CAPÍTULO 10
Após, prosseguiu contando a ‘Lenda do M'boitatá’.
Foi assim:
Num tempo muito, muito antigo, houve uma noite tão comprida que pareceu que
nunca mais haveria luz do dia.
Noite escura como breu, sem lume no céu, sem vento, sem serenada e sem rumores, sem
cheiro dos pastos maduros nem das flores da mataria.
Os homens viveram abichornados, na tristeza dura.
E porque churrasco não havia, não mais sopravam labaredas nos fogões e passavam
comendo canjica insossa.
Os borralhos estavam se apagando e era preciso poupar os tições...
Os olhos andavam tão enfarados da noite, que ficavam parados, horas e horas, olhando sem
ver as brasas somente, porque as faíscas, que alegram, não saltavam, por falta do sopro forte de
bocas contentes.
Naquela escuridão fechada, nenhum tapejara seria capaz de cruzar pelos trilhos do campo,
nenhum flete crioulo teria faro, nem ouvido, nem vista para abster na querência, até nem sorro
daria no seu próprio rastro!
E a noite velha ia andando... ia andando...
Minto:
No meio do escuro e do silêncio morto, de vez em quando, ora duma banda ora doutra, de
vez em quando uma cantiga forte, de bicho vivente, furava o ar.
Era o téu-téu ativo, que não dormia desde o entrar do último sol e que vigiava sempre,
esperando a volta do sol novo, que devia vir e que tardava tanto já...
Só o téu-téu de vez em quando cantava; o seu - quero-quero! - tão claro, vindo de lá do
fundo da escuridão, ia se agüentando a esperança dos homens, amontoados no redor avermelhado
das brasas.
Fora disto, tudo o mais era silêncio; e de movimento, então, nem nada.
Minto:
Na última tarde em que houve sol, quando o sol ia descambando para o outro lado das
coxilhas, rumo do minuano, e de onde sobe a estrela-d'alva, nessa última tarde também desabou
uma chuvarada tremenda.
Foi uma manga d'água que levou um tempão a cair, e durou... e durou...
Os campos foram inundados; as lagoas subiram e se largaram em fias coleando pelos
tacuruzais e banhados, que se juntaram, todos, num; os passos cresceram e todo aquele peso d'água
correu para as sangas e das sangas para os arroios, que ficaram bufando, campo fora, campo fora,
afogando as canhadas, batendo no lombo das coxilhas.
E nessas coroas é que ficou sendo o paradouro da animalada, tudo misturado, no assombro.
E eram terneiros e pumas, tourada e potrilhos, perdizes e guaraxains, tudo amigo, de puro medo.
E então!...
Nas copas dos butiás vinham encostar-se bolos de formigas; as cobras se enroscavam na
enrediça dos aguapés; e nas estivas do santa-fé e das tiriricas boiavam os ratões e outros miúdos.
E, como a água encheu todas as tocas, entrou também na da cobra-grande, a – boiguaçu –
que, havia já muitas mãos de luas, dormia quieta, entanguida.
Ela então acordou-se e saiu,
rabeando.
Começou depois a mortandade dos bichos e a boiguaçu pegou a comer carniça.
Mas só
comia os olhos e nada, nada mais.
A água foi baixando, a carniça foi cada vez engrossando, e a cada hora mais olhos a cobra-grande comia.
Cada bicho guarda no corpo o sumo do que comeu.
A tambeira que só come trevo maduro, dá no leite o cheiro doce do milho verde.
O cerdo
que come carne de bagual nem vinte alqueires de mandioca o limpam bem, e o socó tristonho e o
biguá matreiro até no sangue têm cheiro de pescado.
Assim também, nos homens, que até sem comer nada, dão nos olhos a cor de seus arrancos.
O homem de olhos limpos é guapo e mão-aberta; cuidado com os vermelhos; mais cuidado
com os amarelos; e, toma tenência doble com os raiados e baços!...
Assim foi também, mas doutro jeito, com a boiguaçu, que tantos olhos comeu.
Todos - tantos, tantos! que a cobra-grande comeu -, guardavam, entrenhado e luzindo, um
rastilho da última luz que eles viram do último sol, antes da noite grande que caiu...
E os olhos -
tantos, tanto! - com um pingo de luz cada um, foram sendo devorados; no princípio um punhado,
ao depois uma porção, depois um bocadão, depois, como uma braçada...
E vai...
Como a boiguaçu não tinha pêlos como o boi, nem escamas como o dourado, nem penas
como o avestruz, nem casca como o tatu, nem couro grosso como a anta, vai, o seu corpo foi
ficando transparente, transparente, clareando pelos miles de luzezinhas, dos tantos olhos que foram
sendo esmagados dentro dele, deixando cada qual sua pequena réstia de luz.
E vai, afinal, a boiguaçu toda já era uma luzerna, um clarão sem chamas, já era um fogaréu
azulado, de luz amarela e triste e fria, saída dos olhos, que fora guardada neles, quando ainda
estavam vivos.
Foi assim e foi por isso que os homens, quando pela primeira vez viram a boiguaçu tão
demudada, não a conheceram mais.
Não conheceram e julgando que era outra, muito outra, chamam-na desde então, de boitatá,
cobra do fogo, boitatá, a boitatá!
E muitas vezes a boitatá rondou as rancherias, faminta, sempre que nem chimarrão.
Era então que o téu-téu cantava, como o bombeiro.
E os homens, por curiosos, olhavam pasmados, para aquele grande corpo de serpente,
transparente - tatá, de fogo-que media mais braças que três laços de conta e ia aluminando
baçamente as carquejas...
E depois, choravam.
Choravam, desatinados do perigo, pois as suas lágrimas também
guardavam tanta ou mais luz que só os olhos e a boitatá ainda cobiçava os olhos vivos dos homens,
que já os das carniças a enfaravam...
Mas, como dizia:
Na escuridão só avultava o clarão baço do corpo da boitatá, e era ela que o téu-téu cantava
de vigia, em todos os flancos da noite.
Passado um tempo, a boitatá morreu: de pura fraqueza morreu, porque os olhos comidos
encheram-lhe o corpo mas lhe não deram substância, pois que sustância não tem a luz que os olhos
em si entranhada tiveram quando vivos...
Depois de rebolar rabiosa nos montes de carniça, sobre os couros pelados, sobre as carnes
desfeitas, sobre as cabelamas soltas, sobre as ossamentas desparramadas, o corpo dela
desmanchou-se, também como cousa da terra, que se estraga de vez.
E foi então, que a luz que estava presa se desatou por aí.
E até pareceu cousa mandada: o
sol apareceu de novo!
Minto:
Apareceu sim, mas não veio de supetão.
Primeiro foi-se adelgaçando o negrume, foram despontando as estrelas; e estas se foram
sumindo no coloreado do céu.
Depois se foi sendo mais claro, mais claro, e logo, na lonjura, começou a subir um rastro
de luz..., depois a metade de uma cambota de fogo... e já foi o sol que subiu, subiu, subiu, até vir
a pino e descambar, como dantes, e desta feita, para igualar o dia e a noite, em metades, para
sempre.
Tudo o que morre no mundo se junta à semente de onde nasceu, para nascer de novo.
Só a luz da boitatá ficou sozinha, nunca mais se juntou com a outra luz de que saiu.
Anda
arisca e só, nos lugares onde quanta mais carniça houve, mais se infesta.
E no inverno, de
entanguida, não aparece e dorme, talvez entocada.
Mas de verão, depois da quentura dos
mormaços, começa então o seu fadário.
A boitatá, toda enroscada, como uma bola - tatá, de fogo! -, empeça a correr o campo,
coxilha abaixo, lomba acima, até que horas da noite!...
É um fogo amarelo e azulado, que não queima a macega seca nem aquenta a água dos
manatiais, e rola, gira, corre, corcoveia e se despenca e arrebenta-se, apagado... e quando um
menos espera, aparece, outra vez, do mesmo jeito!
Maldito!
Tesconjuro!
Quem encontra a boitatá pode até ficar cego...
Quando alguém topa com ela só tem dois meios de se livrar: ou ficar parado, muito quieto,
de olhos fechados apertado e sem respirar, até ir-se ela embora, ou, se anda a cavalo, desenrodilhar
o láco, fazer uma armada grande e atirar-lha por cima, e tocar a galope, trazendo o laço de arrasto,
todo solto, até a ilhapa!
A boitatá vem acompanhando o ferro da argola... mas de repente, batendo numa macega,
toda se desmancha, e vai esfarinhando a luz, para emulitar-se de novo, com vagar, na aragem que
ajuda.
Campeiro precatado!
Reponte o seu gado de querência da boitatá: o pastiçal, aí, faz peste...
Tenho visto!7
DICIONÁRIO:
abichornado - adjetivo SUL DO BRASIL
1. que se tornou abafado, sufocante; abochornado.
2. que se tornou abatido, desanimado.
tapejara - substantivo de dois gêneros
1. BRASILEIRISMO•BRASIL S. B C.-O. MG aquele que conhece bem o território; baqueano, vaqueano.
2. POR EXTENSÃO•RIO GRANDE DO SUL pessoa que dirige com segurança qualquer navio.
flete - substantivo masculino RIO GRANDE DO SUL
cavalo bom e formoso, arreado com luxo e elegância.
butiá - substantivo masculino ANGIOSPERMAS
1. design. comum às palmeiras do gên. Butia, com oito spp., nativas da América do Sul, ger. de estipe médio, com cicatriz de pecíolos antigos, longas folhas penatífidas us. em obras trançadas, e pequenas drupas comestíveis, com semente oleaginosa.
2. m.q. OURICURI (Syagrus coronata).
Tambeira - Garrota - Novilha.
enfarar - Fazer com que (alguém) sinta enfaro (enjoo ou aborrecimento); entediar-se. Etimologia (origem da palavra enfarar). De origem questionável.
precatado - adjetivo - que se precatou; aprecatado, acautelado, prevenido.
7 Lenda do Sul.
Texto retirado de artigos da internet sobre o folclore brasileiro, e de guias de viagens sobre o Brasil.
Luciana Celestino dos Santos
É permitida a reprodução, desde que citada a fonte.