Caetano Veloso desafiava o Brasil com "Alegria, Alegria" e defendia que o mundo era de Batman.
Bat-poética
Reportagem de Marcos Augusto Gonçalves
Era um rapaz muito diferente.
Quando subiu ao palco do 3º Festival de MPB, de cabelos encaracolados e gola rolê, trazendo à retarguarda as guitarras elétricas de um grupo pop argentino, chamado Beat Boys, alguma coisa começou a acontecer nos corações futuristas do nosso querido Brasil.
Aos primeiros acordes, surpresa.
O que seria aquilo? Música brasileira de verdade?
Música brasileira americanizada? Seria iê-iê-iê ou puro deboche?
Ao fim, uma sinfonia de certezas e incertezas: sem dúvida tratava-se de uma marcha, mas usava roupa dos Beatles e da Jovem Guarda; os acordes e a harmonia eram simples, mas pareciam muito complexos; a letra era pop, mas de uma ousadia poética inusual.
E o rapaz? O rapaz que resolveu, ao fim da apresentação, atirar-se ao chão, numa atitude cênica incomum naquela época, em que o padrão era a sobriedade do banquinho e do violão – quem era, afinal, esse rapaz?
--"Eu sou o 'Rei da Vela', de Oswald de Andrade, montado pelo grupo oficina. Sou brasileiro, sou casado e sou solteiro, sou baiano e sou estrangeiro. Adoro meu pai, minha mãe e meus irmãos, mas não tenho família. Eu sou Caetano Veloso. Meu coração é do tamanho de um trem."-- respondeu, depois do Festival.
Caetano não era exatamente um desconhecido antes de "Alegria, Alegria".
Seu talento já havia sido notado em canções como "De manhã" ou "Boa Palavra", e sua participação no debate sobre a "crise da MPB" já revelava uma consciência rara no meio musical.
Em 66, na "Revista de Civilização Brasileira", ele anunciava claramente o que
deveria ser – e foi – feito nos anos seguintes: "Só a retomada da linha evolutiva pode nos dar uma organicidade para selecionar e ter um julgamento de criação. Dizer que samba só se faz com frigideira, tamborim e um violão sem sétimas e nonas não resolve o problema".
No mesmo depoimento, apontava João Gilberto como a ponta do novelo da modernidade a ser retomada: "João Gilberto para mim é exatamente o momento em que isto aconteceu: a informação da modernidade musical utilizada na recriação, na renovação, no dar–um–passo–á–frente da música popular brasileira".
Mas o Caetano de "Alegria, Alegria", mesmo para aqueles que defendiam a bossa nova dos ataques nacionalistóides, parecia um tanto extravagante. Demasiadamente próximo da cultura pop e do palco da Jovem Guarda-contra
os quais movia-se uma "guerra santa".
O que aconteceu com Caetano Veloso?, perguntava Carlos Acuio, na introdução de uma entrevista, em dezembro de 67.
Caetano respondia: "Nego-me a folclorizar meu subdesenvolvimento para compensar dificuldades técnicas. Ora, sou baiano, mas a Bahia não é só folclore. E Salvador é uma cidade grande. Lá não tem apenas acarajé, mas também lanchonetes e hot dogs".
"Venho–me interessando mais pela poesia iê-iê-iê, pela vitalidade natural da música vulgar e comercial, do que pelo intelectualismo em que haviam caído todos os que se acreditavam continuadores de Caymmi, Noel e outros."
"Estou-me esforçando para respeitar meu público, que é jovem como eu, e está também interessado em que sejamos gente do mundo de agora."
"Ser gente do mundo de agora, ser um país do mundo de agora, uma cultura do mundo de agora. E de quem era o mundo de agora? "O mundo é realmente de Batman", provocava Caetano, causando urticárias na esquerda nacionalista, nos arautos das "raízes", nos violeiros do protesto antimperialista." "Alegria,Alegria", ao lado da primorosa "Domingo no Parque", de Gilberto Gil, foi um marco da canção moderna brasileira.
Um exercício antropofágico que cumpre o dever de casa da lição Pau– Brasil: "Contra a argúcia naturalista: a síntese.
Contra a cópia: a invenção e a surpresa".
Sem perder o fio da tradição, Caetano constrói sua estranha marcha, usando
elementos "mundo de agora".
Absorve os ecos de Liverpool, introduz instrumentos da área pop e atitudes e conteúdos que se aproximavam da contestação hippie.
Não por acaso, muitos viram nas iniciais de: "sem lenço e sem documento" uma menção cifrada ao LSD.
E logo depois do festival, o rapaz, que "nunca mais foi á escola", seguiu para a Bahia, onde casou-se Dedé Gadelha numa cerimônia "flower power".
"Alegria, Alegria" é também, uma injeção de criatividade na poética da palavra cantada brasileira.
Num momento em que a bossa nova aguava-se no sorriso e na flor e que a MPB de raízes enveredava pela "protest song", Caetano surge com uma letra "nouvelle vague", feita de estilhaços de imagens, adotando procedimentos da poesia e do cinema de vanguarda para falar de um Brasil fragmentado, moderno e mais jovem.
Sem esquecer a visão crítica da própria música popular, no conhecido verso "uma canção me consola".
Um mundo de espaçonaves e guerrilhas, Coca-Cola e Brigitte Bardot. Augusto de Campos, em 67, resumia, a quente:
"Furando a maré redundante de violas e marias, a letra de 'Alegria, Alegria' traz o imprevisto da realidade urbana, múltipla e fragmentária, captada isomorficamente através de uma linguagem nova, também fragmentária, onde predominam substantivos-estilhaços da 'implosão informativa' moderna (...) É o mundo das 'bancas de revista', o mundo da comunicação rápida, do 'mosaico informativo' de que fala Marshall McLuhan".
Claro que "Alegria, Alegria" não foi–muito menos naquele ano tão fértil–um fato
isolado.
Nem mesmo na área da música popular, em que se erigiu como marco, ao lado de "Domingo no Parque" e, logo a seguir, "Tropicália".
Mas, sem ela, a tradução e o "aggiornamento" de um momento cultural muito importante da história brasileira não seriam tão completos.
A canção, ao lado de "O Rei da Vela", de Zé Celso,"Terra em Transe", de Glauber Rocha, e o ambiente "Tropicália", de Hélio Oiticica, formou o abre– alas do tropicalismo, que se consolidaria, em 68, como o último grande movimento cultural do país.
E viva Chico Science!
"Passeatas, reclamações, discussões sem resultado–tudo na parte da frente da
cabeça, onde se estão juntando os ossos do mundo."
Aníbal Machado,Cadernos de João Machado.
Luciana Celestino dos Santos
É permitida a reprodução, desde que citada a fonte.
Informações
extraídas do livro: A Revolução Impossível, de Luis Mir, o livro Anos
Rebeldes, baseado na minissérie exibida na rede Globo, e matérias
publicadas no Jornal O Estado de São Paulo, ano de 1997.
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