para que o jovem dono do palacete descobrisse toda verdade. Isso por que, depois de passar um longo tempo trancafiada na senzala, Letícia a certa altura, começou a passar mal. Em razão disso, Álvaro recomendou que levassem o rapaz para outro cômodo da casa, para que pudesse repousar.
Com efeito, o mal estar se devia ao fato de que, em uma das inúmeras tentativas frustradas de se evadir do local, Letícia acabou por enfrentar o dono da casa, e este aborrecido, mandou que a colocassem a ferros na senzala, juntamente com os escravos. Contudo, antes que a levassem para lá, Letícia resistiu o quanto pôde. Tanto que tentou inutilmente brigar com os criados de Álvaro. Além disso, como estava chovendo, a moça acabou se molhando, e sem ter como trocar suas vestes úmidas, adoeceu.
Não fosse a intervenção de Álvaro, fatalmente seu estado de saúde poderia ter se agravado. Porém, o desconfiado dono da morada em que Letícia estava, agiu em tempo. 
Isso por que, a moça, doente, mal conseguia se agüentar de pé. 
Diante disso, foram os criados da casa, que cuidaram dela enquanto esteve doente. Por isso nem por um minuto, os mesmos desviaram sua atenção da doente. E foi exatamente por este fato, que Álvaro descobriu que quem ele pensava ser um rapaz, de nome Ticiano, não passava de uma mulher. 
Um dos criados, ao tirar suas vestes e banhá-la, percebeu logo o embuste e tratou de avisar o patrão. 
Álvaro ficou então, surpreso com a novidade. Como podia ser isso? Por que razão uma mulher se vestiria de homem? Acaso estava fugindo de alguém? Pensativo, tentou chegar a uma conclusão. Com isso, a única resposta que conseguia achar para tudo aquilo era o fato de que ela, a moça – da qual ele não sabia sequer o nome –, estava fugindo de alguém. Porém, qual a razão disso? O que fazia a moça se esconder assim? Se fosse isso realmente, certamente devia ser algo muito sério. 
Diante disso, Álvaro pensou diversas vezes em libertar a moça. Contudo, queria saber antes, o que a teria levado a se travestir de homem. Curioso, por esta razão, acompanhou pacientemente sua recuperação. Embora estivesse ansioso para lhe falar, procurou ter o máximo de paciência com ela. 
E assim, conforme os dias foram se passando, Álvaro aproveitou para conhecer a moça. Durante o tempo em que Letícia esteve febril, Álvaro cuidou para arrumassem algumas camisolas para ela. Afinal de contas, se era uma mulher, era assim que deveria se vestir.
Com isso, olhando para ela, ele percebeu que não se tratava de uma mulher comum. Muito embora parecesse frágil, em razão de sua obstinação em fugir e sua resistência física, era forte. Talvez muito mais forte que muitos homens que ele conhecia. Porém, a despeito de sua força, Letícia não era menos bela por isso. Diante disso, Álvaro, a cada dia que passava, ficava cada vez mais intrigado. 
Por isso, não queria afugentá-la. Desta forma, o homem decidiu que teria tato ao conversar com ela. 
Com isso, conforme a moça convalescia, não desejando constrangê-la, mais e mais Álvaro procurou se afastar. Todavia, tal estratagema não surtiu o efeito esperado. Isso por que Letícia, assim que despertou de seu estado de letargia, ao ver-se envolvida em uma delicada camisola de tecido fino, chegou a conclusão de que haviam descoberto sua identidade. Por conta disso, ficou desesperada.
Não bastasse isso, ao se levantar e percorrer todo o quarto, Letícia percebeu que não havia como fugir dali. Isso porque, ao tentar passar pela porta, descobriu que um homem estava parado defronte a mesma. Portanto, não havia maneira alguma de sair dali.
Nisso, Álvaro, ao saber do pronto restabelecimento da moça, tratou logo de ir lhe falar. Intrigado com ela, Álvaro queria saber o porquê de suas vestes masculinas. Por que afinal de contas, ela precisava se esconder?
Letícia, ao ouvir as indagações de Álvaro, tentou de todas as formas possíveis desconversar, mais infelizmente para seu desespero, não foi possível. Como isso, sem ter como escapar, Letícia acabou contando que se vestia como homem, por que queria integrar o exército, e se fosse vestida como uma delicada senhorita, certamente seria ridicularizada.
Foi então que Álvaro, perguntou:
-- Quer dizer então, que todo esse mistério se deve apenas e tão somente ao fato de teres um singelo sonho de ser um soldado? Curioso. Mas então, se era só isso, por que precisou se vestir de homem para vir até aqui? 
-- Por que estando no exército, eu jamais poderia levar vestidos e objetos femininos, para lá, não é mesmo? Ou então desconfiariam.
-- Está certo. Concordo. Mas por que estava tão afoita? Parecia tão preocupada. Parecia até estar fugindo de alguém. Acaso alguém descobriu sua identidade?
-- Não quero falar sobre isso. Me deixe ir. – respondeu ela secamente.
Mas Álvaro insistiu. Como Letícia se calou, o homem resolveu então, fazer uma última pergunta: 
-- Pois bem, eu esqueci de perguntar. Qual é o seu nome, senhorita? Isso Vossa Mercê pode me contar, ou não?
-- Letícia. – respondeu ela, depois de um curto silêncio. 
O rapaz então respondeu:
-- Pois bem Letícia, levando em consideração tudo o que me disseste, eu não irei tomar nenhuma providência com relação a senhorita. Porém, quero que saiba, que enquanto não me esclarecer toda essa história, não poderei deixá-la ir. Por isso, vou deixá-la neste quarto. Aqui poderá ler se quiser. Assim, poderá passar o tempo. Mais tarde eu vou providenciar algumas roupas para você. Desta forma, quero que se sinta a vontade. Está bem? Agora dê-me licença. – finalizou Álvaro se retirando do quarto. 
E assim, muito embora Letícia quisesse retrucar com Álvaro a respeito de sua estada compulsória, o mesmo não a deixou sequer abrir a boca.
Com isso, Letícia ficou profundamente irritada com a atitude arrogante de Álvaro. Porém, sem alternativa, a moça aproveitou para ler um dos livros que haviam sido colocados na estante do quarto. Dessa forma, por horas a fio, ficou entretida com sua leitura. De tão absorta pelas idéias do livro, nem sequer percebeu a entrada do estranho nos aposentos. Álvaro, percebendo então o interesse da moça pela leitura, constatou o óbvio. 
Além disso, depois de vasculhar os pertences da moça, Álvaro descobriu entre suas coisas, uma boa soma em dinheiro, roupas finas e caras, além de alguns livros, bastante manuseados. Diante disso, chegou a seguinte conclusão: Letícia não era uma moça simplória.
Também, em meio a seus pertences, Álvaro descobriu a Certidão de Nascimento da moça. E como já era de se imaginar, lá estava seu nome de batismo. Tal qual ela havia dito, seu nome realmente era Letícia. O que ele não poderia imaginar era que ela pertencia a uma das mais tradicionais famílias da Corte. O rapaz, percebendo isso, ficou ainda mais perplexo com a história contada pela moça. 
Conhecendo por alto a história da família, Álvaro não sabia ao certo qual fora a tragédia que se abatera sobre os Carvalho. Sabia apenas que depois do ocorrido, a felicidade desta família acabou. Cada qual foi para um canto, nunca mais se ouvindo falar sobre o paradeiro de nenhum deles.
Intrigado, Álvaro então se perguntou: Então esta moça fez parte da elite?
Por isso Álvaro, ao ver-se diante da moça, ficou ainda mais admirado ao ver o quanto ela gostava de ler. Tanto que para chamar-lhe a atenção, perguntou:
-- Então gostas mesmo de ler? Interessante. 
Letícia então, surpreendida, se assustou, e deixou o livro cair no chão. 
Álvaro, percebendo que a assustara, pediu-lhe desculpas e insistiu para que continuasse sua leitura. Porém, surpresa com a visita, Letícia se desinteressou pela leitura. Recuperando-se do susto, perguntou-lhe:
-- O que o senhor quer? Por acaso eu não te respondi tudo o que querias saber? Por que não me deixas ir? Se sabes que eu não sou nenhuma espiã, por que não me deixas ir?
-- Pelo simples fato de que não estou totalmente convencido de sua história. – respondeu ele. 
-- E o que falta para te convencer de que estou falando a verdade?
-- Falar a verdade. 
-- Mas o que é que eu não falei? –  perguntou ela, visivelmente angustiada. 
-- Primeiramente, o que a faz se esconder das pessoas. Isso por que, esta história de integrar o exército, não passa de uma grande bobagem. Eu sei perfeitamente que foste membro de uma família nobre. Portanto, és nobre de criação. Tanto que gostas de ler e admira os autores clássicos, como pude perceber ao ver os seus pertences. O que aconteceu com sua família?
Letícia, ao ser inquirida a respeito de seu passado, insistia em dizer que aquele não era assunto para se conversar com um estranho. 
Ao ouvir isso, Álvaro irritado, depois de muito insistir para que ela lhe revelasse o que teria ocorrido em seu passado, acabou por desistir, ao menos temporariamente, de interroga-la a respeito do assunto.
E assim, Letícia continuou a ler. 
Mais tarde, quando ele resolveu então devolver suas roupas, Letícia vestiu-as. Com isso, aproveitando para tentar descobrir uma forma de fugir dali, Letícia passou a esquadrinhar todo o quarto para ver se encontrava uma passagem ou mesmo uma janela aberta para sair. Mas, por mais que perscrutasse minudentemente o quarto, não conseguiu descobrir nenhuma maneira de fugir. Acuada, Letícia resolveu então, apelar. Assim, tentando atrair a atenção de um dos sentinelas, pediu ao homem que estava em frente a porta de seu quarto, que a ajudasse a pegar um livro que não conseguia alcançar. 
O escravo, entrou no quarto e gentilmente se ofereceu para ajudá-la. Letícia, então,  aproveitando a distração do sentinela, tratou logo de pegar sua chave e trancá-lo no quarto. 
A moça, vendo-se temporariamente livre, tratou logo de sair dali. Porém, notando a aproximação de Álvaro, teve que imediatamente se esconder num dos cômodos da casa. Assim, entrando num dos dormitórios da construção, procurou se esconder o melhor que pôde. Todavia, por melhor que tenha se escondido, não tardou para que fosse descoberta. 
Pega tentando fugir, Letícia foi levada para um novo quarto do palacete e lá ficou encarcerada. 
Com isso, Letícia, ao se ver novamente trancada, começou a fazer um escândalo. Avisando o dono da casa que ele estava cometendo uma arbitrariedade ao mantê-la em cárcere privado, a moça gritou a plenos pulmões que tudo aquilo não passara de uma grande confusão. 
Porém, de nada adiantou sua revolta, pois Álvaro não se abalou nem um pouco. Diante do acesso de fúria de Letícia, tratou apenas de se afastar. Cauteloso, recomendou a criadagem e aos escravos que dessem um tempinho para que ela se acalmasse.
E assim, em respeito as ordens dadas, a criadagem só entrou no quarto para levar e buscar a bandeja onde estava a refeição. 
Todavia, se Álvaro estava medindo forças com Letícia, ela também sabia brigar. Acostumada a passar dificuldades, a moça nem sequer tocou na comida.
Álvaro ao saber disso, recomendou que os criados demorassem algum tempo para levar a próxima refeição. 
Porém, isso de nada adiantou, porque novamente Letícia recusou a comida. 
Teimosa, durante dois dias Letícia se recusou a comer. 
O rapaz ao saber disso, foi tomado de uma profunda irritação. Isso por que, aquela história estava indo longe demais. Onde já se viu isso? Como alguém poderia ficar todo aquele tempo sem comer?
Incomodado com a teimosia de Letícia, Álvaro foi ter com ela. Afinal, não podia admitir que aquela situação prosseguisse. 
No entanto, quando finalmente foi conversar com ela, ao entrar no quarto onde a moça estava, Álvaro constatou que esta dormia. Percebendo isso, retirou-se do quarto e conversando com os criados, percebeu que ela passara quase o dia inteiro acamada.
Preocupado, imediatamente retornou ao aposento onde Letícia dormia e enquanto tentava acordá-la, uma das escravas preparou uma sopa para que a moça tomasse. 
Nisso o mancebo, insistia para que ela acordasse. 
E assim, depois de muito insistir, Álvaro acabou conseguindo fazê-la despertar. 
E muito embora Letícia tivesse acordado aborrecida, Álvaro fez o todo o possível para que ela se mantivesse desperta. Colocando a mão em sua fronte, percebeu que a moça tinha um pouco de febre. 
Foi nesse instante que uma das escravas, trazendo um prato de sopa, entrou no quarto, e deixou a bandeja em cima da mesa que havia no quarto. A seguir, se retirou.
Álvaro, ao constatar que Letícia não tomaria a sopa por bem, ordenou que um dos escravos a segurasse para que ela não tivesse como recusar a refeição.
A moça, então, percebendo que ele não estava brincando quando dissera que a faria tomar a sopa, resolveu aceitar a contra-gosto, a refeição. Porém, como estava debilitada, acabou tomando só parte dela. 
Álvaro satisfeito, ao ver que Letícia tomara ao menos parte da sopa, ordenou ao escravo para que levasse o prato até a cozinha.  
Nisso, Letícia, ao se levantar da cama, acabou caindo sentada. 
Álvaro, ao ver isso, tratou logo de lhe passar uma admoestação:
-- Está vendo só que no que dá, ficar sem comer? Mal consegue se manter em pé.
Mas Letícia irritada, respondeu que aquele era apenas um mal estar passageiro. Porém, não ousou mais levantar. 

Luciana Celestino dos Santos 
É permitida a reprodução, desde que citada a autoria.

Nenhum comentário:

Postar um comentário