Poesias

quinta-feira, 5 de agosto de 2021

TEMPOS DE OUTRORA - CAPÍTULO 27

Álvaro então, percebendo que estava quase a convencendo de que não poderia sair dali, resolveu deixá-la fazer um pequeno passeio pelas cercanias. Contudo, Letícia não poderia sair sozinha. E assim, quando finalmente estava restabelecida da fraqueza, a moça, vestindo trajes femininos, acompanhou-o em suas incursões pelos arredores. Atenta, observou cada detalhe do trajeto. 
Cautelosa contudo, a moça não tentou nada nesse primeiro passeio. Primeiramente, tentaria ganhar a confiança do rapaz, depois, sim, quando conhecesse bem o caminho, ela pensaria em como agir.
Enquanto isso Rogério continuava tentando localizar Letícia. Temendo que ela estivesse em apuros, o rapaz não media esforços para encontrá-la. 
E nisso, Letícia,  permanecia prisioneira de Álvaro. 
Muito embora não mais brigasse com seu algoz, a moça não estava nem um pouco satisfeita com a situação que estava vivendo e por isso mesmo, procurava evitar Álvaro. O rapaz contudo, fazia de tudo para ser presente. Atencioso como nunca fora antes, sempre que podia, a convidava para fazer passeios de charrete com ele. De vez em quando os dois foram até vistos juntos, na cidade. 
Mas mesmo assim, Letícia não via a hora de partir. Na primeira oportunidade, ganharia o mundo.
Álvaro porém, encantado com a moça, não imaginava o que se passava em sua mente. Acreditando tê-la dominado, fazia de tudo para tornar sua estada naquelas terras, a mais agradável possível. Certa vez, se excedendo, tentou agarrá-la, mas a moça, que de frágil, só tinha o porte físico, tratou logo de reagir. Chutando-o para longe, advertiu-o para que ficasse longe dela. 
Álvaro não gostou nem um pouco de ser rejeitado, mas acreditando que poderia conquistá-la, continuou bajulando-a de todas as maneiras. Primeiramente, quis castigá-la, mas depois, percebendo que havia exagerado, resolveu deixar de lado suas diferenças com a moça e passou a tratá-la melhor.
Fingindo que nada havia acontecido, convidou-a para um baile.
Lá os dois dançaram a noite inteira, e Álvaro, cauteloso, não desgrudou nem por um instante dela. Sempre que tinha que deixá-la só, um de seus criados a acompanhava para onde quer que ela fosse.  
Letícia contudo, já não agüentava mais ser seguida. Por diversas vezes, tentou despistar os criados de Álvaro, sem lograr êxito em suas tentativas. 
A moça já estava ficando desesperada. Todavia, aquela não era ainda a hora certa para fugir. Isso por que, se tentasse fugir durante a festa, certamente, diante da quantidade de pessoas que permaneciam ao redor da mansão, seria questão de tempo até ser pega. 
Letícia resolveu então, desistir de fugir e alegando que precisava achar o toillet, pediu licença ao criado. Quando finalmente achou-o, Letícia trancou-se lá. Aborrecida, só pensava no dia em que fugiria dali.
Muito embora estivesse ricamente vestida, Letícia nunca se impressionou com isso. Essa não era a vida que estava acostumada. Desde que sua família desintegrou, nunca mais ela teve a vida de princesa que estava acostumada. Desde que resolvera viver sua vida sem a interferência de estranhos, raramente tinha acessos a luxos. Assim, viver com pouco, era uma constante em sua vida. Além disso, desacostumada a se vestir com uma mulher, já não sabia mais como fazer para andar de salto e espartilho. Para ela, usar todas aquelas peças era um martírio.
Mas Álvaro não queria saber. Letícia tinha que ser a moça mais bonita da festa. 
E de fato, a moça causou sensação durante o baile. Quando a moça finalmente ficou sozinha, diversos cavalheiros pediram para dançar com ela. 
Educadamente, Letícia recusou cada um dos pedidos de dança. No entanto a certa altura, depois de muito recusar os pedidos, um cavalheiro mais ousado se aproximou, e deixando-a sem saída, acabou levando Letícia para o centro do salão e valsando com ela. 
Álvaro, que a essa altura conversava com seus amigos, ao ver a cena, não gostou nem um pouco. Irritado, quase fez um escândalo, mas seus amigos, percebendo isso, impediram que ele fosse até lá tomar satisfações.
No entanto depois que Letícia terminou a valsa com o cavalheiro, Álvaro aproximou-se, e irritado, comentou que não gostou nada de vê-la dançando com aquele cavalheiro.
Letícia, não entendeu nada. Afinal de contas, por que ele se importaria com isso?
Álvaro então, continuou a reclamar do comportamento da moça. Dizendo que aqueles não eram os modos de uma moça se comportar, comentou que esperava que ela fosse conversar com as moças de sua idade.
Letícia, ao ouvir as palavras do moço, começou a rir. 
Álvaro ao perceber isso, não gostou nem pouco e perguntando qual era a graça, ouviu como resposta:
-- Nada. 
-- Como nada? A senhorita ri assim de mim, e depois diz que não é nada? Como assim?
Letícia percebendo que teria que se explicar, começou dizendo que riu do comentário que ele havia feito.
Álvaro não compreendeu nada.
Letícia então, disse:
-- Eu só achei engraçado o fato de você achar que eu conseguiria arrumar assunto para um colóquio com as moças da festa. 
-- E por que não? Você já demonstrou que é culta, gosta de ler. Assunto para entabular inúmeros colóquios é o que não falta. Talvez se você conversasse com elas, teria a chance de comentar sobre os inúmeros livros que lestes.   
-- Eu não acredito que elas estivessem interessadas em literatura. Seria só eu tocar no assunto, para que elas se enfastiassem com minha conversa. Pode acreditar. 
-- Talvez não. Ou talvez quem sabe, a senhorita tenha razão. Mudemos de assunto.
Álvaro então levando-a até o centro do salão, aproveitou o ensejo para dançar mais um pouco com ela. Enciumado, resolveu não mais deixá-la sozinha em meio aquele salão. Assim, os dois dançaram praticamente a noite inteira juntos. 
Depois, na volta para casa Álvaro, perguntando se a moça havia gostado do baile, ouviu como resposta:
-- Não foi de todo mal. Mas não me agrada a idéia de ter de usar roupas tão apertadas.
Ao ouvir isso Álvaro respondeu que dali por diante seria assim que ela se vestiria.
Letícia porém, não gostou nem um pouco de ouvir isso. Aborrecida, não falou mais nada durante todo o percurso de volta para a casa do mancebo. 
Ao se deitar para dormir, irritada, demorou para pegar no sono.  
E esse martírio perdurou ainda por muito tempo.
Certa vez, o mancebo percebendo que a moça estava amuada demais, resolveu dar-lhe mais liberdade. 
Isso por que, Letícia, cansada de viver como uma prisioneira, já não se interessava mais pelos livros, nem em se levantar da cama. Cansada de lutar por nada, já estava desistindo de tudo. Triste, só conseguia se lembrar do passado e todo o esforço que fizera durante longos anos para esquecer tudo o que lhe havia sucedido. 
Entrementes, por mais que tentasse esquecer tudo o que tinha acontecido, sempre surgia alguém para lembrá-la de sua triste história. E Letícia, já estava cansada de tudo isso. Sequiosa de reencontrar sua família, ou o que restara dela, pediu para que Álvaro a deixasse ir. 
O mancebo porém, insensível a seus lamentos, teimava em se recusar. Relutante em deixá-la ir, fez de tudo para mantê-la por perto. No entanto, o mesmo cuidado que ele tinha para protegê-la de si mesma, segundo ele, a estava destruindo. 
Isso por que, Letícia, conforme o tempo passava, ficava cada vez mais desesperançada. Não mais acreditando que um dia ficaria livre de Álvaro, a moça, começou a desistir da vida. 
No que Álvaro, ao perceber isso, ficou desesperado. Mesmo ameaçando obrigar a moça a comer, não estava mais conseguindo dominá-la. Se é que um dia realmente, isto aconteceu. Letícia, indiferente a todas as ameaças, lutava com as forças que ainda tinha, para não comer. 
Debalde. Isso por que, Álvaro, mais forte, acabava conseguindo fazê-la comer. 
Contudo, em poucos minutos, Letícia, regurgitava a refeição. 
Álvaro, ao perceber isso, constatou que havia perdido. Se a moça continuasse presa, seria questão de tempo, até que finalmente fenecesse. 
O rapaz, preocupado com essa possibilidade, ao ver que Letícia não agüentaria mais viver daquele jeito, prometeu chorando, ao lado de sua cama, que não a impediria mais de partir, desde que voltasse a se alimentar, e tivesse condições para cuidar de si mesma.
Parece que o rogo deu certo. Isso por que, foi apenas questão de tempo, para que Letícia se restabelecesse. 
Foi então que Álvaro deixou Letícia partir. 
A moça, vestindo uma de suas roupas de cavalheiro, tratou logo de partir.
O mancebo, desalentado, antes da despedida, bem que pediu a moça, para que ficasse mais algum tempo.
Letícia, ao ouvir o convite, se enervou. Dizendo que estava cansada de viver enclausurada, encerrada entre as paredes daquela casa, alegou que precisava muito resolver algumas questões. Isso a estava matando, respondeu.
O rapaz, notando a angústia no olhar de Letícia, compreendeu mesmo relutante, que a moça tinha algo de muito sério para resolver. Diante disso, mesmo pesaroso, Álvaro acabou concordando. Sem lutar, deixou que a moça partisse.
Antes porém, cheio de esperanças, o homem pediu para que a moça lhe escrevesse sempre que pudesse. 
Letícia, ansiosa por se ver livre de Álvaro, acabou concordando com o pedido. Assim, partiu. Cavalgando seu cavalo, foi em direção outras paragens.
Álvaro, desconfiado de que a moça nunca mais voltaria, pediu para que um de seus cavaleiros, discretamente a seguisse, por onde quer que ela fosse. 
E assim, um de seus inúmeros criados atendeu sua ordem.
Letícia, que caminhou dias a fio tentando encontrar Otávio, nem percebeu que estava sendo observada. Agoniada por se encontrar com um remanescente de sua família, não tinha nem condições de observar o mundo em volta. Durante o tempo em que vagou errante, hospedou-se em casa de diversas famílias, que hospitaleiras, a acolhiam. 
Nisso, depois de semanas cavalgando, Letícia finalmente encontrou uma casinha. 
Segundo o que alguns moradores da região lhe contaram, lá vivia um homem já idoso e um rapaz. 
Letícia curiosa, perguntou logo quais eram seus nomes. 
Ao ouvir que se chamavam Otávio e Rafael, a moça ficou estupefata. Tomando conhecimento de certos detalhes de suas vidas, Letícia chegou a conclusão de só podiam ser as pessoas que estavam procurando. 
Enchendo-se de coragem, a moça se dirigiu então, até a morada dos dois homens.
Ao lá chegar, qual não foi seu espanto ao se deparar com um casebre. Paupérrimo, estava visivelmente abandonado. Entrando vagarosamente na casa, Letícia chamou muito por Otávio e Rafael. 
Procurando-os, Letícia só os foi encontrar longe dali, cuidando de uma horta. 
Letícia ao ver Otávio tão envelhecido, ficou espantada. 
O homem, ao vê-la diante de si, demorou para reconhecê-la. Isso por que, depois de tantos anos, Letícia também havia mudado. Crescida e vestida como homem, lembrava muito pouco aquela menina que ele conhecera há mais dez anos atrás.
Por isso o homem, surpreso com a visita inesperada, perguntou:
-- O que o senhor deseja?
-- Otávio, o senhor não está lembrado de mim? – perguntou Letícia.
O homem, ao ouvir sua voz, mesmo estando diferente, finalmente lembrou-se dela. Emocionado, ao se lembrar do passado, começou a chorar.
Rafael que estava ao seu lado, ao se dar conta de que era Letícia quem estava diante deles, também não pôde conter o choro.
Nisso, aturdida com a lembrança de tudo o que se sucedera, Letícia perguntou a Otávio, por que ele havia feito tudo aquilo.
O homem, torturado com a presença dela, comentou que não queria tocar no assunto. Dizendo que já havia pago por tudo de mal que havia feito na vida, pediu para ela, que fosse embora. Isso por que, olhar nos olhos inquisidores de Letícia, era como se visse Mariana diante de si, exigindo explicações por tudo o que fizera. Por isso mesmo, incomodado com a presença da moça, Otávio pedia a todo o momento para que ela saísse de lá.
Letícia porém, decidida a entender tudo o que havia se passado, insistiu. Dizendo que não sairia dali sem uma explicação, ficou aguardando uma resposta.
Rafael então, percebendo que Otávio não abriria a boca para contar nada sobre o passado, disse a moça, que depois que ela fugira com Júlio, ele ficou sob os cuidados de Regina, que diligente e cuidadosa, o tratava como a um filho. 
Contudo, conforme o dinheiro foi diminuindo, Regina, percebendo que precisava voltar a trabalhar, comentou com o garoto, que não tinha como levá-lo consigo. 
Ele então, ao saber disso, ficou desesperado. Por dias a fio chorou temendo que o mandassem para um reformatório. 
Regina então, percebendo que não podia abandonar o garoto, prometeu faria de tudo para encontrar seu pai. 
Dito e feito. Fazendo uso de parte de suas economias, Regina, acabou encontrando Otávio. 
Vivendo longe dali, no interior da Província, o homem havia vendido todos os seus bens. Na pressa, acabou perdendo muito dinheiro com as vendas. Todavia, ainda assim, Otávio conseguiu reunir uma fortuna em dinheiro. Contudo, desacorçoado de sua vida, o homem, antes de se exilar em um pequeno sítio, esbanjou o quanto pôde suas economias. Quando finalmente decidiu viver ali, sozinho, não tinha quase dinheiro nenhum. Envelhecido e acabado, passou a viver do que conseguia plantar.
E foi assim que Rafael viu seu pai. Vivendo como um roceiro humilde. Beirando quase a indigência. Sem ter para onde ir, o rapaz acabou ficando com seu pai.
No começo, desacostumado a trabalhar, quase não ajudava Otávio. Contudo, conforme o tempo foi passando e ele foi aprendendo a lidar com a terra, passou a fazer algumas melhorias no sítio. Segundo ele, aquilo tudo ali, já esteve muito pior.
Nisso Otávio, que até o momento se mantivera calado, pediu ao filho, para que se calasse. Dizendo que já havia falado demais, pediu para que ele entrasse e não saísse enquanto não estivesse autorizado.
Rafael no entanto, rebelou-se. Dizendo que estava cansado de obedecer ordens, disse que aquela era a última vez que ele o veria se insistisse nisso.
Otávio porém teimosamente, mandou novamente ele sair dali.
Rafael então, aborrecido foi até a casa.
O homem então, vendo que estava sozinho com Letícia, disse-lhe para que nunca mais o procurasse. Comentando que ela havia trazido desgosto com sua presença, pediu mais uma vez para que fosse embora.
A moça, surpresa com a reação de seu pai, perguntou então se ele tinha alguma dúvida com relação à sua paternidade. 
Otávio parecia não entender o que ela estava falando.
Letícia, percebendo que precisava ser firme, repetiu a pergunta.
Otávio humilhado, calou-se, e voltando a trabalhando, deixou-a sozinha.
A moça ficou perplexa. Ao ver a reação de Otávio, passou a ter certeza de que ele acreditava que não era seu pai. Todavia, acreditando que as dúvidas dele eram infundadas, encheu-se de mágoa. Quanto a isso, realmente, aquele farrapo humano não era seu pai. Nunca fora. Nem mesmo quando eles foram uma família unida. Letícia então, percebendo que perdera seu tempo indo até lá, resolveu partir. 
No entanto, antes de cruzar as fronteiras do sítio, Rafael, acorrendo em sua direção, gritou para que ela o esperasse. Letícia parou e olhando para trás, viu seu irmão de malas prontas, vindo em sua direção. O rapaz, dizendo que estava cansado de suportar as amarguras de seu pai, pediu para seguir viagem com ela.
Letícia então, perguntou se ele havia avisado Otávio que estava partindo.
O rapaz então disse:
-- Ele já sabe disso. Eu já o avisei. Vosmecê viu. Ademais, eu escrevi um bilhete para ele. Está na mesa.
Letícia então, deixou que o rapaz a acompanhasse. 
Rafael então, montou em um cavalo, e seguiu com Letícia estrada afora. 
Curioso em saber como era sua vida, não se cansava de fazer perguntas a moça. Indagando o porquê de sua fuga, queria saber o que tinha acontecido, por que nunca apareceu por lá, entre outras coisas. 
Letícia, dizendo que estava cansada de lembrar o passado, pediu reiteradas vezes ao irmão, para que mudasse de assunto.
Rafael ficou desapontado. Mesmo assim, concordou com a irmã, e mudando o rumo da conversa, passou a falar de assuntos mais amenos. 
Contando que vivia há muitos anos com Otávio, Rafael disse que não saiu antes de lá, por que não se sentia seguro o suficiente para isso. Porém, sempre que podia, aproveitava para visitar a casa de outros moradores da região, bem como participava das festas.
Letícia comentou então, que ele estava muito mudado.
Rafael respondeu que o mesmo havia se dado com ela.
Letícia ao ouvir isso, calou-se e prosseguiu a viagem em silêncio.
Sem saber direito para onde ir, ao ser interrogada pelo irmão quanto a isso, Letícia respondeu que pretendia se alistar para lutar na Guerra do Paraguai. 
Rafael, surpreso com a resposta, disse a ela que não poderia lutar, devido o fato de ser mulher. 
Letícia então, desafiada, comentou que durante muitos anos, trabalhou como um homem. Integrando a guarda real, permaneceu como cavalariana por um longo tempo.
Rafael não acreditou muito.
Contudo, ao chegar no Sul, percebeu que a moça não estava brincando. Fazendo-se passar por homem, Letícia logo se alistou na luta. Mesmo não acreditando muito na causa, respondeu ao irmão, que devia fazer isso, por uma questão de patriotismo.
Rafael então, mesmo não concordando que a irmã lutasse na guerra, prometeu não delatá-la e assim como ela, alistou-se também. 
Era 1866, e a guerra já havia começado há um ano. Durante o tempo em que atuou como cavalariana, Letícia já havia tomado conhecimento da iminência da guerra. Contudo, como não havia sido iniciada a luta, a moça só tinha conhecimento do que era relatado nos jornais. 
Mas agora não. Letícia estava no meio do confronto. 

Luciana Celestino dos Santos 
É permitida a reprodução, desde que citada a autoria. 


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