Capítulo 4
No tempo das chuvas, começaram os problemas na cidade. Alagamentos. Encostas de morros
deslizando.
Em virtude da ocupação desordenada, muitas pessoas habitavam os morros.
A estrada que dava acesso a cidade, se transformou em um atoleiro.
Com isto, só era possível atravessar a cidade a cavalo.
Sônia sugeriu a doação de roupas e de alimentos para as pessoas que haviam perdido suas casas.
Organizou uma central de coleta, e assim, reuniu uma quantidade razoável de roupas e alimentos,
a qual foi devidamente encaminhada para a cidade por Amilton e outros moradores da região.
Certo dia, precisando comprar alguns itens para a casa, Amilton e Sônia foram de carroça para a
cidade.
No caminho avistaram morros sem cobertura vegetal, árvores caídas, lama.
Os dois ficaram surpresos com o que viram pelo caminho.
Ao chegarem na cidade, depararam-se com o caos.
Pessoas correndo de um lado para o outro, pedindo ajuda.
Amilton então, comentou que iria até a prefeitura se oferecer para ajudar no que fosse preciso.
Sônia se comprometeu em comprar os víveres.
Lá se foi ela para o mercado.
Com uma lista nas mãos, comprou tudo o que precisava.
Nisto, a moça levou os mantimentos para a carroça.
A cidade estava em polvorosa.
Com efeito, a moça foi abordada por um dos passantes.
Pedindo ajuda, uma criança levou-a até um dos morros onde havia risco de mais deslizamentos.
A cobertura vegetal fora parcialmente arrancada e haviam barracos soterrados.
A lama cobria tudo.
Por várias vezes a moça escorregou, sendo auxiliada pelos moradores, os quais auxiliavam no
resgate junto com os bombeiros.
Sem saber direito como agir, a moça começou a escavar a terra com as mãos.
Ao ouvir pedidos abafados de ajuda, Sônia continuou escavando.
Os bombeiros, ao perceberem o que a moça fazia, tentaram afastá-la, em vão.
Irritada, a moça comentou que haviam pessoas ali, precisando de sua ajuda.
E assim, continuou escavando.
Um dos bombeiros então, pegou uma capa e cobriu o corpo da moça.
A capa porém, escorregava.
Nisto, os bombeiros escutaram gritos de ajuda.
Ao constatarem que os gritos vinham do lugar onde a moça escavava, auxiliaram-na tarefa.
Ao término de quase uma hora, resgataram uma criança.
Aturdida, Sônia segurou a criança no colo.
Jornalistas que estavam no local, fotografaram a moça coberta de lama, usando uma capa e
segurando uma criança no colo. O semblante vazio.
Durante as horas em que permaneceu no morro, a moça tentou convencer os moradores que
residiam no local, a saírem dali, comentou que aquelas casas também desabariam.
O bombeiro Alencar, ao constatar que a moça não sairia do local, sugeriu que ela conversasse
com os moradores.
E assim, Sônia, conversando com os moradores, comentou que mais importante do que salvar
alguns bens materiais, era a vida de cada um deles, e que perdida, não haveria nada mais a ser feito.
Diante disto, os moradores concordaram em sair.
Retiraram parte de seus pertences e encaminharam-se para o abrigo da prefeitura.
Houve um morador porém, que insistiu em permanecer no morro.
Momentos depois, houve um novo deslizamento.
O morador retinente, teve sua casa soterrada.
Nisto, os bombeiros continuaram os trabalhos de resgate.
Depois de horas de buscas. A triste constatação.
O homem e sua família, foram encontrados sem vida.
Sônia ficou desolada.
De madrugada a moça voltou ao centro da cidade.
Amilton já estava a horas procurando-a.
Neste momento o centro da cidade estava vazio.
Ao perceber que a moça estava coberta de lama, com uma capa de chuva, o homem perguntou:
- Está tudo bem? Onde você estava?
Sônia não respondeu.
Aflito Amilton insistiu na pergunta. Novamente ficou sem resposta.
Ao notar que a moça parecia não estar bem, encaminhou-a ao Pronto Socorro da cidade.
Lá chegando, pode se deparar com o caos. Pessoas feridas, pacientes em macas espalhadas pelos
corredores.
Constatando que o atendimento no local era inviável, Amilton dirigiu-se ao hospital da cidade
vizinha.
Ao ser atendida pelo médico, o homem recomendou-lhe repouso, e acompanhamento por um
psicólogo.
Amilton agradeceu a atenção.
Comentou que viera da cidade vizinha, e que o ambiente por lá estava horrível.
Por conta dos deslizamentos havia muitos feridos, muita gente desabrigada.
O médico ao observar que a moça estava suja de lama, molhada e com uma capa de chuva,
recomendou que ela não voltasse ao morro.
Se fosse o caso, que ficasse em casa de parentes.
Amilton achou graça.
Ao notar a confusão do médico, respondeu que a moça não morava em nenhum morro.
Todavia, atenderia as recomendações do doutor, afastando-a do palco dos últimos acontecimentos.
Sônia foi levada para a casa.
Lá Amilton conduziu a moça para o quarto.
Rodrigo aflito, ao ver Sônia, ficou preocupado.
Disse que estava tentando contatá-los a horas, já que ambos saíram para fazer compras, naquele
tempo.
Argumentou que ao perceber as horas passando e nada deles voltarem, encheu-se de
aflição.
Passou a ligar de meia em meia-hora para o celular do pai.
Sem sucesso.
Com isto, ao ver a moça toda suja de lama, e em aspecto tão lastimável, abatida, perguntou o que
estava acontecendo.
Amilton respondeu que iria deixar Sônia no quarto.
Rodrigo resolveu acompanhá-los.
Nisto Amilton auxiliou a moça se deitar.
Antes ajudou-a tirar a capa molhada.
Pediu a moça que tirasse o vestido sujo e colocasse uma roupa limpa.
Sônia foi até o biombo, tirou o vestido sujo.
Amilton escolheu um vestido limpo que a moça tratou de colocar.
Depois, deitou-se na cama.
Amilton abriu o cobertor e cobriu-a.
Rodrigo pediu para ela dormir.
Sônia parecida vidrada.
Parecia alheia a tudo.
Em dado momento, começou a cantar:
“Hoje
Trago em meu corpo as marcas do meu tempo
Meu desespero, a vida num momento
A fossa, a fome, a flor, o fim do mundo...
Hoje
Trago no olhar imagens distorcidas
Cores, viagens, mãos desconhecidas
Trazem a lua, a rua às minhas mãos.
Mas hoje,
As minhas mãos enfraquecidas e vazias
Procuram nuas pelas luas, pelas ruas...
Na solidão das noites frias por você.
Hoje
Homens sem medo aportam no futuro
Eu tenho medo acordo e te procuro
Meu quarto escuro é inerte como a morte
Hoje
Homens de aço esperam da ciência
Eu desespero e abraço a tua ausência
Sorte
Eu não queria a juventude assim perdida
Eu não queria andar morrendo pela vida
Eu não queria amar assim como eu te amei.
Hoje - Composição: Taiguara”
Durante o sono, a moça relembrou dos delizamentos, dos gritos, do desespero, dos pedidos de
ajuda.
De caminhar sem rumo.
De ouvir tudo o que acontecia a sua volta, de não sentir nada.
Ao se lembrar dos últimos acontecimentos, acordou sobressaltada.
A moça teve febre, delírios.
Aflitos Rodrigo e Amilton cuidaram da moça.
Sônia ficou acamada por uma semana.
Movidas por solidariedade, algumas vizinhas se prontificaram a cuidar da moça.
Ministraram remédios, conversaram com ela, insistiram para que ela se alimentasse.
Sônia por sua vez, permanecia alheia a tudo.
Luciana Celestino dos Santos
É permitida a reprodução, desde que citada a fonte.
Nenhum comentário:
Postar um comentário