Poesias

sábado, 4 de julho de 2020

COISAS DO BRASIL PARTE 2 – REGIÕES NORTE E CENTRO OESTE - CAPÍTULO 59

CAPÍTULO 59

Com isso, ao terminar a narrativa, Túlio prosseguiu contando a ‘Lenda de Cobra Norato’.
Começou dizendo:
No paraná do Cachoeiri, entre o Amazonas e o Trombetas, nasceram Honorato e sua irmã Maria, Maria Caninana.
A mãe sentiu-se grávida quando se banhava no Rio Claro.
Os filhos eram gêmeos e vieram ao mundo na forma de duas serpentes escuras.
A tapuia batizou-os com os nomes cristãos de Honorato e Maria.
E sacudiu-os nas águas do Paraná porque não podiam viver em terra.
Criaram-se livremente, revirando ao sol os dorsos negros, mergulhando nas marolas e bufando de alegria selvagem.
O povo chamava-os: Cobra Norato e Maria Caninana.
Cobra Norato era forte e bom.
Nunca fez mal a ninguém.
Vez por outra vinha visitar a tapuia velha, no tejupar do Cachoeiri.
Nadava para a margem esperando a noite.
Quando apareciam as estrelas e a aracuã deixava de cantar, Honorato saía d’água, arrastando o corpo enorme pela areia que rangia.
Vinha coleando, subindo, até a barranca.
Sacudia-se todo, brilhando as escamas na luz das estrelas.
E deixava o couro monstruoso da cobra, erguendo-se um rapaz bonito todo de branco.
Ia cear e dormir no tejupar materno.
O corpo da cobra ficava estirado junto do Paraná.
Pela madrugada, antes do último cantar do galo, Honorato descia a barranca, metia-se dentro da cobra que estava imóvel.
Sacudia-se.
E a cobra, viva e feia, remergulhava nas águas do Paraná.
Voltava a ser a Cobra Norato.
A cobra, salvou muita gente de morrer afogada.
Direitou montarias e venceu peixes grandes e ferozes.
Por causa dele a piraíba do Rio Trombetas abandonou a região, depois de uma luta de três dias e três noites.
Já Maria Caninana era violenta e má.
Alagava as embarcações, matava os náufragos, atacava os mariscadores que pescavam, feria os peixes pequenos.
Nunca procurou a velha tapuia que morava no tejupar do Cachoeiri.
No porto da Cidade de Óbidos, no Pará, vivia uma serpente encantadora, dormindo, escondida na terra, com a cabeça debaixo do altar da Senhora Sant’Ana, na igreja que é da mãe de Nossa Senhora.
A cauda está no fundo do rio.
Se a serpente acordar, a Igreja cairá.
Maria Caninana então, mordeu a serpente para ver a Igreja cair.
A serpente não acordou, mas se mexeu.
A terra rachou, desde o mercado até a Matriz de Óbidos.
Aborrecido com a atitude da irmã, Cobra Norato matou Maria Caninana porque ela era violenta e má.
E ficou sozinho, nadando nos igarapés, nos rios, no silêncio dos paranás.
Quando havia putirão de farinha, dabucuri de frutas nas povoações plantadas à beira-rio, Cobra Norato desencantava, na hora em que os aracuãs deixam de cantar, e subia, todo de branco, para dançar e ver as moças, conversar com os rapazes, agradar os velhos.
Todo mundo ficava contente.
Depois, ouviam o rumor da cobra mergulhando.
Era madrugada e Cobra Norato ia cumprir seu destino.
Uma vez por ano Cobra Norato convidava um amigo para desencantá-lo.
Amigo ou amiga.
Podia ir na beira do Paraná, encontrar a cobra dormindo como morta, boca aberta, dentes finos, riscando de prata o escuro da noite: sacudir na boca aberta três pingos de leite de mulher e dar uma cutilada com ferro virgem na cabeça da cobra, estirada no areião.
A cobra fecharia a boca e a ferida daria três gotas de sangue.
E Honorato ficaria só homem, para o resto da vida.
O corpo da cobra seria queimado.
Porém, não fazia mal.
Bastava que alguém tivesse coragem.
Muita gente, com pena de Honorato, foi, com aço virgem e fresquinho leite de mulher, ver a cobra dormindo no barranco.
Era tão grande e tão feia que, mesmo dormindo como morta, assombrava.
A velha tapuia do Cachoeiri, ela mesma foi e teve medo.
Cobra Norato continuou nadando e assobiando nas águas grandes, do Amazonas ao Trombetas, indo e vindo, como um desesperado sem remissão.
Num putirão famoso, Cobra Norato nadou pelo Rio Tocantins, subiu para Cametá.
Deixou o corpo na beira do rio e foi dançar, beber e conversar.
Fez amizade com um soldado e pediu que o desencantasse.
O soldado foi, com o vidrinho de leite e um machado que não cortara pau, aço virgem.
Viu a cobra estirada, dormindo como morta.
Boca aberta.
Sacudiu três pingos de leite entre os dentes.
Desceu o machado, com vontade, no cocuruto da cabeça.
O sangue marejou.
A cobra sacudiu-se e parou.
Honorato deu um suspiro de descanso.
Veio ajudar a queimar a cobra onde vivera tantos anos.
As cinzas voaram.
Honorato ficou homem.
E morreu, anos e anos depois, na Cidade do Cametá, no Pará.
Não há nesse rio e terras do Pará quem ignore a vida da Cobra Norato.
São aventuras e batalhas.
Canoeiros, batendo a jacumã, apontam os cantos, indicando as paragens inesquecidas:
“Ali passava, todo dia, a Cobra Norato...”. 58

SIGNIFICADO:

Significado de Bufando: O mesmo que: arquejando, reclamando.

TEJUPAR
Mucambo (cabana): Mucambo ou mocambo, palhoça ou tejupar são denominações dadas a moradias construídas artesanalmente, muitas vezes de frágil constituição. ... A coberta de colmo usou-se até o século XVIII, de modo que Portugal já nos trazia a tradição do mucambo.

Significado de colear Mover o colo (serpentes). Andar, deslizar, fazendo curvas como a serpente; serpear.

58 Lendas Brasileiras / Câmara Cascudo. - Rio de Janeiro: Ediouro, 2000.

Texto retirado de artigos da internet sobre o folclore brasileiro, e de guias de viagens sobre o Brasil.
Luciana Celestino dos Santos
É permitida a reprodução, desde que citada a fonte.

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