Poesias

sexta-feira, 12 de fevereiro de 2021

A DEUSA NEGRA - CAPÍTULO 14

Rodrigo bem que tentou retê-la por mais alguns minutos. Debalde.
Apressada, Thereza nem deixou o amigo falar. Ansiosa por encontrar o marido, Thereza atravessou rapidamente ruas e calçadas.
Desta forma, quando o rapaz foi até a rua para ver onde ela estava, não viu nem a sombra da moça que a esta altura já estava bem longe dali.
Desolado por saber que Thereza havia se casado, o rapaz, mesmo assim, ainda tentaria se aproximar mais uma vez, antes de voltar para a fazenda.
Thereza caminhando, ao então ver Abelardo, foi logo dizendo:
-- Então a reunião acabou?
-- Sim. Já faz algum tempo. Onde você estava?
-- Bem... eu fui dar algumas voltas e acabei entrando em uma das confeitarias. – respondeu ela, um pouco nervosa.
Abelardo sorrindo, perguntou-lhe se já podiam ir.
A mulher, aturdida, assentiu com a cabeça.
Assim os dois caminharam juntos em direção ao hotel.
Rodrigo ao voltar para casa, foi logo cumprimentando o tio. Dizendo que encontrou na cidade, uma pessoa que não via há tempos, perguntou a Altino, como fazia para encontrar uma pessoa que não havia deixado endereço.
O homem, cauteloso, perguntou ao rapaz, por que a pessoa não deixara seu endereço.
Rodrigo, contou então as circunstância na qual se deu o encontro.
Altino, percebendo que o encontro fora inesperado, perguntou ao rapaz se a moça realmente tinha interesse em revê-lo.
Rodrigo, aborrecido com a pergunta, comentou:
-- Mas é claro que tem. Afinal de contas, nós não nos vemos desde há muito...
Altino ao ouvir a resposta decisiva do sobrinho – filho de Ataúfo –, e temendo magoá-lo, disse que a melhor maneira maneira de fazê-lo, seria procurar a moça em hotéis. Isso por que, segundo o mancebo, Thereza estava muito bem posta na vida. Dizendo que a moça estava muito bem vestida, Rodrigo mostrou qual era o melhor caminho para encontrá-la.
Rodrigo então, seguindo os conselhos do tio, agradeceu-o e prometendo procurá-la no dia seguinte, comentou que vasculharia todos os hotéis da cidade, se fosse preciso.
Altino preocupado, sorriu.
Porém, por mais que se preocupasse com o mancebo, não adiantava discutir. Quando Rodrigo colocava uma idéia na cabeça, não havia quem o convencesse do contrário.
E assim, mesmo sabendo que Thereza era casada, lá se foi ele, a sua procura.
Ansioso, nem bem esperou o dia amanhecer para se levantar e caminhar pela cidade. Alugando um tílburi, percorreu as principais ruas da cidade. Vasculhando os hotéis mais luxuosos da Corte, o rapaz levou algum tempo para encontrar Thereza.
Mas de tanto persistir acabou encontrando.
No momento em obteve a confirmação de que a moça estava hospedada em um dos hotéis da cidade, o moço pediu para que o recepcionista o avisasse assim que ela surgisse no saguão. O homem prometeu que o faria.
E assim, Rodrigo esperou pacientemente que a moça saísse de sua alcova.
Porém, ao contrário do que imaginara, não foi preciso que alguém o avisasse. Quando Thereza surgiu fulgurante de braços dados com seu marido, Rodrigo pôde ver com seus próprios olhos o casal. Surpreso ao saber que a moça havia se casado com alguém tão jovem quanto ela, o rapaz ficou profundamente decepcionado.
Isso por que, acreditava que Thereza havia se passado por uma senhora, simplesmente para provocá-lo. Mas não, a moça havia mesmo se casado.
Para Rodrigo, o desalento não podia ser maior.
Por isso mesmo, depois de ver a moça passar por ele, sem nem sequer lançar-lhe um olhar, Rodrigo saiu do hotel aborrecido.
Quando chegou em casa e o tio perguntou como tinha sido o encontro, ouviu uma resposta atravessada. O jovem mancebo, dizendo que não tinha tempo para conversas, resolveu deixar o assunto de lado.
Altino, homem experiente que era, percebeu que o encontro não transcorreu da forma como ele imaginara. Pensando nisso, o homem tranqüilizou-se. Afinal de contas, se as coisas não ocorreram como ele gostaria, certamente o rapaz havia caído em si. Dessa forma, seria apenas uma questão de tempo, para que ele desistisse da idéia de se encontrar novamente com Thereza.
No entanto, nem tudo saiu como Altino esperava. Isso por que, apesar da decepção de sabê-la casada, Rodrigo, planejando voltar para a fazenda, cismou que tinha que se despedir da moça. Dizendo ao tio, que não podia simplesmente partir sem ao menos dizer adeus, o rapaz insistiu na idéia de que tinha que se despedir. Isso por que, temendo a idéia de que os dois nunca mais se encontrassem, sentia-se em débito com a moça, e apesar de achá-la ingrata, já que nunca o procurou, achava que devia finalmente encerrar aquela página de sua vida. Decidido, retornou, dias depois ao hotel e ansioso, esperou que a moça aparecesse.
Conforme as horas passavam, e nada de Thereza aparecer, Rodrigo foi ficando cada vez mais preocupado. Temendo que a moça houvesse partido sem se despedir dele, Rodrigo foi ficando cada vez mais angustiado. Diante disso, foi até a recepção do hotel.
Antes que qualquer um dos recepcionistas viesse atendê-lo, Thereza, desconfiada de que era Rodrigo o rapaz que se aproximava da recepção, resolveu chamá-lo.
-- Rodrigo!
O mancebo ao ouvir seu nome, virou-se. Era Thereza quem o chamava.
Surpreso, o rapaz mal pôde esconder sua alegria ao vê-la diante de si.
Por um instante esqueceu de tudo o que havia se passado em sua vida desde que deixara a fazenda. Por um instante era como se tudo havia voltado a ser como era antes. Novamente se viu menino, conversando em meio ao cafezal com Thereza, a amiga de infância, a querida companheira de suas horas felizes. Porém, em meio a toda essa felicidade, veio a lembrança de Ataúfo, criando e cuidando dele.
O jovem, ao se lembrar disso, ficou profundamente emocionado. Isso por que, ao lembrar-se de Ataúfo, inevitavelmente lembrava de quanto havia sido enganado e de como, mesmo sem poder dizer a verdade, o homem o criara com um verdadeiro pai.
Ressentido, não conseguia entender como um homem como ele, tão incisivo e assertivo, não teve coragem para assumir que era seu pai.
Thereza, percebendo que rapaz se distraíra com alguma coisa, chamou-lhe novamente pelo nome:
-- Rodrigo!
Nesse instante, o rapaz, percebendo que a moça estava diante de si, notou que havia se distraído.
Thereza preocupada, perguntou-lhe se estava sentindo alguma coisa.
Rodrigo respondeu que não. Apenas o passado, que havia se apresentando diante dele.
Thereza ao ouvir isso também se emocionou.
Rodrigo, percebendo que magoou a moça, pediu desculpas. Dizendo que esta não fora sua intenção, pediu para que ela esquecesse tudo aquilo.
Thereza respondeu-lhe então:
-- Esquecer o que me dissestes eu até posso fazê-lo. Só não me peças para eu esquecer o passado. Ele faz parte de mim, e nada do mundo pode apagá-lo. Por mais que isso me doa, eu não posso me livrar dele.
Nisso fez-se um longo período de silêncio entre os dois.
Thereza retomando a palavra, prosseguiu:
-- Mas não se preocupe. Eu não sou triste.
Rodrigo, observando o sorriso da amiga, percebeu que ela não era sincera quando dizia aquilo. Porém, não querendo entrar em detalhes quanto aquele assunto, Rodrigo resolveu mudar o rumo da conversa.
Dizendo que tinha ido até lá para se despedir, comentou brincando que ela havia se escondido muito bem.
Thereza, ao ouvir as palavras do amigo, levou algum tempo para entender o que ele estava querendo dizer com aquilo. Mas, ao entender as palavras do amigo, pediu-lhe desculpas.
Dizendo que fora negligente com ele comentou:
-- Que indelicadeza a minha! Quando eu me despedi de você na confeitaria, nem me lembrei de dizer-lhe onde estava hospedada. Que modos péssimos!
Rodrigo, ao ouvir as palavras de Thereza, aceitando as desculpas, contou a ela como fizera para descobrir onde estava hospedada.
Thereza ao tomar conhecimento das artimanhas do amigo, elogiou sua esperteza.
Percebendo que os dois ainda estavam no saguão do hotel, Thereza, notando que aquele não era o lugar mais adequado para terem uma conversa, pediu para ele acompanhá-la até o restaurante.
Rodrigo aceitou o convite.
E assim, lá se foram os dois a caminhar.
Ao encontrar um bom lugar para comerem uma refeição, Thereza comentou que por Abelardo estar envolvido em discussões políticas, podiam conversar o tempo que quisessem até que ela tivesse que voltar para casa.
Curioso, Rodrigo perguntou a ela como era estar casada com um ativista político.
Thereza respondeu que Abelardo, por ser escritor e poeta, era por demais idealista. Por esta razão, o rapaz estava mais preocupado em libertar os escravos, do que com uma vida vulgar. A moça, dizendo que admirava-o por isso, contou que o rapaz era um grande lutador. Filho ilegítimo de rico fazendeiro, Abelardo lutou muito para estudar e ter a vida que merecia.
Rodrigo sentido, comentou que conhecia esta história.
A moça, percebendo que tocara em feridas não definitivamente cicatrizadas, pediu-lhe desculpas, e dizendo que não tivera a intenção de magoá-lo, deixou bem claro que só queria contar a trajetória do marido.
Rodrigo então, aceitou as desculpas e pedindo para que a moça prosseguisse o relato, descobriu que Abelardo estava trabalhando como jornalista. Curioso, assim que soube disso, logo perguntou se o rapaz já possuía algum livro publicado.
Thereza, dizendo que o Brasil era um país negro comandado por brancos, respondeu que, muito embora ele já tivesse alguns textos publicados na imprensa brasileira, até agora não conseguiu convencer ninguém a publicar seus livros.
Rodrigo irônico, perguntou a Thereza por que ela não sugeria ao marido usar um pseudônimo para publicar suas obras.
A moça, percebendo o tom das palavras de Rodrigo, respondeu que sugerira isso a Abelardo, mas este, dizendo que devia ser aceito pelo que ele era e não por uma idéia que faziam dele, respondeu que jamais aceitaria esse tipo de solução.
Rodrigo então sorriu.
Thereza irritada, respondeu que ele não tinha o direito de debochar de Abelardo já que ele nem o conhecia. Aborrecida com o pouco caso de Rodrigo em relação a Abelardo, Thereza levantou-se e ameaçou até deixá-lo sozinho no restaurante.
O mancebo, percebendo que havia se excedido, pediu desculpas e dizendo que não falaria mais nada a respeito de Abelardo, pediu a moça para que se sentasse.
Thereza titubeou, mas o rapaz, segurando-a pelo braço, pediu novamente para que ela se sentasse. Dizendo que não se sentiria bem em saber que a deixara aborrecida, prometeu novamente não falar de seu marido.
A moça, percebendo que Rodrigo estava sendo sincero, sentou-se novamente.
Nisso, Rodrigo, dizendo que estava ali para se despedir, comentou com a moça que estava voltando para a fazenda.
Thereza, surpresa com a atitude do rapaz, perguntou interessada, o que o fazia querer voltar para lá.
O rapaz então respondeu:
-- Oras! Eu tenho direito a parte daquelas terras. A senhora bem o sabe. Muito embora eu não precise delas, eu não posso esquecer de Ricardo.
-- É verdade! Vosmecê me disse que Diego se apoderou de tudo. – respondeu ela.
-- Sim. E é por isso que eu preciso voltar para lá. Em consideração a ele e a tudo que aquele lugar representou em minha vida, eu não posso desistir daquelas terras. – respondeu ele um pouco emocionado.
-- Sim, eu sei. Aquilo tudo deve significar muito para você. Eu sei o que é isso e não lhe tiro a razão.
Rodrigo, ao notar o tom saudoso de suas palavras, perguntou a Thereza se ela também tencionava voltar para lá.
A moça, sem saber o que responder, contou que não havia razão nenhuma para voltar para lá. Ademais, como escrava que era, não podia voltar para lá, ou certamente Diego tentaria prejudicá-la. Segundo ela, se Diego havia se adonado de tudo, certamente ele também tentaria se apossar de todos os escravos que fugiram da fazenda.
Rodrigo, percebendo que havia razão na preocupação de Thereza, disse a ela que se tencionava voltar, não deveria jamais revelar que era a mesma moça, que anos antes, fugira da fazenda. Sequioso de que a moça um dia o visitasse, disse a ela, que quando quisesse ficar por lá, era só dizer que era uma conhecida do Rio de Janeiro, que não haveria problema algum. Por ser ele negro, ninguém suspeitaria ser ela alguma escrava, posto que devia ter muito amigos da mesma cor.
Segundo ele, os negros, em sendo muito unidos, procuram sempre se reunir em grupos, para que assim sofressem menos com as agressões daquela sociedade escravagista e preconceituosa.
Isso por que, ser negro e influente, naqueles tempos, era algo quase impensado.
Se unir então, era uma forma de se proteger um pouco das agressões dos brancos.
Thereza, ao ouvir o convite, sorriu. Porém, declinando da oferta, respondeu que tinha assuntos para resolver por ali e que por isso mesmo não podia se ausentar.
Rodrigo, um pouco decepcionado, respondeu:
-- Que pena!
E assim, bebericando um vinho, e comendo um regalado repasto, o jovem se despediu da moça que enchera sua vida de alegria. Dizendo que levaria muito tempo para ali voltar, disse a ela, em tom melancólico, que talvez nunca mais se encontrassem.
Thereza, ao perceber que a despedida fosse definitiva, chorou. Desalentada, abraçou o amigo, se esquecendo de todas as regras de moral e boa conduta.
Depois, percebendo havia se excedido, pediu desculpas.
Foi então que Rodrigo disse adeus.
Thereza, se despediu.
Quando o garçom chegou para recolher a louça usada no almoço, trouxe também a conta, que Rodrigo prontamente pagou.
E assim, quando o rapaz a conduziu de volta ao hotel, Thereza, perguntando a ele quando partiria, prometeu que iria até a estação ferroviária se despedir.
Rodrigo então respondeu.
Em seguida os dois se despediram novamente.
No dia seguinte, conforme o combinado, Thereza, esperando-o na estação, novamente se despediu.
Abelardo, participando de reuniões políticas não pôde acompanhá-la.
E assim Thereza e Rodrigo, aproveitaram para novamente se abraçar. Depois, pegando suas malas, o rapaz entrou no trem. Estava prestes a voltar para a terra de suas lembranças.
Altino, adoentado, não pôde acompanhá-lo até a estação. Por isso aproveitou para se despedir do sobrinho, momentos antes deste partir. Preocupado, pediu ao rapaz, que mantivesse contato.
Rodrigo atencioso, prometeu que o faria.
A seguir, disse até logo e fechou a porta da casa.
Na estação, Rodrigo encontrou Thereza e lá se despediu dela.
Depois de ver o trem partir, a moça, um pouco nostálgica, resolveu fazer um breve passeio na cidade. Solitária, percorreu ruas, praças, visitou inúmeros lugares e depois voltou ao hotel.
Para sua surpresa, quando adentrou o saguão do hotel, deparou com Abelardo que a esperava impaciente.
O mancebo, enciúmado, foi logo perguntando se ela estivera até agora na estação.
Thereza, surpresa com a reação do marido, respondeu que não. Dizendo que resolvera fazer um passeio, caminhou pela cidade. Tanto que até perdeu a hora.
Abelardo, ao ouvir as palavras da esposa, tranqüilizou-se.
Satisfeito com a resposta, estendeu o braço. A moça, percebendo o gesto, deixou que o marido segurasse seu braço. E assim, caminhando juntos, foram almoçar.
Em razão do término dos trabalhos de Abelardo na cidade, o rapaz comentou que no dia seguinte os dias voltariam para São Paulo.
Thereza, satisfeita com a novidade, ficou felicíssima. Cansada de ficar só na Corte, finalmente poderia voltar para casa e prosseguir com seus planos de vingança.
Decidida a retornar a região onde nascera, a moça começou a pensar em como faria para contar ao marido que tinha interesse em comprar terras na região. Determinada, passou a viagem toda pensando no estratagema que iria utilizar para convencê-lo a empreender uma longa viagem.
Temerosa de uma eventual recusa por parte do marido, Thereza achou por bem pensar bem no que iria dizer-lhe.
Cautelosa, assim o fez.
Porém, a uma certa altura, já tendo mandado um representante até a região e estando prestes a comprar uma pequena propriedade que já pertencera a família de Diego, Thereza sentiu que já era hora de contar seus planos ao marido.
Desta forma, usando de todo tato, a moça comentou que estava comprando terras na aludida região. Dizendo que proposta era irrecusável, comentou que por não ficar muito longe de São Paulo, a região era um ótimo lugar para eles descansarem.
Abelardo, que nessa época trabalhava como jornalista em um grande jornal da cidade, não gostou nem um pouco da idéia. Dizendo que ambos tinham uma vida estabelecida na cidade, não havia por que os dois mudarem seus planos. Além disso, Abelardo, que era filho de fazendeiro, cansado e desiludido com aquela vida de sofrimento e miséria, comentou que nunca mais gostaria de viver num lugar como aqueles.
Thereza, percebendo a resistência do marido, comentou que eles não precisavam morar lá. Aquele era apenas mais um investimento.
Quando Abelardo ouviu isso, perguntou a esposa por que ela não investia em propriedades na cidade.
A moça, dizendo que durante muito tempo viveu como escrava, disse que precisava voltar. Quem sabe agora, que tinha dinheiro, não conseguiria ajudar as pessoas? Perguntou.
Abelardo, reticente, respondeu que ajudar os outros não era tão fácil assim. Dizendo que somente quando se abolisse a escravidão no Brasil que os negros teriam alguma chance, ressaltou que sua luta tinha mais valia em São Paulo do que no interior da província.
Thereza no entanto, dizendo que morando em uma propriedade rural poderia fazer algo de mais efetivo, acabou por convencê-lo a adquirir a pequena propriedade.
Assim, a moça comprou a propriedade. Com isso, o mandante de Thereza ao receber autorização para comprar as terras, foi logo adverti-la sobre as condições da mesma. Decadente a propriedade não era das melhores que havia na região. Thereza ao ouvir as palavras do homem, ainda assim não desistiu da compra. Dizendo para ele fazer uma oferta menor, recomendou que ele comprasse as terras. Contudo, se não desse para comprar por um preço pequeno, que comprasse a propriedade de qualquer jeito.
Ao ouvir as palavras de Thereza, o homem bem que tentou entender seu interesse em comprar em exatamente aquelas terras. Contudo, por mais que pensasse, não conseguia encontrar uma resposta. Por esta razão, o mandante, dizendo-lhe que havia encontrado uma propriedade melhor e maior, sugeriu que ela adquirisse-a.
Thereza, percebendo que seu comportamento poderia gerar desconfianças, concordou em comprar as duas propriedades. Contudo, não podia desistir de adquirir algo que pertencera a família de seus inimigos. E assim, a moça comprou as duas propriedades.
Feliz, comemorou com vinho, sua primeira vitória.
Cleide, sua preceptora, intrigada com interesse de Thereza, foi logo lhe perguntar por que ela fazia tanta questão de adquirir uma fazenda.
Enigmática, Thereza respondeu que simplesmente gostaria de mudar de ares por algum tempo.
Cleide, sabendo que moça possuía fazendas, disse:
-- Ora Thereza! Vossa Mercê é dona de inúmeras propriedades. Mesmo assim eu nunca a vi se interessar em ir vê-las. Por que justamente agora, você se interessou por terras?
-- Muito simples! É por que somente agora eu encontrei as terras que eu há muito tempo buscava. Quanto as outras terras, engana-se se pensa que eu nunca me interessei por elas. O simples fato de eu ir poucas vezes até lá, não significa que não me interesso por terras. Isso se deve ao fato de eu ter bons administradores, vosmecê bem o sabe.
Cleide concordou. Contudo, o inesperado interesse de Thereza por terras, ainda assim, deixava-a muito intrigada.
No entanto, como a moça demorou muito para ir até lá, Cleide pensou que os ânimos dela havia se arrefecido e desistira por completo da idéia de passar algum tempo na aludida propriedade.
O que ela nem sequer imaginava é que Thereza estava planejando tudo cuidadosamente. Como queria impressionar os proprietários da região, Thereza não poupou gastos para deixar a sede das duas propriedades impecáveis.
Decidida a imprimir sua marca no local, comprou móveis e deslocou para a região a melhor mão de obra que conhecia. Procurando ajudar alguns negros, comprou escravos e por meio de seu representante, libertou-os. Em seguida, contratando-os como empregados, convenceu-os a trabalharem para ela, sem que soubessem quem era o dono das terras, em troca de uma remuneração.
Assim, foi questão de meses para que tudo estivesse pronto.
Para Cleide, Thereza havia desistido da idéia de visitar o lugar.
Nada mais equivocado.
Thereza porém, gostava de pensar que todos achavam que ela desistiria da idéia de ir até lá.
Quando então Thereza, ao saber que tudo estava pronto, resolveu voltar para lá, foi logo avisando a todos que dentro em breve viajaria até sua nova fazenda.
Ao ouvir isso Abelardo, que já havia se esquecido da história, comentou que não poderia viajar naquele momento.
Thereza ao ouvir isso, ficou desapontada, mas dizendo que já havia adiado por muito tempo sua visita a propriedade, avisou ao marido que viajaria sozinha até lá.
Abelardo ao ouvir isso, não ficou nem um pouco contente. Por diversas vezes tentou fazer a mulher desistir da idéia. Contudo, não logrou êxito em seu desiderato.
Thereza, percebendo a resistência de Abelardo a idéia de que viajasse sozinha, resolveu dizer, persuasiva, que estava indo para lá, para pôr em prática seus planos e libertar alguns escravos, como seu pai fizera antes, nas fazendas que comprara.
Ao ouvir isso, Abelardo acabou concordando.
Acompanhada de Cleide entre outros amigos, Thereza voltou a sua terra natal. Mal sabia ela que esta seria sua última grande viagem.

Luciana Celestino dos Santos
É permitida a reprodução, desde que citada a autoria.

A DEUSA NEGRA - CAPÍTULO 13

Todavia, mesmo em seus momentos mais felizes, nem por um momento se esquecera de seu passado, de sua vida como escrava, e da maldade que infligiram a seu pai e sua mãe.
Estava tão determinada a se vingar, que mesmo anos depois, ainda sentia necessidade de retornar àquele lugar. Mas seus pais, temendo pelo pior, a impediam.
Tanto que, enquanto estiveram vivos, nunca a deixaram chegar nem perto da fazenda em que vivera. Assim, desde que fugira de lá, junto com outros negros, nunca mais voltou a ver os túmulos de seus pais, que agora estavam juntos na paz eterna.
Isso magoava sobremaneira a moça.
Mas Odete e Hélio não deixavam.
Para consolá-la, diziam que era melhor assim. Se ela aparecesse por ali, poderia levantar suspeitas e os fazendeiros da região poderiam deduzir que ela era das escravas homiziadas.
Thereza não poderia correr este risco. E em respeito a seus pais de criação, não ousava desobedecer suas recomendações. Seus pais, lhe eram demasiado caros, para que assim procedesse. A moça os adorava demais.
Por isso mesmo, somente depois de suas mortes, é que Thereza decidiu-se a retornar para a região.

Vou lhes contar.
Odete, sua mãe, foi a primeira a falecer. Thereza nesta época tinha vinte e dois anos.
Logo em seguida, seu pai, Hélio, entristecido com a morte da esposa, também faleceu, em decorrência de um ataque cardíaco.
Todavia, ao contrário da esposa, sofreu um pouco em seu passamento.
Isso por que, antes de morrer, sentiu uma dor aguda no peito. Nesse instante antes morrer, apesar da dor que sentia, teve ainda tempo de pedir a filha, que não prosseguisse com a vingança, já que ela seria a maior prejudicada com tudo isso.
Porém, não conseguiu fazer com que ela desistisse da vingança.
Isso fez com que ele morresse profundamente triste. E essa tristeza, Thereza carregaria por toda a vida.
Sim, por que, por ter negado o último pedido do pai, Thereza sentiu que o magoou. Mas o sentimento de ódio era muito grande para que pudesse deixar a vingança de lado.
O que Ataúfo e sua família fizeram a seus pais, não podia ser esquecido. Isso por que, não foi somente o fazendeiro que agira mal. Seu filho Diego, também era ruim, assim como boa parte da sociedade da época.
Por isso Thereza precisava se vingar. Para mostrar a todos o quão mal fizeram a ela e aos negros ao lhe impingirem uma vida indigna, pior do que a vida de um cachorro.
Assim, com a morte do pai, afrouxaram-se os laços que a prendiam aquele lugar. Com a morte de Odete e Hélio, não havia motivos para que ela permanecesse por ali.
Um ano depois, já no Rio de Janeiro, com seu marido Abelardo, Thereza conheceu alguns dos grandes jornalistas fluminenses. Boa parte deles, lutava em prol do movimento abolicionista.
Abelardo então, estava entre seus pares. Acostumado a convivência com jornalistas, já que mesmo em São Paulo, estava envolvido em movimentos abolicionistas, o rapaz sabia perfeitamente o que esperar desses encontros. Sua intenção era levar informações para São Paulo, sobre como estava o movimento no Rio de Janeiro. Da mesma forma, ele informava os jornalistas sobre os passos dos paulistas com relação a luta contra a escravidão.
O mancebo estava tão empolgado com isso, que até se esquecia de dar um pouco de atenção a esposa, mas Thereza não se importava. Ao contrário, sempre que o marido lhe pedia para passear, já que as reuniões eram longas, a moça, insistia em ficar.
Afinal, como todos podiam perceber, ela era negra. Só que, diferente dos demais negros de sua época, tivera a oportunidade de progredir e conseguir um lugar ao sol.
Contudo ela era uma exceção, o que sempre considerou injusto. Por isso, sempre que podia, aproveitava para ouvir as discussões e aprender um pouco mais sobre o movimento abolicionista.
No entanto, algumas vezes, percebendo que algumas informações eram sigilosas, educadamente se retirava do recinto e aproveitava alguns momentos para passear.
Foi num desses passeios pelas ruas da cidade que Thereza reencontrou Rodrigo.
Todavia, foi Rodrigo quem primeiro percebeu sua presença.
Apesar de haver se passado quase dez anos desde que aquele fatídico dia acontecera, Rodrigo foi capaz, de nos traços daquela jovem mulher, reconhecer a amiga de infância.
Por isso ao ver Thereza, gritou seu nome:
-- Thereza. Thereza.
Nisso a moça virou o rosto para trás, na tentativa de encontrar o dono daquela voz. Em vão.
Por mais que olhasse, Thereza não conseguiu descobrir quem a chamava.
Mas Rodrigo não se deu por vencido. Ao ver que Thereza continuou caminhando, o rapaz acorreu em seu encontro, na tentativa de reconhecer nela a menina que não via há anos.
Todavia, ao deparar-se com Thereza, ficou espantado. A moça que conhecera anos atrás, aparentemente, não existia mais. Pelo contrário, em seu lugar, havia uma bela moça. Bela e sofisticada.
Bem vestida, nem parecia a menina assustada que vivia maltrapilha como todos os negros. Estava bem, bonita, segura. Mas também parecia triste, apesar de vida que levava.
Esta foi a primeira coisa que Rodrigo percebeu. Contudo mesmo percebendo isso, resolveu não tocar no assunto. Afinal, não queria afugentá-la.
E assim ao se encontrarem, passaram a conversar.
Foi então que a moça percebeu que apesar de adulto, Rodrigo conservava alguns traços de sua meninice. O rosto algumas vezes lembrava o garoto que conhecera na fazenda. Além disso, seu eterno otimismo com a vida, também permaneciam intactos. Sua vivacidade era mesma, nem parecia que o tempo havia passado.
Contudo, a tristeza pela morte do pai, ainda permanecia. Porém acreditava que o mesmo, apesar das maneiras tortas, conseguiu ser um bom pai. Ataúfo só não fez mais por ele, por que não sabia como. E apesar dos erros, comentou com Thereza que seu pai acertara mais do que errara com ele. Isso para ele era um conforto.
Por esta razão, Thereza, ao entrar em uma confeitaria com ele, ao ouvir suas palavras a respeito do pai, resolveu não se manifestar. Afinal para Rodrigo, a lembrança de seu pai lhe era muito cara e muito terna. Assim a moça percebeu que não tinha o direito de estragar a ilusão do jovem.
No entanto o mancebo ao perceber o silêncio da moça, ficou intrigado. Tanto que chegou a perguntar:
-- E você, senhorita? Vejo que você conseguiu prosperar. Me conte. Como tem sido a sua vida?
-- Nada de mais. Eu simplesmente encontrei quem me ajudasse. – respondeu ela, laconicamente.
-- Depois de tantos anos sumida é só isso que você tem a dizer? – perguntou o rapaz, visivelmente desapontado. – Eu ... durante todos estes anos te procurei em cada lugar por onde passei, sabia?
-- Não diga isso, por que não é verdade. Por menos que você soubesse, sabias perfeitamente que eu dificilmente estaria no Rio de Janeiro. – respondeu ela, já se preparando para beber mais um pouco de chá.
-- É verdade sim. Depois que você sumiu da fazenda, eu te procurei como um louco. Por semanas eu esperei você aparecer no quilombo, e antes disso eu te procurei pelas estradas. Te procurei tanto, que antes mesmo de vir para cá, pensei na possibilidade de te trazer junto. Mas você preferiu vir sozinha ... – respondeu ele irritado.
-- Pois saiba que não estou sozinha. Eu me casei.
-- Casou-se? – perguntou ele, decepcionado com a novidade.
-- Sim, me casei. Já faz quase dois anos. Nesse ínterim, eu também tive infelizmente, duas perdas irreparáveis. Meus pais morreram.
-- Você está se referindo a Dona Odete e Seu Hélio. Sinto muito. Lamento muito. Os dois eram pessoas maravilhosas. – respondeu ele, um pouco emocionado.
-- Eu sei. Por que você acha que eu sinto tanto a falta deles? – perguntou ela chorando. – Eles eram as únicas pessoas que eu conheci, que não mereciam morrer.
Ao ver que Thereza estava profundamente sentida com a morte dos pais, Rodrigo resolveu, tentar consolá-la. E assim, enquanto tentava de alguma forma confortá-la, descobriu que os mesmos haviam falecido há um ano atrás, praticamente juntos.
Por conta disso, não fosse o marido e os amigos dos primeiros tempos, Thereza estaria praticamente só. Mas não estava.
E apesar de todos estarem tristes pelos últimos acontecimentos, a moça contou ao amigo de infância, que todos ficaram ainda mais unidos e lhe ajudaram em tudo o que precisou.
Foi então que Rodrigo perguntou sobre todos. E Thereza contou como iam.
Também falou dos que se dispersaram, procurando seguir outro caminho.
Nisso Rodrigo contou que estava em casa de um primo distante, parente de Ataúfo e conhecido pelo rapaz. Isso por que Ataúfo em freqüentes viagens que fazia, em algumas oportunidades, aproveitou para levar o filho. Queria que o mesmo conhecesse seus parentes. E um deles era o primo Altino, que desde o começo, gostara dele. Tanto que quando tudo virou uma grande confusão, o primeiro lugar em que o rapaz pensou em ir foi para a casa do tio, para que pudesse completar os estudos. E assim, graças a ajuda de seu tio – um senhor de quase sessenta anos –, que Rodrigo conseguiu se formar advogado.
Conversando com Thereza, revelou que em pouco tempo, voltaria para a fazenda e retomaria os negócios do pai.
Agora devidamente preparado, seria mais difícil para Diego, tentar prejudicá-lo.
Nesse momento, Thereza perguntou de Ricardo.
Ao ouvir a pergunta, Rodrigo então respondeu:
-- Mesmo após muitos anos, continuamos a nos corresponder. Com isso fico sabendo das novidades.
-- É mesmo? Quer dizer então, que mesmo depois de anos, continuam mantendo contato?
-- Sim. E pelo que sei agora, Diego está ainda mais intransigente que Ataúfo. Preocupado, Ricardo não sabe mais o que fazer. Por também ter se ausentado por alguns anos, acabou deixando as fazendas de lado, e nisso Diego aproveitou para se apossar de tudo. Em razão disso, devo voltar para lá o quanto antes. Não posso mais adiar a volta. – disse pensando um pouco. Nisso, parou por um instante e emendou. – Gostaria que você voltasse também.
Thereza fingiu que não ouviu.
Com isso, continuaram entabulando conversa.
Todavia, Thereza, ao dar-se conta do adiantado das horas, já que o sol sumia no horizonte, perguntou a Rodrigo, que horas eram.
Foi então que Rodrigo lhe disse:
-- São dezessete horas.
Thereza ao ouvir isso, desculpou-se com o amigo, mas disse que precisava ir. Seu marido a estava esperando.
Assim, levantou-se da mesa, despediu-se do amigo e saiu da confeitaria.

Luciana Celestino dos Santos
É permitida a reprodução, desde que citada a autoria.

A DEUSA NEGRA - CAPÍTULO 12

Mas com o dinheiro que estavam carregando não seria difícil descobrir alguém interessado em fazer este trabalho.
No entanto, precisavam ser cautelosos.
Cautelosos por que não poderiam chamar a atenção. Cautelosos por que, por serem escravos, não sabiam de ninguém que pudesse fazer esse tipo de trabalho.
Contudo, precisavam se estabelecer em algum lugar.
Mas isso seria difícil. Em razão disso, na tentativa de conseguirem viver como pessoas livres, lembraram-se que na confusão na fazenda, boa parte dos negros estavam indo para um quilombo que ficava bem próximo de onde estavam.
Assim, ao se lembrarem disso, trataram de ir direto até o quilombo.
Ao chegarem lá, foram prontamente recebidos pelo chefe dos quilombolas que os estava esperando há muito tempo.
Mas os mesmos disseram que não iriam ficar por muito tempo ali. Isso por que, só precisavam de um tempo para se decidirem para onde iriam, e o que fariam com suas vidas.
Mesmo assim, o chefe os recebeu com toda a atenção.
Disse-lhes:
-- É uma pena que não queiram se estabelecer definitivamente por aqui, mas eu entendo. Se vocês não vieram antes, é por que tinham outros planos. Então, fiquem o tempo que quiserem.
Ao ouvirem isso, o grupo agradeceu a hospitalidade.
Com isso, aproveitando a tranqüilidade do lugar, puderam organizar melhor seus planos e decidirem para onde iriam. Contudo, como o quilombo era uma comunidade, o grupo precisava colaborar de alguma forma no trabalho. E assim, ajudaram a construir casas, cuidaram de algumas roças e conheceram de perto a organização do quilombo.
Por isso, ao terem colaborado com todos os quilombolas, Thereza, conversando com os pais, sugeriu a eles que perguntassem ao chefe se este conhecia algum falsário, alguém capaz de falsificar papéis, para que estes ao saírem de lá, não fossem importunados por brancos a procura de escravos.
Mas Odete e Hélio, estavam receosos. E se o chefe dos quilombolas não gostasse das perguntas e os expulsassem de lá?
Para Thereza, esse era um risco que deveriam correr. Assim, de tanto insistir com os pais, os mesmos acabaram concordando com tudo.
Nisso, ao ouvir a pergunta do casal, o chefe, disse-lhe que não conheciam nenhum branco que fizesse isso.
Porém, um dos negros, ao ouvir a pergunta do casal, respondeu que entre eles, havia um negro, que fugindo da polícia, conhecia muito bem os segredos de se elaborar um documento falso.
Ao ouvir isso, o chefe não ficou nem um pouco satisfeito.
No entanto, ao perceber o interesse do casal e do grupo recém chegado neste tipo de prática, não teve como impedi-los. Porém, procurou alertá-los para o perigo de andarem com documentos falsos.
Odete e Hélio, ao ouvirem as recomendações do ex-cativo, agradeceram sua preocupação mas disseram que:
-- Mais perigoso do que andar com documentos falsos, é andar sem nenhum tipo de comprovação de sermos pessoas livres. Isso por que, na primeira oportunidade em que fôssemos importunados, na mesma oportunidade descobririam nosso estado de cativos. Com isso, logo em seguida, seriamos vendidos novamente como escravos. Por isso precisamos arrumar cartas de alforria. Precisamos convencer a todos que somos libertos.
O chefe, diante destes argumentos, não teve como retrucar. Assim, acabou consentindo com a prática.
E nisso, o casal, Thereza, e mais alguns escravos que os acompanhavam, decidiram contratar os serviços do tal homem.
E este, ao saber do interesse do grupo em obter documentos falsos, questionou-lhes:
-- Por que não ficam por aqui mesmo?
Mas o grupo estava decidido a construir a vida junto com os brancos.
Contudo, a maior interessada em partir, era Thereza. Thereza foi quem tivera a idéia de que todos ali deveriam estudar e aprender as boas maneiras dos brancos.
E apesar de seus pais não concordarem muito com isso, decidiram que iriam acompanhar a filha em todos os seus passos.
Era uma questão de honra para eles. Depois de tudo o que ocorrera na vida de Thereza, o mínimo que poderiam fazer seria acompanhá-la, mesmo que fosse para vê-la desistir de seus planos.
Mas a moça estava decidida a não falhar.
E com isso, o grupo concordou em não permanecer no quilombo.
Por isso, o chefe quilombola percebendo que nada os faria desistir, tratou de autorizar a confecção o quanto antes, dos documentos que precisavam.
Dessa forma de posse dos documentos, poderiam sair dali quando quisessem.
Mas, embora estivessem prontos para partirem, decidiram ficar mais algum tempo. E assim, acabaram ficando por mais alguns dias, auxiliando os quilombolas na construção de algumas casas.
Nisso, depois de muito trabalho, Thereza conheceu Corina – a escrava que anos antes, auxiliara sua mãe em seus encontros com Rubens –, que revelou detalhes da convivência de Rosália com Ataúfo, e de sua paixão por Rubens.
Durante a conversa que teve com Thereza, Corina revelou que Rosália a ajudou a reencontrar sua família, seu filho. Assim, enquanto ela se encontrava com o amante, Corina aproveitava para ficar um pouco com sua família.
Porém, tal felicidade durou pouco.
Ataúfo, assim que descobriu a infidelidade da esposa, tratou de punir a todos que a ajudaram.
Rubens – seu pai – , foi morto e sua mãe sofreu muito em seu leito de morte. Contudo, não satisfeito com isso, apesar de não a ter castigado fisicamente, assim que descobriu que Corina ajudou Rosália, tratou de vendê-la.
Com o marido e os filhos não fez nada por que Rosália, ao comprá-los, já os havia libertado e Corina, pressentindo que o fazendeiro poderia de alguma forma, prejudicar sua família, pediu ao marido para que se afastasse da cabana em que viviam, e que fosse morar em outro lugar.
E assim seu marido fez o que pedira.
Corina no entanto, até decidir-se fugir, sofreu por anos a fio com a dureza de seu senhor, que inclemente, castigava muito os escravos.
Até decidir-se a fugir, sofreu com a ausência de sua família, sem saber seu paradeiro.
Contudo, quando decidiu-se a fugir e estabeleceu-se naquele quilombo, para sua alegria, descobriu que o marido e o filho viviam ali, já fazia muito tempo.
Apesar de não serem escravos, sem qualquer possibilidade de se manterem sozinhos, decidiram se unir aos quilombolas e com seu trabalho, ajudar no desenvolvimento do quilombo.
E assim, já viviam há por lá, quando finalmente reencontraram Corina.
A partir de então, a família nunca mais se separou. E apesar da simplicidade do lugar, todos os que ali viviam, eram felizes. Até por que, não conheciam nenhum outro lugar, onde seriam respeitados e bem tratados como eram ali.
E assim, Thereza foi apresentada a família de Corina.
Ao ver os três juntos, pôde perceber que apesar das adversidades, era uma família bastante unida. Tão unida quanto ela e seus pais de criação.
Por isso ao ver aquela família tão feliz, lembrou-se de seus pais, e do quanto seria grata por toda a vida, por tudo o que fizeram por ela. Isso por que, antes de qualquer coisa, Dona Odete e Seu Hélio, foram os únicos pais que Thereza conheceu. Foram eles que a criaram. E eram eles agora que seguiam, acompanhando seu sonho.
Por isso, lhes seria grata por toda a vida.
Foi, enquanto pensava em seus pais, que Thereza, interrompida por Corina, que descobriu que Rodrigo procurou por ela no quilombo. Estava tão interessado em encontrá-la que permaneceu ali por dias e semanas.
Durante o tempo em que ali permaneceu, perguntou se a tinham visto.
Mal podia esperar pelo momento em que novamente se encontrariam.
Debalde, enquanto esteve ali esperando, Thereza e sua família não apareceu.
Decepcionado, com o passar do tempo o mancebo decidiu partir.
Não havia razões para ali permanecer. Precisava prosseguir com sua vida. Além disso, sabia muito bem que aquele não era o lugar ideal para ficar.
Como filho de Ataúfo que era, precisava encontrar uma forma de realizar a vontade do pai. E para isso, precisava continuar com seus estudos. Por isso quando decidiu partir, sabia exatamente onde encontrar esta ajuda.
E assim partiu.
Thereza, quando descobriu isto, ficou espantada.
Afinal, não esperava que o amigo a fosse procurar.
Thereza, assim como todos os demais escravos, pensou que o amigo permaneceria ali na fazenda ajudando todos a reconstruírem tudo o que havia sido destruído. Ainda mais, por que, com Ataúfo falecido, toda a ajuda seria pouca para manter a propriedade.
Mas se foi assim como Corina lhe contara, o rapaz partiu logo que confusão acabou.
E a família estava desagregada.
Contudo Thereza, ao pensar nos filhos do fazendeiro, não se preocupou nem um pouco com sua sorte. Isso por que Ricardo e Diego possuíam parentes que certamente os acolheriam. Não estavam sozinhos como ela e Rodrigo.
Com isso, ao saber que Rodrigo estava bem, chegou a pensar que foi melhor que as coisas tivessem acontecido daquela forma. Se tivessem se encontrado, talvez ele não tivesse a mesma oportunidade de estudar.
E assim, ao final de alguns dias, o grupo partiu.
Despedindo-se todos afirmaram que nunca esqueceriam a acolhida que tiveram.
Foi então que o chefe lhes disse, que sempre que precisassem, poderiam regressar.
No que o grupo agradeceu.
Agradeceu e retomou sua caminhada mata adentro.
Agora já estavam prontos para se fixarem em alguma cidade.
E assim o fizeram.
Primeiramente se instalaram em uma pequena cidade, onde a maioria da população era composta de escravos.
Assim não chamariam tanto a atenção.
E foi nessa cidade que Thereza, seus pais e os demais escravos que os acompanharam, aprenderam as primeiras maneiras da boa convivência. Aprenderam a tomar as refeições sentados em uma mesa, a se comportarem e a se portarem como homens e mulheres livres, simples, mas livres.
Esse foi o primeiro passo em direção a vida que Thereza queria proporcionar a todos os que estavam com ela.
Porém, como precisavam se manter, continuaram a praticar assaltos em algumas estradas. Assim agiam para que pudessem reunir dinheiro suficiente para dentro de algum tempo, sair do pequeno lugarejo. Queriam ampliar seus horizontes, e assim o fizeram.
Em menos de um ano reuniram uma boa soma em dinheiro e saíram da cidade.
Com isso, passaram a viver em uma cidade um pouco maior.
Lá Thereza e todos os demais, passaram a ter aulas com uma preceptora. Esse cuidado era para que aprendessem a se comportar nas cortes e reuniões sociais. Além disso, por serem analfabetos, tiveram que ser apresentados com toda diligência e cuidado, ao mundo das letras.
Thereza – com quatorze anos há época –, era a mais aplicada aos estudos. Tanto que em alguns assuntos já dava aulas aos seus companheiros, que tinham mais dificuldade de aprendizagem, dada a idade em que se iniciaram nas letras.
Mas, a despeito das dificuldades, todos estavam realmente interessados em aprender. Para eles a leitura era porta de entrada para que pudessem conhecer mundos que eles nem sequer haviam imaginado. Um verdadeiro deleite.
Tanto que Thereza, percebendo o interesse de todos pela literatura, todos as noites lia trechos de algum livro que havia achado interessante para eles.
Odete, Hélio e os demais, gostavam tanto de ver o progresso de Thereza, que cada vez mais, as noites de leitura se estendiam por horas a fio.
Era ótimo ver a moça interessa em leitura.
Além disso, a moça tinha aulas de etiqueta todos os dias. Coisa que aliás, todos tinham que saber.
Mas Thereza, tinha pressa, por isso, as aulas eram diárias.
Sua dedicação impressionava sua própria preceptora que nunca vira nenhum de seus alunos progredir tão rapidamente.
E assim, ao longo de três anos, Thereza se dedicou com afinco aos estudos e as boas maneiras. Estava pronta para abrir suas portas à boa sociedade da época.
Porém, não contava com um detalhe, por ser negra, poucas pessoas queriam recebê-la. Decepcionada, Thereza então percebeu que apenas ser refinada, culta e elegante, não era o suficiente para se impor. Foi então que constatou pela primeira vez que precisaria de um nome para lhe abrir as portas para os grandes salões.
Nessa oportunidade então, decidiu novamente mudar-se. Agora os horizontes daquela cidade não eram mais suficientes. Até por que, para eles, aquela cidade do interior, apesar de promissora, era muito provinciana.
Assim, precisavam novamente expandir seus horizontes.
Contudo, Thereza, satisfeita com o trabalho de sua preceptora, resolveu mantê-la ao seu lado, ensinando o que mais fosse necessário. Além disso, seus companheiros ainda precisavam de seus ensinamentos. Apesar de já adaptados a vida na cidade, refinamento nunca era demais.
E assim Thereza, fez questão de que continuassem a ser ensinados pela preceptora.
Nisso ao chegar em São Paulo, Capital da Província, Thereza optou por ter empregados negros para cuidar de sua casa. Porém, ao adquirir os cativos, tratou logo de providenciar-lhes a liberdade. Não queria escravos trabalhando em sua nova casa.
Tal fato causou espanto em toda a sociedade escravocrata da época.
Mas Thereza não se intimidou. Odete e Hélio, ao verem a nobre atitude da filha, elogiaram o gesto.
Orgulhosos, perceberam então, que criaram muito bem a filha.
Thereza, mesmo com todos aqueles bons modos de branca que adquirira devido a convivência com sua preceptora, ainda assim seria uma dama por ter um coração nobre.
Isso era reconfortante para seus pais.
E com isso a própria preceptora, Dona Cleide, teve que concordar.
Esse foi o que também a estimulou a permanecer com a família. Isso por que, desde o primeiro instante em que os vira, percebeu que apesar de sua origem humilde, eram pessoas de muito valor. Além disso, ela própria tivera que muito lutar para obter a educação esmerada que teve.
Afinal, filha de brancos pobres, não possuía dinheiro para estudar. Assim, não fosse a generosa ajuda de um nobre da cidade em que morava, nunca teria chegado onde chegou. Por isso, sabia aceitar com tolerância a diferença. Isso por que, sempre conviveu bem com a família e seus agregados.
Além disso, com o passar dos anos, a convivência deixou de ser simplesmente profissional para se transmudar em uma relação de admiração e respeito. Thereza, com sua humildade e transparência, mostrou seu valor.
Com isso Cleide se tornou uma amiga.
Tão amiga que passou a ser considerada como parte da família. E assim, conforme os anos foram se seguindo, Cleide, apesar de não ter mais função como preceptora, continuou a viver com a família como agregada.
Com isso, quando Thereza se casasse, poderia ensinar seus filhos teriam sobre os mistérios do conhecimento.
A propósito. Thereza, agora com dezenove anos, já estava inserida nos melhores círculos sociais. Considerada uma mulher culta, passou a se dedicar a poesia e assim, passou a frequentar os círculos literários da época.
Ademais, apoiada por negros influentes na província, passou a também ter destaque, na vida social do lugar.
Porém, como havia o preconceito da época, nem todos a aceitavam.
Por sua condição de negra e mulher, era constantemente discriminada pela sociedade branca da época.
Mas apesar disso, Thereza já dera um grande passo.
Afinal, não era mais desconhecida e apesar do racismo, muitos brancos a respeitavam. Além disso, quando optou por viver com sua família em São Paulo, estava realmente decidida a mudar seu estilo de vida.
Thereza queria freqüentar os grandes salões, nem que para isso, precisasse ela mesma bancar uma festa.
Seu pais, Dona Odete e Seu Hélio, estavam deveras preocupados com o comportamento da filha, mas nada a impediria de assim proceder, se isso fosse realmente necessário. Até por que, dinheiro a família nesta época, já tinha em abundância. Tinham tanto dinheiro que Thereza decidiu então parar com as práticas criminosas.
Sim, por que como já foi narrado, a moça, juntamente com seus amigos, aproveitavam a precariedade das estradas, para assaltarem os transeuntes e levarem seus pertences. Foi assim que Thereza e seus amigos fizeram fortuna.
Além disso, sempre se preocuparam em investir o dinheiro.
Com isso, conforme iam aprendendo a lidar com o dinheiro e descobrindo o que ele lhes poderia proporcionar, passaram com o passar dos anos, a investirem em terras e propriedades.
No entanto, uma boa porcentagem de dinheiro fora depositada em bancos, para que pudesse render, e proporcionar o bom padrão de vida que todos tinham.
Os amigos de Thereza, assim como sua família, colaboravam nas despesas da casa em que viviam.
Além disso, aproveitando as boas orientações de Dona Cleide, passaram a investir em negócios. Interessados em exportarem café, adquiriram inúmeras fazendas na região interiorana da província.
Ademais, possuíam, assim como a família de Thereza, negócios na Capital.
Thereza também, diligente com seu dinheiro e o de sua família, aproveitou para investir em casas – que passou a alugar –, e terras. Vaidosa, também investiu em jóias e em títulos da dívida pública.
Todavia, ainda não tinha conseguido alcançar seu maior objetivo que era o de adquirir a fazenda em que vivera como escrava. Mesmo utilizando-se de intermediários, nunca conseguiu lograr êxito nas negociações.
Mesmo estando a família em crise, pois precisavam vender a fazenda para amealharem dinheiro para manterem as demais propriedades que tinham, Thereza, infelizmente, não conseguiu comprar a fazenda.
Isso por que, Diego, obstinado, não admitiria nunca perder as terras nas quais crescera. Mesmo passando por problemas financeiros, jamais venderia suas terras. Dizia ele, que para tomarem a sua fazenda, primeiramente teriam que matá-lo.
E assim, o rapaz vendia tudo o que tinham. A fazenda contudo, segundo ele, continuaria pertencendo a família.
Todavia, os pais de Thereza continuavam estavam preocupados com sua obsessão. Afinal de contas, tudo aquilo era passado. Então, para que se incomodar com aquilo agora? Para que criar problemas, agora que tudo estava indo tão bem?
Até mesmo na vida amorosa, Thereza parecia estar se encaminhando para um enlace.
Um proeminente negro, poeta e literato, filho bastardo de um ilustre barão de café, estava deveras interessado na moça. Mas Thereza estava obcecada com a idéia de humilhar seus inimigos. Tão obcecada que nem reparou quando, em um dos saraus em que esteve presente, um jovem negro passou a lhe dirigir olhares.
Porém, o rapaz era insistente. Assim, conforme o tempo foi passando, o mesmo acabou conseguindo fazer com que a moça se convencesse de que a união dos poderia ser uma grande realização.
Abolicionista, em freqüentes conversas com a moça, lhe confidenciou seus propósitos. Tanto que algum tempo depois, passou a integrar um movimento abolicionista.
Isso fascinou Thereza.
E assim, depois de dois anos, Thereza acabou se casando com Abelardo.

Luciana Celestino dos Santos
É permitida a reprodução, desde que citada a autoria.

A DEUSA NEGRA - CAPÍTULO 11

Com isso, talvez tentando reparar os anos de desprezo que Thereza teve que suportar, levaram a moça até onde o fazendeiro pudesse vê-la.
Procedendo dessa forma, queriam mostrar ao fazendeiro que ele nunca mais poderia dispor de sua vida como bem entendesse.
O fazendeiro, então, talvez pressentindo que algo de errado poderia acontecer, ao ver a moça, objeto de seu ódio à sua frente, pediu-lhe que ouvisse mais uma vez.
A última, por sinal.
Ao ouvir isso, Thereza resistiu a idéia.
Mas o fazendeiro insistiu. E insistindo faria tudo o que fosse preciso para convencê-la a ouvi-lo.
Diante disso, não restou a moça senão ouvi-lo, mais uma vez.
Os escravos no entanto, preocupados com o estado da moça, alertaram o fazendeiro de que deveria ter cuidado com o que ía dizer, ou fatalmente iria se arrepender.
E diante deste aviso, conversou com a moça.
Convidando-a para entrar, o fazendeiro pediu licença aos escravos para levá-la para dentro de sua casa.
Mas os mesmos estavam reticentes.
Contudo o impasse foi resolvido quando uma das escravas sugeriu aos seus companheiros que concordassem, desde que dois deles entrassem juntos na casa, devidamente armados.
Ataúfo aquiesceu, concordando.
E ao entrarem na casa, os escravos guardaram uma certa distância dos dois. Porém, não estavam longe o suficiente para atirarem se fosse o caso.
Nisso, Ataúfo relatou detalhes dos anos de matrimônio com Rosália à moça. Contou-lhe que o casamento ía mal nos últimos anos da vida de Rosália. Tanto que ambos arrumaram amantes e tiveram filhos fora do casamento.
Com isso o fazendeiro contou detalhes da vida da esposa, seus últimos momentos, e seu desespero para salvar Thereza.
Contou tudo, não omitiu nenhum detalhe.
Thereza ouviu tudo calada.
Porém ao ouvir cada uma das palavras do fazendeiro, ficava mais e mais desalentada.
Contudo, ao ouvir o que Ataúfo queria lhe contar, descobriu que sua mãe queria que a criança vivesse, pouco se importando com que iria acontecer a ela. Isso a fez se interessar pela mãe, tanto que pediu para ver seu túmulo.
Ataúfo então, compadecido do sofrimento de Thereza, resolveu atender ao seu pedido.
E assim a levou até perto do bosque onde sua mãe estava enterrada.
Acompanhando-a, estavam seus pais de criação, que faziam questão de segui-la em todos os seus passos.
Entristecidos com o sofrimento da filha, queriam confortá-la, consolá-la.
Mas infelizmente, neste momento nada podiam fazer. Porém, não queriam deixá-la só.
Thereza então, ao ver a cruz no túmulo, percebeu que a mãe havia sido ali enterrada para que ninguém descobrisse onde estava.
Contudo, apesar das circunstâncias, aproveitou todos os minutos em que esteve defronte a seu túmulo, para rezar, e conversar um pouco com ela. A se ver diante da última morada de sua mãe passou a conversar com ela, como se a mesma estivesse ali presente.
Emocionada não pode conter as lágrimas.
Neste instante seus pais de criação, a consolaram.
Após, curiosa para saber onde o pai havia sido enterrado, pediu para ver também o seu túmulo.
Novamente a emoção e as lágrimas queimaram seu rosto.
Emocionada com a história de amor dos pais, sentia-se entristecida por saber o quanto sofreram muito em seus últimos momentos.
Sua mãe ao vê-la tão emocionada, pediu que a levassem para perto da sede.
Assim, novamente voltaram para a sede.
Ataúfo, ofereceu então sua casa para que a moça repousasse um pouco. Mas Thereza recusou o oferecimento.
Assim, o fazendeiro, acompanhado de dois escravos armados, entrou novamente em casa e relatou aos filhos, – que ficaram na casa como reféns – e não sabiam o que estava acontecendo, que os escravos haviam tomado conta da fazenda.
Diego então, tentou enfrentar os escravos, mas Ataúfo receoso de que pudessem atirar, pediu ao filho que se acalmasse.
Rodrigo então, preocupado com Thereza, perguntou aos escravos, como ela estava.
Ao ouvir que a moça estava bem, tranqüilizou-se. Porém, preocupado com seu pai, tentou dialogar com os escravos, para que estes voltassem ao trabalho. Tentando uma negociação, argumentou que ambas as partes poderiam chegar a um acordo.
Mas os negros não queriam saber de conversa.
E assim, as negociações encerraram-se antes mesmo de começarem.
E o clima ficou mais tenso.
Ao contrário do que imaginara, Ataúfo não conseguiu convencer os escravos a retornar ao trabalho.
Estes, prevenidos com relação ao fazendeiro, não quiseram saber de conversas e de promessas. Estavam decididos a se vingarem pelos anos de martírio nas mãos do cruel latifundiário. Não acreditavam em suas palavras. Para eles, o fazendeiro só estavam sendo gentil agora, por que não tinha como fazer valer a sua força.
Rodrigo então, vendo que tudo poderia terminar muito mal, resolveu intervir.
Preocupado com o que poderia vir a acontecer com a Ataúfo, tentou oferecer ajuda aos escravos.
Mas os cativos não estavam interessados em sua oferta.
Enfurecidos, resolveram incendiar a senzala e todas as demais construções da fazenda.
Ao ouvir isso, Ataúfo ficou furioso.
-- Vocês estão loucos? Jamais vou permitir que incendeiem minha fazenda. Sumam daqui. Podem ir embora, mais deixem tudo como está.
Os negros que estavam reunidos na sala da sede começaram a rir.
Afinal, quem era ele, para naquele momento, impedir alguma coisa?
Ataúfo não era nada. Neste momento não passava de uma triste figura apenas.
Por isso seus três filhos, ao presenciarem tão triste momento, insistiram para que ele deixasse os negros fazerem o que quisesse. Isso por que, o melhor era que fossem embora o quanto antes.
E aqueles negros estavam sequiosos de vingança. Assim, não era bom enfrentá-los.
Mas Ataúfo era teimoso e por esta razão, lutou até o fim, para a preservação de sua propriedade. A fazenda fruto de longos anos de trabalho – nas mãos de seu pai, Seu Valério, e depois nas suas –, não poderia jamais ser destruída. Aquele enorme pedaço de terra era parte de sua vida, e destruir tudo aquilo, era como destruí-lo também. Os negros sabiam disso.
Por isso decidiram acabar com tudo.
Porém, queriam que o mesmo estivesse vivo para poder presenciar a destruição.
E assim o fizeram.
Tudo saiu conforme o planejado.
Ataúfo, ao perceber as casas dos agregados e a senzala ardendo em chamas, começou a gritar dizendo que os negros estavam proibidos de incendiar a sede.
Mas eles eram mais fortes e em maior número, assim, a família não teve com impedir que a destruição acontecesse.
E a família foi retirada da casa.
Contudo, como um gesto de generosidade, os cativos deixaram que todos pegassem alguns de seus pertences, e os levassem para fora da casa.
Com isso, depois de serem colocados para fora, os negros continuaram o intento diabólico.
E assim, colocaram fogo na casa.
Ataúfo ao ver a casa sendo devorada pelas chamas, enlouqueceu.
Desesperado, só conseguia gritar que tudo aquilo era um despropósito, que não acreditava que tudo aquilo estava acontecendo, e que não era justo.
A certa altura ao ver tudo em volto em meio as chamas, implorou aos escravos para que parassem com aquilo.
Mas já era tarde. A casa já estava toda destruída.
Ao dar-se conta de o seu sonho, e o sonho de seu pai fora destruído, tomado por um profundo ódio pelos negros, resolveu investir contra um deles.
Contudo, ao enfrentar o negro, acabou se machucando. O negro, além de ser mais forte, era muito mais jovem que o fazendeiro, e acostumado com a dura lida do campo, sabia como ninguém, se defender de certas agressões.
E foi assim, que conseguiu dar uma surra em Ataúfo.
Ricardo e Rodrigo ao verem a surra, tentaram conter o pai, para impedir que este apanhasse mais.
Mas Ataúfo insistiu em brigar.
Enraivecido pela perda dos escravos e o incêndio que destruiu a morada da família, Ataúfo desejava se vingar de todos aqueles negros.
Assim, para concretizar seu desejo, resolveu tirar, com o cuidado, uma arma que havia guardado entre seus pertences.
E iria atirar em algum deles, não fosse o fato de alguém ter visto o fazendeiro armado e avisado aos negros que estavam próximos dele.
Foi o necessário, para que um dos negros armados atirasse no fazendeiro, atingindo-o em cheio.
O fazendeiro fora baleado.
Diego, Ricardo, – filhos legítimos de Ataúfo – e Rodrigo, então, desesperados, começaram a gritar com ele. Queriam que ele respondesse e dissesse que estava tudo bem.
Mas não estava. Ataúfo no entanto, ao perceber o desespero dos filhos, pediu a eles que cuidassem da fazenda. Um sonho lindo como aquele, não podia ser abandonado.
Porém, ao ver o rosto molhado de Rodrigo, disse-lhe:
-- Me perdoe, por não ter sido um bom pai.
Foram suas últimas palavras. Em seguida morreu.
Rodrigo, ao perceber isso, ficou desesperado. Ricardo também.
Diego, apesar de visivelmente abalado, não demonstrou desespero. Contudo, ao ver os negros em volta do corpo do pai, ordenou a todos que se afastassem. Era indignos de viverem naquelas terras, e indignos de permanecerem ali. Por isso, gritou para que todos saíssem de lá.
Mas os negros, não obedeciam.
Porém, alguns deles, aproveitando a confusão, resolveram sair dali.
Rodrigo então, percebendo que não teria como continuar vivendo ali com Diego e Ricardo, resolveu se despedir.
Ricardo ao ver-se sozinho, pediu ao irmão e amigo que não fosse embora.
Mas Rodrigo disse que tinha que ir. Afinal, sem a proteção de Ataúfo, sabia que Diego lhe criaria embaraços.
Foi então que Ricardo lhe disse que ele era herdeiro de seu pai.
Mas Rodrigo sabia que ainda assim, se ali ficasse, fatalmente Diego descobriria uma forma de tirá-lo do testamento. Assim, precisava partir. Contudo, prometeu que um dia voltaria. Além disso, prometeu a Ricardo, manter contato.
E assim o faria, nos anos que se seguiriam.
Naquele momento no entanto, prometeu apenas, que iria embora em busca de uma outra possibilidade de vida. Mas que nem por isso, os laços que uniam os dois estavam desfeitos.
Tanto que chegou a convidar Ricardo para acompanhá-lo.
Mas Ricardo sabia que precisava ficar com o irmão. E assim, não pôde ir com Rodrigo.
-- Sentirei saudades. – disse Ricardo.
Esta foi a despedida dos irmãos.
Com isso, ao ver os negros festejando na fazenda a morte de Ataúfo, procurou por Thereza.
Intranqüilo, depois de muito procurá-la, temeu que ela houvesse partido.
Angustiado com esta possibilidade, começou a correr em direção a estrada. Agindo assim, acreditava que se ela estivesse na estrada, acabaria a encontrando.
Porém, não foi isso o que acabou acontecendo.
Ao abandonar a fazenda, embora muito tivesse procurado, não conseguiu nem chegar perto de Thereza.
A moça havia desaparecido.
Com isso cada vez mais desesperado, não sabia o que fazer.
Como encontrá-la? A cada dia que passava ficava cada vez mais difícil.
E assim, conforme os dias, as semanas, os meses e os anos se passaram, já vivendo na Capital da Corte, acabou por desistir de procurá-la.
Desanimado, acreditou que nunca mais a encontraria.
Por isso acabou desistindo da procura.

Assim, enquanto o mancebo, com a ajuda de um nobre generoso se preparava para a vida na Corte, Thereza, lutava a cada dia por sua sobrevivência.
Depois que fugira da fazenda, juntamente com outros escravos em direção a liberdade, passou fome e necessidade.
Tanta que chegou até a roubar.
Certa vez, já cansada de muito caminhar pelas matas com seus companheiros, ao perceber a aproximação de uma carruagem, resolveu assaltá-los.
E assim o fez.
Com a ajuda de alguns negros, Thereza, se escondeu atrás de uma árvore e utilizando-se de pedras que começaram a atirar na carruagem, conseguiram fazer com que o condutor parasse.
Desta forma, armados de pedaços de paus e pedras, roubaram tudo de valor que o casal de aristocratas carregava. Roupas, sapatos, jóias, dinheiro.
Depois de roubá-los, Thereza então, juntamente com mais dois escravos levou o casal e o cocheiro para longe da estrada, em direção oposta a que estavam indo. E assim, abandonaram as vítimas, amarradas, em meio a um descampado.
Desta forma, levaria muito tempo para que alguém os encontrasse.
Isso ajudaria os mesmos a ganhar tempo para saírem de onde estavam.
E por conta disso, demoraram a retornar.
Contudo, antes de assim procederem, dividiram o produto do roubo entre si.
Quando retornaram ao local de onde saíram para o assalto, Thereza e seus amigos combinaram de rumar para outras paragens. Isso por que, se ali ficassem, fatalmente seriam pegos.
Não podiam arriscar portanto.
E assim procederam.
Embrenhados no mato, caminharam por horas a fio, a noite ainda, para se distanciarem do local em que estavam e assim, não serem capturados. Muito embora as vítimas tenham sido colocadas bem longe de qualquer estrada, não podiam contar com a sorte, e assim, resolveram sumir.
Com isso, depois de caminhar durante toda a madrugada pela mata, acabaram chegando até uma estalagem.
Ao ver isso, um dos negros, reclamando do cansaço da caminhada, sugeriu que os mesmos ali parassem.
Mas Thereza temia que se ali parassem, por serem negros, estarem todos juntos, acabariam por chamar a atenção, e por isso, resolveu que os mesmos deveriam continuar caminhando em direção a uma paragem mais distante.
No entanto alguns dos negros começaram a reclamar.
Thereza então, resolveu adverti-los da possibilidade de o casal já ter sido encontrado e a polícia da região já estar no encalço deles.
Ercílio no entanto – um dos negros que queria ficar na estalagem –, não concordava. Afinal, se já poderiam estar procurando por eles, continuar embrenhado na mata não ajudaria em nada.
Thereza ao ouvir isso concordou, porém, tentando contornar a situação, pediu aos mesmos para que continuassem caminhando mais um pouco.
Isso por que, estava temerosa. Depois de tudo o que passara, não queria mais ser cativa. Por isso, se precisasse caminhar mais um pouco, o faria sem problemas. Contudo, jamais se arriscaria, se expondo publicamente. Ainda mais sabendo que todos eles estavam sendo procurados. Se não pelo casal assaltado, pela família de Ataúfo, que havia perdido os escravos na confusão do incêndio da fazenda.
Com isso, Thereza achava muito perigoso aparecerem assim.
Mas Ercílio não queria saber de desculpas. Estava decido a ficar, e assim o fez. Junto com ele, outros negros seguiram.
Thereza, porém, decidiu continuar caminhando. No entanto, não ficou sozinha. Seus pais de criação, e mais alguns companheiros permaneceram juntos com ela.
E assim, Thereza, sua família e seus amigos continuaram a caminhada.
Porém, temendo que Ercílio fosse pego, e sabendo que se algo assim ocorresse, não haveria tempo para fugir, resolveram então se esconder.
E nos altos das árvores encontraram o lugar ideal para se esconderem.
Contudo, como fariam para levar os objetos que adquiriram com o roubo?
Não sabiam o que fazer. Por isso, quando um deles sugeriu que enterrassem os objetos, todos concordaram. E assim foi feito.
Enterram roupas sapatos, jóias e dinheiro e aguardaram o dia seguinte para continuarem a caminhar pelas matas.
E caminharam ainda por muitos dias.
Nisso, novamente uma carruagem se aproxima na estrada.
Novamente os negros se mobilizam para assaltar.
Com isso, ao pegarem todos os objetos de valor, Thereza e seus companheiros, amarrando os aristocratas, colocam os mesmos de novo na carruagem e os levam para uma paragem dista dali. Em um caminho oposto ao que faziam.
Novamente levam horas para voltar onde os demais companheiros estavam.
Mais uma vez precisavam continuar se embrenhando e se escondendo pela mata, para não serem pegos.
Desta forma, visando amealhar dinheiro para uma nova vida, Thereza e seus companheiros, resolveram se tornar assaltantes.
Afinal, precisavam de dinheiro.
E com os freqüentes assaltos que realizavam, estavam conseguindo reunir uma bela quantia em dinheiro.
Porém ao final de semanas embrenhados nas matas, decidiram parar um pouco com os assaltos e decidirem para saber qual seria o melhor lugar para se estabelecerem.
Uma difícil decisão.
Isso por que, precisavam ir para um lugar onde ninguém os procuraria. Um lugar onde as pessoas não desconfiassem que eram escravos. Um lugar onde certamente não seriam indagados sobre suas origens.
Contudo, tal lugar não existia, por isso, inicialmente, para não levantarem suspeitas, os pais de Thereza sugeriram a todos para primeiramente, arranjarem uma carta de alforria. Mesmo falsa, ela os ajudaria a evitar problemas mais tarde.
Todos concordaram. Porém, onde poderiam encontrar alguém que redigisse esses documentos com tanta fidelidade que parecesse um documento verdadeiro?
Esta era uma pergunta realmente difícil de ser respondida.

Luciana Celestino dos Santos
É permitida a reprodução, desde que citada a autoria.

A DEUSA NEGRA - CAPÍTULO 10

Sem saída, não restou outra alternativa ao fazendeiro senão confessar toda a história ao filho. Porém, não queria conversar com o filho na frente de todos os presentes.
Mas Rodrigo, revoltado com tudo o que estava acontecendo, insistiu em dizer que não sairia dali, sem a presença de Thereza.
Ataúfo ao ouvir as condições impostas pelo filho, ficou mais irritado. Alegando que se tratava de um assunto reservado, disse que não poderia contar sua história na frente de todos.
Rodrigo no entanto, insistia em dizer que não sairia dali sem a companhia de Thereza.
Foi então que irritado, o fazendeiro começou a falar:
-- Pois então que seja dito, e que o assunto fique por aqui mesmo... Sim eu errei. Eu tive um relacionamento com uma escrava. Você meu filho, é fruto dessa relação.
-- Relacionamento que o senhor teve com minha mãe, enquanto esteve casado sua mulher.
-- Sim. Eu já era casado. E como você já sabe, também já tinha os meus dois filhos. – respondeu Ataúfo, ao olhar penalizado para os filhos Diego e Ricardo.
Os dois ao ouvirem o pai confessar a traição, ficaram desapontados.
Mas perplexos, não sabiam o que falar. Tanto que só faziam ouvir o relato.
E assim, Ataúfo continuou a falar.
Contou que, aborrecido com a esposa, por esta dedicar maior atenção aos filhos do que a ele, sentiu-se negligenciado.
Insatisfeito com a pouca atenção que recebia da esposa, constantemente reclamava com ela sobre os cuidados excessivos que vinha dedicando aos filhos. Para ele, isso não era saudável. Mas eram ciúmes. Ciúmes de ver que seus filhos eram a principal preocupação de Rosália.
Foi por isso, unicamente por esta razão, que ele sentiu-se atraído por uma bela escrava que trabalhava na fazenda. Bonita como poucas, não havia negro que não olhasse para ela.
Conforme o tempo foi passando, esta bela negra passou a trabalhar na sede, junto a outros escravos, como Corina, que era de toda a confiança.
Assim, estando tão próximo da escrava, vendo-a todos os dias lhe servir o café, pôr as refeições na mesa ... Passou a cada vez mais se interessar pela moça.
A cabrocha, com seu jeito sestroso, conquistava cada dia mais, seu senhor.
Tanto que certa vez, não agüentando mais só a ter por perto, decidiu se aproximar, para ao menos conversar com ela.
Porém, ao contrário do que imaginara, a moça não lhe foi receptiva na primeira tentativa. Ao contrário, ele como senhor e dono de todos os escravos, ainda assim teve que insistir muito para conseguir que ela ao menos lhe sorrisse.
Mas enfim, com muita insistência, paciência, – isso por que não queria intimidá-la com seu poder de mando. Queria que a escrava se aproximasse, sem que para tanto, precisasse constrangê-la. E tanto fez que acabou conseguindo, sem que para isso, precisasse usar de força.
E assim a moça se tornou sua amante.
Sim, por que apesar de muito amar sua esposa, não agüentava mais ser posto de lado. Sua preferência pelos filhos a cada dia que passava se tornava mais óbvia. Tanto que nem mesmo quando ele queria se aproximar dos filhos, conseguia, – a sombra de Rosália não o deixava se entender com os filhos, segundo suas palavras.
Mas uma escrava, ofendida com as palavras do fazendeiro, gritou:
-- É mentira. O senhor nunca se interessou pelos meninos. Tanto que quem cuidava deles era mesmo Dona Rosália.
O fazendeiro irritado, ordenou a escrava que se calasse.
E a negra silenciou.
Nisso Ataúfo continuou seu relato.
Foi então que reconheceu que não tinha mesmo muito jeito com os meninos. Porém, com a ausência da mãe que morrera ainda muito jovem devido complicações em decorrência de problemas de saúde, o mesmo tivera que tomar para si, a responsabilidade de criá-los.
Com isso, comentou orgulhoso, que achava que havia feito um bom trabalho.
Apesar de não ser o pai que talvez seus filhos quisessem, sentia que tinha cumprido com competência sua função. Mesmo com Rodrigo, apesar de ter sido um pai ausente em seus primeiros anos de vida, com a morte da ex-amante, chamou para para si a responsabilidade de cuidar do garoto.
Logo, assim que soube da morte da amante e do pai adotivo do garoto, procurou trazê-lo para a fazenda.
Nisso Rodrigo, sem entender por que sua mãe havia ido parar naquela fazenda, perguntou ao fazendeiro por que o mesmo vendera sua mãe.
Foi então que ele comentou:
-- Meu filho. Não me censures. Não sabes o que aconteceu para que eu assim procedesse. Eu vendi você e sua família, por que eu não tive escolha. Com o escândalo do relacionamento extra-conjugal, eu não poderia manter vocês dois vivendo aqui. Por isso eu incumbi Jacinto de cuidar dos dois, como se fosse um verdadeiro pai. Eu não podia deixar que descobrissem que eu tinha um filho espúrio. Não depois do que Rosália fez. – confessou envergonhado.
-- Então eu sou filho de sua vergonha. – comentou Rodrigo desolado.
-- Quem diria, heim? Quem poderia imaginar que o senhor era um imoral. Um depravado. – disse Diego, reprovando severamente a conduta de seu pai. – E pior, ainda nos culpa por suas prevaricações.
Ataúfo, ao ouvir as desrespeitosas palavras do filho, gritou:
-- Me respeite. Eu não sou um moleque. Veja bem como fala comigo. Eu ainda sou teu pai. Exijo respeito.
-- Respeito. E desde quando alguém que faz o que o senhor fez, merece respeito? – pergunto Diego.
Ataúfo, então, desmoralizado, furioso com a atitude de seu filho, aproveitando que o mesmo estava próximo dele, e o esbofeteou.
O soco foi tão forte que o rapaz que caiu no chão.
Os escravos ficaram espantados. Afinal, Ataúfo bater em seu filho mais velho era algo impensável. Mas, o que nunca haviam imaginado estava acontecendo na frente de todos.
Diego havia apanhado de seu pai. O rapaz, porém, ao ver-se humilhado na frente de todos, proferiu algumas palavras, as últimas contra seu pai:
-- Pois saiba senhor meu pai. Está será a última vez que o senhor encostará o dedo em mim. Nunca mais o senhor irá levantar sua mão para mim. Está ouvindo? Seu imoral hipócrita. Eu não te respeito mais. Nunca mais eu vou te respeitar. – disse logo depois de se levantar, para em seguida, sair dali.
O escravos, que estava acompanhando tudo de perto, ficaram ainda mais assombrados.
A vida naquela fazenda nunca mais seria a mesma. Diante da confusão armada, tudo estava ficando muito confuso.
Rodrigo então, tentando entender a atitude de Ataúfo, perguntou então:
-- Do que o senhor está falando. Por acaso Rosália lhe foi infiel?
-- Sim. E infelizmente eu tive de puni-la. Primeiramente, matei seu amante, depois me livrei de sua filha.
-- Quer dizer então, que Rosália também teve uma filha ilegítima?
-- Teve. Uma bastarda. Uma maldita criança que só serviu para me humilhar. Sim, ela conseguiu me humilhar. Não bastasse seu desprezo, eu ainda tive que passar por isso ... Agora entende por que eu tive que vendê-lo. Com o escândalo, se eu os mantivesse na fazenda, isso não seria nada bom. Para nenhum de nós. Além disso, procurei vendê-los para alguém que sabia iria tratá-los bem.
-- Como escravos. Mas segundo o senhor, tratava-nos muito bem.
-- Não fales assim comigo. Eu sempre tentei te proteger. Se falhei me perdoe. Porém, saiba que fiz mais do que muitos pais fariam.
-- E isso ameniza suas omissões. – respondeu Rodrigo ironicamente.
-- Meu filho, eu sei que isso não resolve nem apaga todas mágoas. Mas me perdoe, eu não quero ter de conviver com seu ódio. O seu ódio não. – disse Ataúfo, em tom de súplica.
Foi então que Rodrigo perguntou sobre o fim que ele havia dado a criança.
Ao ouvir isso, Ataúfo tentou o quanto pôde, fugir da resposta. Mas Rodrigo insistiu, queria por que queria saber o que havia sucedido a criança.
Assim, sem ter como escapar das explicações o fazendeiro então disse:
-- Pois bem. A menina que causou toda a minha desgraça ainda vive. Está nesta fazenda. Diante de todos vocês. Inclusive você, meu filho, para minha tristeza, é um grande amigo dela.
Todos os presentes se espantaram.
Rodrigo mais ainda. Tanto que chegou a perguntar:
-- Thereza?
-- Sim. Esta maldita. – respondeu rispidamente o fazendeiro.
Thereza que até então, amarrada ao tronco, ouvia tudo calada, perguntou ao fazendeiro:
-- Quer dizer então, que é por isso que me odeia tanto? É por isso que todos me olham com desconfiança? É por isso? – perguntou ela desesperada.
No que Ataúfo respondeu:
-- Sim. É por isso. Você é a personificação de minha vergonha e de minha família. Eu não a suporto. – respondeu irado.
-- Então meus pais, não são os meus pais verdadeiros?
-- Não. Eu que arrumei esta família para você. Para que sua origem não levantasse suspeitas.
-- E se minha presença lhe era insuportável, por que deixou que eu permanecesse por aqui? Por que não me vendeu como fez a teu filho? – perguntou ela, visivelmente angustiada com a possível resposta.
-- Por que eu precisava me vingar de Rosália. Eu precisava me vingar da mulher que me traiu. E você me viabilizaria isso. Por esta razão eu fui seu carrasco durante todos esses anos. Por que eu não a suporto.
-- E o que o senhor fizeste a ela, não foi o suficiente? – perguntou Thereza já quase chorando.
-- E o que eu fiz a ela? Ela morreu por sua culpa. Eu não a matei. – respondeu secamente.
Thereza então, percebendo-se ainda amarrada ao tronco, começou a gritar que queria ser solta. Desesperada, se debatia, tentando se soltar inutilmente das correntes que a prendiam ao tronco.
Nisso Ricardo, que até então ouvira tudo calado, atordoado com as revelações de Ataúfo, mas percebendo o desespero de Thereza, acorreu em sua direção e mandou o feitor soltá-la.
Porém, ao ver que o mesmo não a soltaria enquanto não recebesse uma ordem de Ataúfo, Ricardo, tomado de fúria, resolveu tomar para si as chaves das correntes que a prendiam e soltou-a.
Thereza, horrorizada com a história, não sabia como agir. Ao ser solta, ficou imóvel por alguns instantes. Após, saiu correndo em desabalada carreira em direção aos cafezais.
Ataúfo, constrangido, também não sabia o que fazer. Porém, ao ver a moça fugindo, ordenou ao feitor que partisse em seu encalço. Não queria que fugisse.
Rodrigo, perplexo, ao ouvir as ordens de seu pai, saiu a correr em desabalada carreira em direção a sede.
O fazendeiro então, ordenou aos feitores e demais empregados da fazenda, que levasse os escravos de volta para a senzala.
Depois, voltou para casa.
Porém, ao pedir a Ricardo que o acompanhasse, o mesmo se recusou, e assim como Rodrigo, saiu dali em disparada. Estava desapontado com seu pai. Apesar de sempre saber que não era muito estimado por este, nunca imaginara em sua vida que ele seria capaz de ter atitudes tão cruéis.
Assim, ao saber de tantas revelações decidiu que queria ficar só. E assim o fez.
Nisso quando Ataúfo finalmente pôs os pés na sede, descobriu que seus dois filhos haviam brigado.
Diego revoltado com a descoberta, resolvera descontar toda a sua raiva em cima de Rodrigo, que por sua vez, não deixou por menos. A cada provocação, o revide vinha na mesma intensidade. Por conta disso, os dois acabaram chegando as vias de fato.
Brigaram de rolar no chão, comentou uma das escravas que permaneceu na sede cuidando da casa.
Horrorizada com a briga, a escrava, com a ajuda de dois negros, apartou a confusão.
Ataúfo ao ouvir o relato da escrava, ficou desolado.
Seu maior temor estava se concretizando, sua família estava mais uma vez se desagregando. Desalentado, temia que seus três filhos resolvessem partir.
Por isso, ao pensar nessa possibilidade, resolveu que faria todo o possível para impedir que isto acontecesse.
Em razão disso, ao ser informado que haviam capturado Thereza, ordenou que a mesma ficasse trancafiada em uma das casas dos agregados.
Queria com isso, fazer com que Rodrigo não partisse.
Isso por que o fazendeiro sabia já há muito tempo, que o interesse de Rodrigo por Thereza era algo maior que uma simples amizade. Assim, queria arrumar uma maneira de prender o rapaz na fazenda.
Em seu íntimo sabia que o rapaz jamais partiria sem levar Thereza consigo. Ainda mais agora que sabia o por que de tamanho ódio do fazendeiro pela moça.
Assim, numa tentativa desesperada de prender o filho ali na fazenda, resolveu que deixaria de lado seu ódio e passaria a tratar a moça bem.
Já com relação a Diego, prometeu-lhe deixar toda a fazenda em que a família morava se o mesmo não fosse embora dali.
Contudo, com relação a Ricardo, as coisas foram um pouco mais complicadas. Isso por que o rapaz não estava nem um pouco interessado nas desculpas do pai.
Ataúfo então, percebendo que nada nem ninguém o prenderia na fazenda, disse-lhe que financiaria seus estudos em São Paulo e que quando se formasse, passaria a cuidar de outra de suas fazendas.
Com isso se denota que também não fazia muita questão da presença de seu filho.
E Ricardo percebeu isso. Tanto, que ficou ainda mais sentido com seu pai.
Assim, apesar de toda a revolta dos filhos, Ataúfo conseguiu manter os filhos perto de si.
Contudo, alguns dias depois do acontecido, um outro fato digno de nota, aconteceu.
Os negros, então cansados de lidar com as duras exigências do fazendeiro, com seu jeito duro e ríspido, resolveram se rebelar. Aliados aos últimos acontecimentos, estavam firmemente decididos a colocar fogo na fazenda e matar Ataúfo, bem como qualquer um que os tentasse impedir de fugirem.
Sim, estava desejosos de liberdade.
E assim, movidos neste propósito, logo que os empregados da fazenda abriram as portas da senzala para que fossem trabalhar, passaram a enfrentá-los.
Esses determinados na função de defenderem a propriedade de Ataúfo, não facilitaram a fuga dos negros, por isso mesmo, foram todos mortos pelos escravos. Seus corpos, foram colocados na senzala e trancados no fétido lugar.
Com isso, os negros então, se dirigiram até a sede. Estavam determinados no propósito de liquidarem Ataúfo.
Porém, ao contrário do que imaginaram, não foi preciso invadir a sede. O próprio Ataúfo, ao perceber a estranha movimentação, resolveu sair para ver o que estava acontecendo.
Nisso, qual não foi sua surpresa ao ver que os escravos estavam defronte a sua casa.
Revoltado, o fazendeiro ao ver aglomeração de escravos à sua porta, resolveu perguntar o que estava acontecendo.
Os negros então, ao verem a arrogância do fazendeiro, disseram-lhe que estavam saindo da fazenda. Mas antes iriam libertar Thereza e nem mesmo ele poderia impedi-los de partirem.
Tanto que, de posse das armas dos empregados de Ataúfo, ameaçaram o fazendeiro com as armas. Se o mesmo resistisse as investidas dos escravos, fatalmente seria alvejado por estes.
Assim Ataúfo não tinha outra alternativa.
Sem saber como agir, ficou parado no alpendre, onde os negros podiam vê-lo. O fazendeiro agiu dessa forma por que sabia que se tentasse entrar em casa, certamente levaria um tiro.
Por isso resolveu não arriscar. Ficou imóvel então.
Nisso os escravos invadiram todas as casas que haviam ali próximas.
Com isso, depois de algum tempo procurando, finalmente encontraram Thereza, recostada a parede de uma das casas, amarrada para que não fugisse.
Os escravos ao se depararem com a moça, ao verem seu triste semblante, ficaram penalizados com seu sofrimento.
Este fato deu-lhes ainda mais raiva.
Como Sinhô Ataúfo pudera lhe ser tão cruel? Afinal de contas, que culpa tinha a moça de Dona Rosália tê-lo traído?
Para eles, as atitudes do fazendeiro contra Thereza demonstravam claramente o quanto ele era covarde.
Isso por que, Thereza, na flor de seus treze anos, era inofensiva.
Assim, nada justificava a ira do fazendeiro.

Luciana Celestino dos Santos
É permitida a reprodução, desde que citada a autoria.

A DEUSA NEGRA - CAPÍTULO 9

E assim procedeu.
Mesmo diante dos insistentes pedidos de Rodrigo para que não a castigasse, Ataúfo, não desistiu da idéia.
Estava decidido a puni-la. Não só por sua suposta fuga, mas também por todo o mal que Rosália e Rubens lhe infligiram. Queria se vingar dos dois em Thereza.
Por isso mesmo, não pensou duas vezes antes de dar a ordem para que no dia seguinte a amarrassem no tronco.
Rodrigo então, ao perceber que nada faria o fazendeiro mudar de idéia, ameaçou-o dizendo, que se assim procedesse, o mesmo nunca mais poria os pés naquela casa. No mesmo instante em que agredisse Thereza, estaria rompido qualquer compromisso do fazendeiro com ele.
Da mesma forma, Rodrigo não teria nenhuma obrigação com relação a fazenda ou a Ataúfo.
O fazendeiro, ao ouvir as ameaças do rapaz, perguntou:
-- Então achas que faço isso, por que sou ruim? Pois saiba você que eu tenho sérios motivos para assim proceder. Essa menina já me humilhou muito. Não posso mais admitir seus abusos.
-- Pois então diga. Que abusos são esses? O que é que eu preciso entender? Por que você que é sempre tão duro com os escravos, a trata pior do que a qualquer um deles. Me explique. Eu quero entender. – disse o rapaz, irritado com a conduta do fazendeiro.
-- Explicar. Eu é que tenho que explicar... E o que ela fez, não justifica um justo castigo?
-- Sim. Mas por que tem que ser o mais duro, o mais cruel? Não pode simplesmente dar-lhe mais trabalho, deixá-la sem ver os pais?
-- Rodrigo meu filho. Se eu deixar por isso mesmo, nenhum escravo mais vai me respeitar. Não posso fazer isso e você sabe.
-- Não sei de nada. Mas eu espero que até amanhã cedo, o senhor pense melhor e mude de idéia. – disse e retirou-se da sala.
Ataúfo então, ficou por alguns instantes, sozinho na sala.
Foi quando apareceu o feitor e seu filho Ricardo.
Estes, ao entrarem na sala, foram informados pelo fazendeiro que Thereza estava presa, isolada em uma das cabanas da fazenda.
Depois disso, o feitor recebeu ordens para preparar o tronco.
Surpreso descobriu que a mesma seria punida pela fuga que tentara empreender.
Nisso Ricardo que ouvira tudo atônito, tentou, assim como Rodrigo, convencer o pai a não castigar Thereza. Tudo em vão.
Ataúfo estava insensível ao apelo de quem quer fosse.
De forma alguma deixaria escapar a oportunidade de se vingar. Nem que para isso, perdesse Rodrigo, que não aceitaria nunca tamanha crueldade. Isso por que, assim como ela, o rapaz também era negro e sabia do sofrimento de sua raça. Afinal, apesar de viver há muitos anos no conforto, como se fora um branco, conhecia o valor do sofrimento, dada a infância de trabalho que tivera.
Mesmo assim, Ataúfo estava resoluto.
Tanto que logo que o dia começou a surgir, o tronco já estava preparado.
Thereza, ciente de seu castigo, não conseguira dormir. Estava nervosa demais. Além disso, para evitar qualquer movimentação na senzala, o fazendeiro mandou que a mesma ficasse em uma das cabanas que haviam na fazenda.
Assim, mais ou menos as oito horas, Thereza foi levada até o tronco e amarrada.
Para que servisse de exemplo, o fazendeiro ordenou que todos os escravos presenciassem o castigo.
Rodrigo, ao perceber que Ataúfo não mudaria de idéia, foi até o local onde todos estavam reunidos. Isso por que, munido de uma cega esperança, acreditava que no último momento o mesmo desistiria do castigo e pensaria em outra forma de puni-la.
Isso porque, apesar de tudo, não considerava Ataúfo, um homem cruel. Ao contrário. O fato de tê-lo criado, qualquer que fosse o motivo, para ele já era uma mostra de que o fazendeiro não era um homem ruim. Além disso, como todos os homens do lugar – dada a criação que tiveram –, não tinham como pensar de forma diferente, com relação aos escravos. A sociedade em que viviam era dura com os negros.
Para Rodrigo no entanto, cabia aos negros lutar contra as injustiças. Principalmente aos negros, que como ele, tiveram oportunidade de estudar.
E apesar de sua pouca idade, já que nesta época só tinha quatorze anos, o jovem já tinha perfeita consciência que, independente da profissão que seguisse, lutaria pelos negros.
E na cabeça de Rodrigo, não havia possibilidade de Ataúfo agir de forma tão cruel. Para o jovem, o fazendeiro era um homem bom.
Tão bom, que quando alguém o criticava, ele era o primeiro a defender seu tutor.
Mas a verdade é que ele não conhecia Ataúfo de verdade.
Rodrigo só tivera contato com o lado bom dele. Ao contrário dos demais negros que sabiam o quanto ele era ruim.
Mesmo assim o rapaz acreditava que no último momento ele desistiria do cruel intento.
Mas, infelizmente, para sua tristeza, o fazendeiro parecia determinado.
Tão determinado que até mesmo Thereza, num lampejo de coragem, perguntou:
-- Por que o senhor está me castigando? Eu não tentei fugir, eu só queria ficar sozinha. – falou ela, gritando.
-- Fale baixo, sua atrevida. Com quem pensa que está falando? – respondeu ele, agressivamente.
Mas Thereza resolveu enfrentá-lo.
-- Pensa que eu tenho medo de você? Pois está enganado. Eu sei que o senhor é um covarde, por isso matou minha mãe. Por acaso vocês foram amantes?
-- Cale a boca, sua maldita, ou eu começo a cortar suas costas com esse látego, imediatamente.
-- Pois então faça. Eu não me importo de morrer. – respondeu ela com desdém.
Nisso os escravos que a criaram, acorreram em seu encontro, na vã tentativa de fazerem Ataúfo desistir da coça.
Mas logo que ameaçaram se aproximar do local onde a moça estava amarrada, os peões da fazenda os detiveram.
Porém a mãe de criação de Thereza não se deu por vencida. Por um instante gritou para o fazendeiro:
-- Por favor. Perdoe ela. Ela não fez por mal.
Mas sua tentativa foi debalde.
O fazendeiro estava decidido a se vingar da traição que sofrera treze anos atrás. Foi então que preparou-se para dar a primeira chicotada nas costas de Thereza.
Porém, quando ía executar o gesto, foi impedido por Ricardo, que pela primeira vez, enfrentou seu pai. 
Mas foi ao segurar seu chicote que Ataúfo, tomado de um profundo ódio, o empurrou, jogando longe.
Nesse instante, Rodrigo, sem acreditar na tamanha crueldade do ato que estava presenciando, começou a falar:
-- Como pode? O homem que teve o desprendimento de pegar um negro para criar, e criou como se fosse da família, ignorar centenas de outros negros, que iguais aquele menino, também merecem uma oportunidade. Como pode ser isso? Como pode haver, tamanha contradição?
Ataúfo, ao ouvir as palavras de desespero de Rodrigo, respondeu na mesma hora:
-- Por acaso achas que gosto de fazer isso meu filho? A única pessoa que não tinha o direito de me criticar é você, meu filho. O filho que eu escolhi para continuar o meu trabalho. Para juntamente com seu irmão Diego, continuarem o trabalho que um dia foi de meu pai, passou para mim, e vai continuar com vocês.
Ao ouvirem isso, todos os negros, Ricardo, Diego, Rodrigo e Thereza, ficaram espantados. Afinal, o que estava acontecendo? Por que Ataúfo falava como se Rodrigo fora seu filho?
Foi então que Rodrigo, ainda espantado com as palavras de Ataúfo, perguntou:
-- Como? Diego é meu irmão? Então a explicação para tamanha generosidade se deve ao fato de eu ser teu filho?
Ataúfo, traído por suas próprias palavras, ao perceber o desalento nas palavras de Rodrigo, foi obrigado a admitir. Sim, ele trouxera Rodrigo para casa, por que este era seu filho, fruto de um relacionamento com uma escrava.
Os escravos que estavam em volta do pelourinho, ficaram surpresos.
Mesmo que a maioria deles desconfiasse que havia um forte motivo para que o fazendeiro criasse o garoto, nunca poderiam imaginar que este confessaria seu adultério na frente de todos eles.
Perplexos, mal sabiam o que pensar. Afinal, por este mesmo motivo infligira a sua jovem esposa, um tormentoso martírio.
Como pudera fazer isso, se ele mesmo já lhe fora infiel?
Os escravos então, começaram a cochichar entre si.
Ataúfo, ao perceber o olhar de reprovação em todos os negros, ordenou-lhes que ficassem em silêncio. Iracundo, não queria saber de falatório, e assim, ameaçou-lhes para que se calassem.
E os negros se calaram.
Mas o mal já havia sido feito.

Luciana Celestino dos Santos
É permitida a reprodução, desde que citada a autoria.

A DEUSA NEGRA - CAPÍTULO 8

Isso por que, descobririam dentro em breve o que havia acontecido de tão grave em suas vidas.
E assim foi.
Um dia, apesar de uma aparente calmaria, Thereza percebeu ao voltar para a senzala, rumores de que algo definitivo estava para acontecer.
Contudo os escravos, temerosos, resolveram não dizer o que estava acontecendo. Não queriam que estranhos descobrissem o que estavam planejando. Por isso não ousaram revelar seus planos a ela.
No entanto, em questão de dias, após muito planejar e discutir depois do trabalho e longe dos olhares curiosos do feitor da fazenda, decidiram contar a ela sobre seus planos.
Desejosos de conhecerem novas formas de viver, estavam decididos a fugir dali.
Como Ataúfo era rude, cruel e desumano, não tinham motivos para permanecer ali.
Um dos escravos, revoltado que estava com sua situação, por um triz não cometeu uma inconfidência ao comentar que a pior ignomínia que o fazendeiro havia cometido, fora com ela.
Mas os demais escravos, tentando contornar a situação, disseram-lhe que ele estava falando demais, e assim o mesmo resolveu se calar.
Thereza no entanto, ao ouvir a história, insistiu para que eles lhe contassem:
-- Afinal. O que foi que aconteceu de tão grave? O que foi que Seu Ataúfo fez, para que eu seja sua principal vítima?
Foi então que um dos escravos, disse que a implicância de Ataúfo com ela, era inadmissível. Era intolerável.
Mas a resposta, não a convenceu.
E Thereza, já estava ficando cansada de ser enganada.
Por isso mesmo, ao ver seus pais se aproximando da senzala, fez questão de inquiri-los a esse respeito. Afinal, do que estavam falando?
Mas para desapontamento de Thereza a resposta do casal foi evasiva como sempre.
Tal fato a irritou profundamente. Por isso, aborrecida, resolveu voltar para a sede e nos últimos dias, passou a dormir por lá mesmo.
Dessa forma, poderia aproveitar para enquanto trabalhava, descobrir mais alguma coisa sobre seu passado.
Porém, de uma coisa já sabia, os escravos que a criaram, não eram seus verdadeiros pais. Isso por que, um dia, quando estava se dirigindo a cozinha para começar a trabalhar, ouviu uma conversa de duas escravas a respeito de sua provável origem. Sim, as duas diziam ser ela filha de uma desavergonhada.
Quem seria essa desavergonhada?
Pelo que as duas comentaram, devia se tratar de uma dama. Mas como ela, uma simples escrava poderia ser filha de uma dama?
Contudo, dado o mistério que todos faziam a respeito do assunto, sabia que havia algo de muito sério. Algo que talvez se relacionasse até, com a história de Rodrigo. Sim por que, nem mesmo ele conseguia compreender o gesto do fazendeiro em lhe acolher.
Thereza, no entanto, receosa de contar toda a verdade, não revelou ao amigo o que havia ouvido dias antes na cozinha.
Isso por que, ainda espantada com a notícia, não sabia o que fazer com a história. Atordoada, logo que ouviu os comentários maliciosos das escravas a respeito de sua possível mãe, ficou paralisada. Não sabia como agir. Por isso, logo que entrou na cozinha, resolveu se afastar das escravas e arrumar a casa.
Não comentou também que uma vez ouviu ele e Diego discutirem.
Mas Rodrigo, percebendo que Thereza estava estranha, desconfiou de que ela estava lhe ocultando algo.
Thereza ao notar a desconfiança desconversou dizendo que não era nada.
Rodrigo então fingiu acreditar na resposta.
Contudo voltando para a sala, sentou-se num dos bancos, e ficou pensativo.
Ensimesmado, Ricardo, ao ver-lhe tão introspectivo, indagou-lhe:
-- Em que você está pensando? Por acaso seria numa certa criada da casa?
-- Não. Não é nada não. – respondeu secamente.
-- Sei. Como se eu não te conhecesse. Até parece que você ajuda essa menina ...
-- Como é? Acaso eu dei lhe essa intimidade? Por que achas que sou seu amigo? Achas então que esta é uma forma de uma aproximar dela? – perguntou Rodrigo, desta vez aborrecido com Ricardo.
Ricardo por sua vez, ao ver o amigo tão aborrecido com sua impertinência, resolveu desculpar-se dizendo:
-- Me perdoe Rodrigo. Eu fiz a pergunta com a melhor das intenções. Eu não quis te aborrecer nem te faltar com o respeito. Eu só acho que as vezes você é reservado demais.
Silêncio.
-- Eu sei que nem sempre sou receptivo com as pessoas, mas você tem que entender que tenho direito a um pouco de solidão. Às vezes todos nós precisamos ficar sós.
-- Está certo. Então eu vou-me embora. – disse Ricardo, um tanto quanto desapontado.
Mas Rodrigo respondeu:
-- Não. Não é necessário. Podes ficar. Eu não me importo. Só te peço que não me faças mais este tipo de pergunta. Só isso.
No que Ricardo concordou. E assim, permaneceram durante longo tempo juntos.
Depois dizendo que precisava percorrer a fazenda, comentou que tinha trabalho a fazer.
Rodrigo porém, continuava cismado com o comportamento de Thereza.
Com isso, logo que terminou seus afazeres, tratou logo de se dirigir a cozinha, na tentativa de mais uma vez, conversar com Thereza.
Ao lá chegar, foi logo avisado que a moça estava na sala de jantar, servindo a família.
Rodrigo então, foi direto para a aludida sala. Passando pelo alpendre, ao entrar na casa depois de passar por cômodo, logo estava na sala de jantar.
Ao ver Thereza servindo a família e Ataúfo brigando com ela, dizendo que não tinha bons modos e que não sabia servir o jantar, Rodrigo fez questão de intervir e chamar a moça para um canto. Queria conversar.
Mas Ataúfo insistia para que ela lhe servisse o jantar.
Rodrigo então vendo que o fazendeiro só a queria manter na sala para humilhá-la, resolveu se impor e pediu para que a outra escrava que estava entrando na casa, servisse a família.
Assim, pegou Thereza pelo braço e a levou até o outro cômodo.
Ataúfo ao ver isso, disse ao moço que não era a hora para conversas e que não gostava nem um pouco quando este se ausentava da mesa, no horário das refeições.
Foi então que Rodrigo disse que era importante o que tinha que falar com a moça.
Mas Ataúfo não quis saber, exigiu que o mesmo permanecesse à mesa.
Com isso, a conversa iria ter de esperar.
Assim, depois de cearem, Rodrigo, temeroso de que Thereza estivesse o evitando, imediatamente foi procurá-la na cozinha.
Para sua satisfação, a moça, desta vez, não tinha ido para a senzala.
Por isso, logo que a viu tratou de avisá-la que tinham muito o que conversar.
Foi então que Thereza disse:
-- Pois então, que seja breve, por eu não tenho todo o tempo do mundo. Eu ainda tenho que ajudar a lavar, toda essa louça.
Nisso uma escrava que escutou a conversa ofereceu-se para fazer o trabalho. Assim, Thereza poderia conversar sossegadamente com Rodrigo.
Dessa forma, sem ter como fugir da conversa, Thereza acompanhou Rodrigo até um jardim que havia nos fundos da sede, para que ali pudessem conversar sem serem interrompidos.
Por isso, ao lá chegar, logo perguntou:
-- Eu pensei em tudo o que você me falou outro dia, e cheguei a uma conclusão. Você não me contou toda a verdade.
-- Contei sim. Eu contei tudo o que eu sabia.
-- Não contou não. Se tivesse me contado, não estaria me evitando como está fazendo agora. O que foi? Acaso perdeste a confiança em mim?
-- Mas é claro que não.
-- Então, conte-me. O que está havendo?
Nisso, sem ter alternativas, não lhe restou mais nenhuma desculpa. Precisava contar sobre suas dúvidas, e após muita insistência de Rodrigo, Thereza acabou lhe segredando ao ouvido, tudo o que descobrira, dias antes.
Rodrigo espantado, ao ouvir a amiga, revelou-lhe que sabia de mais alguma coisa.
Foi então que Thereza, curiosa, perguntou:
-- Mas, se você sabia, por que é que nunca me contou? Por que me deixou nesta agonia?
-- Sinto muito Thereza, mas como é que eu poderia saber? Como é que eu poderia imaginar que a história que eu ouvi poderia ser a sua história? Afinal, desde que a conheci, naqueles cafezais, eu nunca imaginei que você pudesse ter um passado tão tenebroso quanto este.
-- Está certo. Está bem. Nem eu mesma poderia imaginar que toda a minha vida pudesse ser uma mentira. Mesmo com as implicâncias de Seu Ataúfo, como eu podia imaginar que algo de errado havia acontecido em minha vida? Pra mim, ele é um louco, um homem cruel. Mas só.
-- E você acha que ele também está envolvido em sua história?
-- Mas é óbvio. Ou senão, por que as pessoas tem tanto medo de me contar a verdade? Por que todos tem ódio dele? Por que ele me odeia tanto? Sim, por que, nem mesmo as escravas que aqui estão há muito tempo, são tão maltratadas por ele quanto eu. Então é lógico que eu pense que ele tem alguma relação com tudo o que já aconteceu na minha vida, e o que me deixa mais desapontada, é o fato de você saber de tudo isso há tanto tempo e nunca haver me contado. – respondeu ela furiosa e já quase gritando.
-- Fale baixo... Escute, eu não tive a intenção de te enganar. Acredite-me, eu realmente não sabia que a menina das histórias que as escravas um dia me contaram, era você. Eu juro que se eu soubesse, eu teria te contado.
-- E então, vai me contar ou não? Ou será que eu vou ter que descobrir tudo sozinha? Por que não tenha dúvidas. Se você não me contar, pode ter certeza. Mesmo assim eu vou descobrir. Ainda que demore mais, mas eu descubro. – respondeu ela visivelmente irritada.
-- Acalme-se Thereza. Está bem? Eu vou te contar o que sei. Embora não seja muito, eu vou te contar. Só quero que me prometa que esse assunto vai ficar entre nós. Você não poderá comentar com ninguém o que ouvir. Está claro? Pelo menos enquanto não entendermos toda a história. Prometa-me.
-- Prometo.
-- Então está bem. Eu vou te contar o que sei.
E assim o rapaz lhe revelou que sabia da história da mulher casada que teve uma filha ilegítima e que por isso, ao ser descoberta, acabou morrendo de desespero.
No entanto, ao ser indagado sobre quem seria o homem capaz de tamanha atrocidade, não soube revelar se era o fazendeiro.
Mas Thereza imaginou quem fosse. E pior, imaginou que a história da mulher ter morrido de desespero, fosse uma mentira para ludibriá-la. Tanto que depois de ouvir parte da história, ficou tão atordoada que nem sequer se despediu de Rodrigo, saiu dali, correndo, desesperada, em direção a senzala.
Pronto, a moça estava indo se encontrar com os escravos que a criaram.
Mas nesse momento, Rodrigo se lembrou que este tempo, a mesma estava fechada. Não havia como entrar.
Assim, receoso, preocupado com a possibilidade de a moça fazer alguma besteira, tratou de chamar o pai, para este avisasse o feitor, para que a fosse procurar.
Contudo, visando evitar qualquer castigo contra Thereza, pediu a Ricardo que acompanhasse o feitor na busca.
Enquanto isso, ele e Ataúfo, cavalgariam em outra direção, na tentativa de encontrá-la.
E assim o fizeram.
Durante toda a madrugada procuraram pela moça.
Mas esta, prevenida de que alguém viria em seu encalço, fez todo o possível para se manter oculta o maior tempo possível.
Assim, cada vez que sentia alguém se aproximando, procurava se esconder.
Contudo, a certa altura, cansada demais para correr, acabou sendo encontrada por Ataúfo e Rodrigo.
Pronto. Não tinha mais como fugir.
Ataúfo, ao conseguir encontrá-la, ficou profundamente satisfeito.
Agora tinha um bom motivo para castigá-la.
Nem mesmo Rodrigo, extremamente generoso com a moça, poderia fazer nada para impedir.
Sim, agora finalmente poderia completar sua vingança. Depois de tantos anos tendo de aturar aquela bastarda – forma pela qual sempre se referia a ela quando estava sozinho –, finalmente seria presenteado com a possibilidade de puni-la.
Melhor, puni-la, por uma razão que ela mesma havia dado causa. Sim, por que, agora ninguém poderia acusá-lo de estar perseguindo e punindo-a sem motivo.

Luciana Celestino dos Santos
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