São Paulo, manhã de 1977, Marina e Cleide se preparam para mais um dia de trabalho.
Amigas, são funcionárias de um Banco, no qual atuam na função de caixa. Como todos os
paulistanos que vivem na mesma condição, ambas se levantam cedo, se arrumam, tomam o
café da manhã, e vão até o ponto de ônibus, onde esperam por quase meia-hora a condução
para poderem ir até o centro da cidade, onde trabalham.
No caminho, conversam sobre diversos assuntos, inclusive, os planos de vida.
Cleide, entusiasmada com a vida apesar das dificuldades, revela que pretende cursar
uma faculdade e lutar por uma vida melhor.
Marina a aprovou.
Cleide comenta:
-- Sim! Eu quero muito cursar uma faculdade, ter uma profissão. Eu não quero ficar
o resto da minha vida trabalhando como caixa em Banco, não. Não que a profissão não seja
digna, mas eu sonho com muito mais que isso. Sonho com uma vida melhor, menos
sacrificada.
-- Cleide, você tem toda a razão! A vida está muito difícil! Não dá mais pra continuar
desse jeito. Temos que fazer alguma coisa. Meu pai sempre diz que se a gente quer ser alguém
na vida, tem que estudar. O único caminho que nós temos é a escola. Não nascemos em berço
de ouro, então só podemos contar com nós mesmas.
-- Com certeza Marina! Por isso que quando eu chego do trabalho eu trato logo de
pegar nos livros e estudar. Quero tentar o vestibular no final do ano. Por que você não tenta
também? Ainda dá tempo de estudar.
-- Não sei amiga! A vida tem estado tão corrida nos últimos tempos! Não sei se vou
conseguir dar conta de tudo.
-- Não vai! Mas é lógico que vai! Você é esperta, inteligente. Você pode conseguir
tudo, Marina. Tudo, só tem que querer.
-- Sei lá! As vezes as coisas são tão complicadas!
-- Deixe disso Marina! Se for o caso, nós podemos estudar juntas. Pra que curso você
pretende concorrer?
-- Deixe-me ver... Olha, eu sempre gostei de ajudar as pessoas. Talvez eu preste para
assistente social.
-- Uma bela carreira sem dúvida. Pois eu penso em prestar vestibular para o curso de
letras.
-- É verdade Cleide! Você sempre me falou que gostaria de ser professora.
-- Sim, eu acho fascinante lecionar.
-- Sempre participou das aulas!
-- Pois é.
Nisso, eis que chegam no centro da cidade.
Já é hora de entrarem na agência em que são funcionárias e começarem a trabalhar.
A rotina é cansativa, o trabalho é incessante e somente no final da tarde as duas finalmente puderam retomar o assunto.
Enquanto as duas amigas conversavam distraidamente quando um menor se aproximou das
duas e aproveitando de um instante de distração delas e subtraiu a carteira de Marina.
Quando a moça percebeu o furto, o ladrãozinho já estava a metros de distância, e não havia mais nada
para ser feito.
A única coisa que lhe restou a fazer, foi reclamar.
Por isso:
-- Mas que absurdo é esse? Onde é que essa violência vai parar?
Surpresa, Cleide perguntou:
-- Mas o que houve, Marina?
-- Um ladrãozinho levou meus documentos. E agora, como eu vou pagar a passagem
do ônibus? – indagou a moça aflita.
-- Calma Marina, eu pago sua passagem. Mas eu acho que devemos passar antes em
uma delegacia, e relatar o que aconteceu.
-- Está certo.
Solícita, Cleide acompanhou Marina até a delegacia de polícia.
Ao voltarem para casa já tarde da noite, a moça estava inconformada com o ocorrido,
dizendo que São Paulo estava a cada dia pior, Marina precisou ser consolada por Cleide.
-- Ora amiga, isso acontece. Mas não se preocupe. Não foi você mesma que me disse
que aquele garoto não roubou nada de valor?
-- Sim, falei e repito. A questão não é o dinheiro roubado em si. O problema é que eu
vou ter tirar uma nova via de todos os meus documentos, vou ficar preocupada com o uso
que esse delinqüente vai fazer deles... Você já parou para pensar em tudo isso, Cleide? Sem
falar na paranóia da gente!
-- Está certo! Está bem! Eu concordo com tudo o que você disse. Foi muito
desagradável. Mas pense bem. Poderia ter sido bem pior. Já pensou se ele estivesse armado?
Pense só no susto que seria. Além disso, o que aquele menor fez só o vai prejudicar.
Provavelmente ele vai usar o dinheiro para se drogar.
-- Se drogar? É verdade! Eu não tinha pensado nisso. Provavelmente ele furtou minha
carteira para arrumar dinheiro para se drogar.
-- Pois é! E como é que uma futura assistente social reage dessa maneira? Você já
parou para pensar que quando estiver atuando, acabará se deparando com esse tipo de
situação? Minha amiga, se você pensa realmente em seguir esta carreira, é melhor mudar
seus conceitos.
-- É Cleide. Você sempre com uma palavra sensata. Eu vou pensar nisso. Até por que,
dificilmente vão pegar aquele garoto. E se o pegarem, quem sabe qual será o futuro dele?
-- Marina, parece que finalmente você está entendendo melhor as coisas.
-- É verdade! – respondeu pensativa.
Curiosa, Cleide perguntou:
-- O que foi?
-- Por um instante eu pensei que seria muito bom tentar uma vida melhor... Pensando
bem Cleide, eu acho que vou aceitar sua sugestão. Já que não tenho condições financeiras de
freqüentar um cursinho, vamos estudar juntas para passar no vestibular. Você realmente acha
que ainda dá tempo?
Cleide sorriu:
-- Claro que sim! Mas eu aconselho começar o quanto antes. Que tal amanhã?
-- Amanhã? Claro, sem falta. Eu prometo que amanhã estarei mais animada.
-- Ótimo! Então até amanhã, Marina. – respondeu abraçando a amiga.
-- Até amanhã, Cleide. – disse Marina.
Marina, educadamente, conduziu Cleide até a porta. Como as duas moravam a poucos
metros de distância, Cleide chegou logo em casa.
Ricardo e Eugênia, seu irmão e sua mãe, respectivamente, ficaram preocupados ao
perceberem que Cleide demorava para retornar.
Ao verem-na chegar tão tarde em casa,
crivaram-na de perguntas:
-- Cleide, onde esteve minha filha? – perguntou Eugênia.
-- Minha mãe, você não vai acreditar!
-- Pois então, conte! – respondeu Ricardo.
Aflita, Eugênia disse:
-- Quieto Ricardo, deixe Cleide falar.
Nisso a moça começou a falar:
-- Desculpem-me pela demora. Mas aconteceu um imprevisto.
-- Que imprevisto? – perguntou Eugênia curiosa.
-- É que quando eu e minha amiga voltávamos para casa, um menor furtou a carteira
de Marina. Aí tivemos que ir até a delegacia. E foi um fiasco.
-- Por quê? – perguntou Ricardo.
-- Por que, em razão da rapidez da ação do garoto, eu e minha amiga não pudemos
identificá-lo e assim, não há o que se fazer.
-- Nada? – perguntou Eugênia.
-- Nada, nada, não. É claro que foram adotadas as providências de praxe, mas nada
de extraordinário, foi feito o B.O. Só que agora minha amiga vai ter que tirar uma segunda
via de todos os seus documentos.
-- Isso vai dar uma trabalheira! – respondeu Eugênia penalizada.
-- Pois bem! E com isso, provavelmente minha amiga vai precisar faltar alguns dias
no trabalho.
-- Que chateação! – insistiu Eugênia.
-- Mas ainda bem que não foi nada mais grave.
-- Com certeza! Já pensou se ao invés de simplesmente furtar, o menor a tivesse
ameaçado com uma arma? Teria sido bem pior. – respondeu Ricardo.
-- Mas enfim, mudemos de assunto. Eu vou já esquentar seu jantar minha filha.
-- Está bem mãe.
Na casa de Marina, o alvoroço era geral, Otávio – seu pai – e Adélia – sua mãe –,
estavam inconformados com o incidente.
Otávio era o mais nervoso.
Revoltado, dizia que a situação de São Paulo estava piorando a cada dia.
Marina por sua vez, já refeita do aborrecimento que passara, comentou:
-- Ora papai, todo mundo está sujeito a isso! Eu já nem estou mais me importando com isso.
-- Mas isso é um absurdo minha filha, esta cidade não pode continuar desse jeito. Se
não, onde nós vamos parar. Se a freqüência de assaltos continuar aumentando dessa maneira,
daqui a pouco nós não poderemos mais sair de casa. O medo vai ser tanto que as pessoas vão
sair de casa inseguras, sem a certeza de que irão voltar.
-- Papai! Não exagere.
-- Não minha filha, não é exagero. Se as coisas continuarem do jeito que estão, daqui
a pouco não teremos mais controle da situação. E São Paulo é uma cidade tão bonita, não
merece ser maltratada dessa forma. Por que as autoridades não tomam uma providência? Por
que ninguém faz nada? Isso é uma pouca vergonha!
-- Acalme-se Otávio! Não é pra tanto! Foi desagradável? Foi, mas não é por isso que
você tem que transformar um simples incidente em um cavalo de batalha. Há coisas piores
acontecendo por aí todos os dias. – respondeu Adélia, tentando dissuadir o marido de fazer
mais um discurso inflamado.
-- Mas isso é muito grave, esta cidade está se tornando uma terra sem lei. Não
podemos concordar com isso Adélia.
-- Eu sei que não Otávio! Não devemos nunca nos conformar com as coisas erradas.
Só que eu não acho que ficar fazendo discurso resolve alguma coisa.
-- Está bem, Dona Adélia! Você mais uma vez está coberta de razão! Se discurso
resolvesse alguma coisa, o nosso Brasil seria um dos melhores países do mundo. É ver os
enorme discursos vazios de nossos políticos. Realmente você tem razão, nós precisamos de
gente atuante, não de políticos pernósticos, que só sabem falar enrolado para engambelar o
povo.
-- Falou o nosso grande sábio. – respondeu Adélia.
Marina concordou com seu pai.
Enquanto jantavam, já que seus pais sempre a esperavam para isso, Marina comentou que estava pensando em voltar a estudar.
Otávio, que desde que a filha deixara o colegial insistia para que ela voltasse a estudar,
ficou muito feliz. Entusiasmado, perguntou o que ela pretendia fazer:
-- Olha, eu ainda não estou muito certa, mas eu vou estudar junto com minha amiga
Cleide, ela pretende cursar letras e eu pretendo ser assistente social.
-- Assistente social? Não poderia ser alguma profissão mais promissora não? –
perguntou um pouco desapontada, Adélia.
-- Ora mãe, se foi a senhora mesma que comentou que é hora de agirmos, por que não
uma profissão como essa? Quem sabe entendendo um pouco o que passam os desvalidos, não
fique mais fácil ajudá-los?
-- Ora minha filha, e por que não fazer alguma coisa pelos mais pobres sendo uma
advogada? Por exemplo. É uma belíssima profissão, dá futuro, prestígio e você pode até
advogar para quem não tem recursos, desde que sejam apenas alguns clientes.
-- Mas mãe, eu nunca sonhei com essa profissão!
-- Minha filha, você está certa! A gente tem fazer aquilo que gosta. E não existe nada
mais lindo do que ajudar o nosso semelhante. Faça o que te faz feliz. Só não tenha ilusões de
que sozinha você poderá ajudar o mundo. Infelizmente, pouca coisa no mundo depende da
nossa vontade. Mas certamente se você puder fazer um pouco, já será um grande feito. –
respondeu Otávio.
Nisso os três trataram de jantar.
Mas tarde, antes de todos se recolherem para dormir, Otávio felicitou a filha pelo
passo que estava dando. Dizendo que sonhava com isso desde que ela deixara o colegial,
confidenciou-lhe que sempre desejou que sua filha tivesse um diploma. Comentando que o
estudo era o único caminho que possuía para ter uma vida melhor, abraçou Marina e lhe
desejou boa noite.
Luciana Celestino dos Santos
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