Poesias

sexta-feira, 31 de julho de 2020

COISAS DO BRASIL PARTE 3 – REGIÃO SUL CAPÍTULO 4

E assim, o narrador começou falando que se tratava de uma lenda que se chama: ‘A Lenda da Gralha Azul’.
Pois bem, esta história começa com a ida a do Senhor Fidêncio Silva, à Fazenda dos Pinheirinhos. 
Isso porque, em razão de seu trabalho, havia muito tempo, que já não experimentava descanso daquela agitação comercial em que vivia, e a necessidade de um repouso prolongado, tornara-se-lhe cada vez mais patente. 
Estava deveras cansado. 
Portanto, oportuna foi a visita a tal fazenda. 
Além do mais, o Senhor Fidêncio Silva era parente afastado da esposa de José Fernandes. 
Assim, logo que pensou em descanso, lembrou-se dos Pinheirinhos, longe daquele bulício de transações ,e onde o clima não podia ser mais saudável. 
E não tardou que estivesse a sorver em largos suspiros, com evidente contentamento, o ar puro e limpo da localidade. 
José Fernandes recebeu-o fidalgamente, como costumava fazer com todos que traziam uma certa importância de responsabilidades. 
Pôs os Pinheirinhos à disposição do seu hóspede pelo tempo que desejasse: um, dois, três meses e mais se lhe aprouvesse.
 Ali teria plena liberdade; quando não quisesse sair nas ocasiões de rodeio, poderia ficar em casa, a uma sombra do pomar, folheando qualquer livro da sua biblioteca quase totalmente agrária, mas que possuía, também, alguma literatura. 
E passeios igualmente não faltariam. 
Um dia poderia cavalgar; outro iria caçar, levando espingarda, para fazer uma caçada de anta mais para o sertão ou então; sairia a passear pelos campos. 
Amanhã correria a vizinhança, ouvindo prosa de caboclos; e até pescaria, se quisesse, poderia fazer, em três léguas sertão adentro. 
Dessa maneira não havia como não corressem agradabilíssimos os trinta dias que Fidêncio Silva pretendia passar nos Pinheirinhos. 
E assim foi. 
Um domingo depois do almoço, saiu à caça com o fazendeiro. 
Bem municiados, espingardas suspensas pelas bandoleiras ao ombro, entranharam-se os dois por extenso e tapado capão. 
-- Querência de ter muito veado, cotia e quati. – afirmava o José Fernandes. 
Mas a sua asserção foi logo posta em cheque pela evidência dos fatos. 
Os caçadores não viam um só animalzinho que merecesse chumbo grosso, embora já tivessem andado muito. 
Passaram então a sondar a ramagem, na esperança de divisar algum pássaro de saborosa carnadura. 
Em certo momento, Fidêncio Silva parou e fez um sinal de silêncio ao companheiro. 
Depois, engatilhou, apressado a arma e firmou pontaria, visando a alguma caça. 
O fazendeiro procurou a caça, erguendo o olhar para a direção indicada pelo cano da espingarda. Súbito, um tremor sacudiu-lhe o corpo, e esteve ele ao lado de Fidêncio Silva. 
Mas já era tarde: o rebôo do tiro perdia-se molemente pelas quebradas da mata, soturno, a evocar tristeza naquela quietude frouxa de um mormaço estonteante. 
A expressão condoída da fisionomia do José Fernandes durou pouco e de todo desapareceu, ao ruflar das asas ligeiras, esgueirando-se assustadiças por entre as tramadas franças. 
O atirador errara o alvo e, boquiaberto, todo interrogação, estacava os olhos no fazendeiro, que, ainda com a mão no cano da arma, que pretendera desviar antes do tiro partir, no entanto, sem êxito, desafogava um longo suspiro de satisfação. 
-- Meus parabéns! – foram as primeiras palavras de José Fernandes, entre irônicas e zombeteiras. 
-- Parabéns!? – exclamou, ainda mais intrigado, o Fidêncio Silva.
– Então não merece cumprimentos o caçador que erra tiro em gralha azul? 
-- Renovo-os. Toque nestes ossos! E estendeu a destra. 
-- Quero compreender as suas palavras, mas creia, não posso atinar com o porquê de seu arrebatamento de há pouco. Não matar com carga de chumbo, um pássaro do tamanho dessa gralha, concordo que seja péssimo atirador, porém... 
-- Não. Não o censurei por errar. Muito pelo contrário: apresentei-lhe os meus sinceros parabéns. Confuso, meio envergonhado, o Fidêncio Silva confessou: 
-- O amigo tem, então, duas coisas para explicar-me. 
-- Uma só, uma só – emendou logo o fazendeiro. 
– Há coerência entre as minhas palavras e a anterior atitude. Eu lhe conto tudo. Sente-se aí nesse tronco caído e escute-me. 
O negociante obedeceu maquinalmente. 
Depois tirou um lenço e pôs-se a enxugar o suor que lhe escorria pelo rosto, enquanto que, largando o corpo preguiçosamente sobre a trançada grama, José Fernandes foi falando assim: 
“Era no inverno, quinze anos atrás. 
Havia muita seca e o gado caía de magro. 
Certa tarde montei o cavalo e saí por aí a percorrer os campos, na esperança de salvar alguma criação que porventura se atolasse ao saciar a sede. 
Levava comigo uma velha espingarda, que sempre me acompanhava, porque naquele tempo não poupava caça que se encontrasse pelo campo... 
Pois bem, regressava para casa. 
Vagaroso, com o pensamento nos grandes prejuízos que a seca estava ocasionando, quando então vi um bando de gralhas azuis descer à beira de um capão, entre numeroso grupo de pinheirinhos. 
Para afugentar, ainda por pouco a minha tristeza, acrescida pelo fato de ter naquela volteada encontrado mais duas reses estraçalhadas pelos corvos, resolvi dar caça àqueles animaizinhos. 
Aproximei-me cauteloso, apeando a respeitosa distância. 
Não muito longe, deti-me à sombra de um pinheirinho e contemplei, por instantes, o bando. 
Eram poucas as gralhas, e notei que revolviam o solo com o bico. 
Fazer pontaria e puxar o gatilho foi obra de um momento. 
Mas, ai! 
Que horrível o segundo que se lhe seguiu! 
A espoleta estraçalhou-se e vários estilhaços, de mistura com resíduos da pólvora, vieram dar em cheio em meu rosto. 
Tonteei, bambearam-se-me as pernas e caí por sobre a macega. 
Quanto tempo estive desacordado, não lhe sei dizer.
 Antes, porém, de recuperar os sentidos, quando o sol já se encobria por detrás da mata, um pesadelo fabuloso, qual uma história de fadas, gravou-se-me na memória. 
Revi-me de arma em punho, pronto para fazer fogo. 
Quando o fiz, iluminou-se o alvo e, aberta as asas brilhantes, o peito a sangrar, veio ele de manso, se achegando a mim. 
Os pés franzinos evitavam os sapés esparsos pelo chão e o andar esbelto tinha qualquer coisa de divino. 
Dardejante o seu olhar, estremeci ante aquela figura de ave, e deixei cair a arma. 
Estático já, estarreci ao ouvir os sonoros e compreensíveis sons que aquele delicado bico soltava naturalmente. 
Dizia a gralha: 
"És um assassino! 
Tuas leis não te proíbem matar um homem? 
E quem faz mais do que um homem, não vale pelo menos tanto quanto ele? 
Eu, como humilde avezinha, que sou, entoando a minha tagarelice selvagem, faço elevar-se toda essa floresta de pinheiros. 
Multiplico, à medida de minhas forças, o madeiro providencial que te serve de teto, que te dá o verde das invernadas, que te engorda o porco, que te locomove dando o nó de pinho para substituir o carvão-de-pedra nas vias férreas. 
E ignoras como eu opero!... 
Vem. 
Acompanha-me ao local onde me interrompeste o trabalho, para aprenderes o meu doce mister. 
Vês? 
Ali está a cova que eu fazia e, além, o pinhão já sem cabeça, que eu devia nela depositar com a extremidade mais fina para cima. 
Tiro-lhe a cabeça porque ela apodrece ao contato da terra e arrasta à podridão o fruto todo, e planto-o de bico para cima a fim de favorecer o broto. 
Vai. 
Não sejas mais assassino. 
Esforça-te, antes, por compartilhar comigo nesta suave labuta." 
A gralha desapareceu e eu voltei à razão. 
Levantei-me a custo e fui ter ao local escavado pelas aves, uma das quais jazia com o peito manchado de sangue, ao lado de um pinhão já sem cabeça. 
Admirado, verifiquei a certeza da visão: mais adiante cavouquei com as mãos a terra revolvida de fresco e descobri um pinhão com a ponta para cima e sem cabeça. 
O José Fernandes fez uma pausa e depois concluiu, mal encobrindo a sua alegria: 
-- Aí está, caro Fidêncio, como vim a a ser um plantador de pinheiros. 
Quero valer mais que um homem: quero valer uma gralha azul!1 ”

DICIONÁRIO: reboo /ôo/ substantivo masculino
ato ou efeito de reboar; ressoo.
ressoar - verbo 1. intransitivo soar com força; retumbar, ecoar.
"ressoavam as trombetas"
2. transitivo direto e intransitivo fazer soar; cantar, entoar.
"um cântico ressoou pelas alamedas"
dardejante adjetivo de dois gêneros 1. que arremessa dardo ('arma').
2. POR EXTENSÃO que fere ou atinge com dardo ('arma').

1 Texto extraído do site: http://www.terrabrasileira.net/folclore/regioes/3contos/entesnor.html
Texto retirado de artigos da internet sobre o folclore brasileiro, e de guias de viagens sobre o Brasil.
Luciana Celestino dos Santos
É permitida a reprodução, desde que citada a fonte. 

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