CAPÍTULO 31
Com isso, alegando que em outras paragens, os viventes da região podiam se dar o luxo de viverem mais próximos de tudo, da escola, do centro, da cidade, o pescador contou então a Lenda do Negrinho do Pastoreio.
Começando a contar que os gaúchos, em algumas comemorações, celebravam a vinda e resistência dos negros que por cá aportaram, relatou que os mesmos reviviam as dores e agonias dos negros homiziados, que foragidos, organizavam-se em quilombos – verdadeiros focos de resistência contra o regime escravocrata.
Todos os filhos da África, escravos, sonhavam em viver numa terra livre.
Isso por que, se não puderam escolher o lugar onde iriam viver, ao menos gostariam de viver em liberdade.
Em razão disso, surgiu uma linda história, que se tornou lenda, entre os moradores do lugar.
Essa história começa assim:
Em uma velha estância da região, como já era comum a todos os grandes fazendeiros que tinham escravos, açoitarem-nos; os negros, vítimas da crueldade de seus donos, suportavam bravamente os revezes da vida que levavam.
Obstinados, mesmo diante da mais dura perseguição, não abandonavam suas crenças, e assim, visando desviar a atenção de seus senhores, passaram a praticar seus rituais religiosos, sob os disfarces de santos cristãos.
Assim, um guerreiro africano, passava a ser representado por um santo católico.
O que deveras, facilitava sobremaneira o culto dos escravos à suas divindades.
Astutos que eram, conseguiram perpetuar suas tradições.
Contudo, ainda assim, eram alvo de perseguições e torturas.
Rebeldes, muitos não se sujeitavam a continuar viver a dura vida que levavam.
Muitos, muitos mesmo fugiam, e procuravam se organizar, para que pudessem viver longe das vistas de seus cruéis senhores.
Com o passar do tempo, passaram a se organizarem em Quilombos.
Quilombo, era o lugar onde podiam voltar a viver como se ainda estivessem na África.
Era o sonho de todos os cativos.
Assim, passaram a lutar por sua liberdade.
Procuravam fugir das fazendas e seguiam em busca dos tais Quilombos.
Muitos nessa busca, logravam êxito.
Outros contudo, não conseguiam chegar até o final da jornada.
Antes disso, eram pegos pelo capitão do mato, homem contratado pelos estancieiros, e outros fazendeiros, para recapturarem os escravos homiziados.
E assim, novamente capturados, eram levados ao tronco, espécie de poste de madeira.
Lá eram amarrados e açoitados até quase desfalecerem.
O sofrimento que a eles era impingido, era uma forma de aviso e de lição, para que os outros negros não se atrevessem a fazer o mesmo.
Os fazendeiros, queriam disseminar o medo entre os escravos.
No entanto, nem sempre o conseguiam.
Mas, mesmo diante da resistência dos negros, de sua teimosia em aceitar a escravidão, os mesmos não tinham escolha.
O peso do látego contra seus troncos, ferindo-os, lanhando-os, entrando em suas carnes e tirando-lhes sangue, enfraquecia seus corpos já, tão sofridos.
Sofridos das dores de terem que se despedir para sempre de sua amada terra, da dor da fome e do sofrimento.
Por mais forte que fossem, o sofrimento os abatia, e muitos deles morriam em razão disto.
Jovens, morriam muito cedo.
Por mais fortes que fossem, não tinham como agüentar tão dura vida por tanto tempo.
Cedo ou tarde cediam e se despediam deste mundo.
Contudo, dentre todas essas histórias de dor e de sofrimento, existe uma, uma linda história, que simbolicamente retrata tudo isto.
Conforme já dito anteriormente, em uma antiga estância, no tempo da escravidão, um homem, possuidor de diversos escravos, possuía entre eles um negrinho.
Um jovem escravo, que executava ordens para um estancieiro.
Estava encarregado de cuidar de alguns animais.
Mas, inadvertidamente, enquanto executava seu mister, acabou por perder de vista um dos animais de que cuidava.
Pastor que era, devia cuidar dos animais.
Conforme não haviam cercas por aquelas paragens, o cuidado era redobrado.
Qualquer descuido, e lá se ía um animal.
No entanto, mesmo com todo o cuidado, um animal fugiu.
Em razão disso, o pobre negrinho sofreu os maiores castigos.
Contudo, depois de muito apanhar por conta do ocorrido, teve ainda que sair em busca do animal perdido.
E assim, sem saída, só lhe restou sair a procura do animal.
Procurou, procurou ...
Conforme a noite ía chegando, ele aproveitou e acendeu a vela que trazia consigo, e continuou procurando, procurando ...
Mas nada!
Nem sequer um vestígio do animal desaparecido.
Conforme o dia clareava, precisou voltar para a estância.
Como não logrou êxito em sua busca, novamente foi amarrado e seviciado.
Duramente espancado, apanhou tanto que acabou morrendo.
Não bastasse isso, seu senhor, um homem impiedoso e cruel, mandou ainda que abrissem um formigueiro e lá atirassem o corpo do negrinho, todo lanhado e banhado em sangue.
No dia seguinte, movido por uma curiosidade mórbida, o horrendo senhor, acompanhado de alguns escravos, foi até o formigueiro para ver o resultado final de sua maldade.
Mas, qual não foi sua surpresa ao ver o menino que horas atrás havia torturado e matado, lépido e fagueiro, ao lado do animal perdido.
Horrorizado, o cruel senhor e seus escravos, partiram em desabalada carreira em direção a fazenda.
Assustados, nunca mais ousaram retornar ao local.
Afinal sabiam que o negrinho ali ficava.
Não queriam ser assombrados por tal visão.
Visão esta que lhe traria a lembrança, toda a maldade que praticaram.
Por conta disso, o jovem negrinho, passou a partir daí, a ser o achador das coisas perdidas ou extraviadas.
E alvo também de preces e de promessas.
Daí a tradição da região de homenagear os negros e sua história.39
Como esta, existiam ainda muitas outras histórias, mas essa mostra o quão alguém pode ser cruel e por outro lado, pessoas tão bondosas, ainda podem existir.
Histórias de lutas, existem muitas.
Os povos que por aqui viveram são exemplos disso.
Como eles, pescadores que com poucos recursos, lutam com dignidade, por sua sobrevivência.
Lutam ainda mais, para preservarem suas crenças.
Crenças que ainda estão vivas em suas almas de conquistadores.
Conquistadores do mar em buscam o alimento para a sobrevivência.
E guerreiros, guerreiros por lutarem e manterem suas tradições.
Enfim, um ato de coragem.
Com isso o pescador, percebendo o avançar das horas, despediu-se de todos e adentrou sua morada. As crianças que a tudo ouviam com muito interesse e os turistas, ficaram um tanto quanto desapontados com a despedida.
Contudo, muito havia ainda para ver visto e ouvido, conforme se verá a seguir.
39 Lenda Original da Região Sul.
Texto retirado de artigos da internet sobre o folclore brasileiro, e guias de viagens sobre o Brasil.
Luciana Celestino dos Santos
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