Poesias

terça-feira, 30 de março de 2021

CARINHOSO - PARTE I - CAPÍTULO VII

A apresentação foi emocionante.
Homero foi impecável e Miriam demonstrava muita tranqüilidade.
Mirtes por sua vez, ao acompanhar o desempenho da filha, ficou assaz orgulhosa.
Com o tempo, passou a dizer aos freqüentadores do circo que a moça era sua filha.
E assim, em cada apresentação, a moça demonstrava mais tranqüilidade.
Com o passar do tempo, não sentia mais medo.
Confiava plenamente na habilidade de seu parceiro.
Odair - o dono do circo -, percebendo na moça certa habilidade no trato social, chegou a lhe perguntar certa vez, o que uma menina tão educada e de modos tão refinados, estaria fazendo trabalhando em um humilde circo, como simples parceira em um número de atirador de facas.
Miriam, tentando desconversar, respondeu que gostava do mundo do circo. Considerava-o mágico.
Nisto, com o passar do tempo, Odair sugeriu-lhe acompanhar o número do mágico do circo.
Miriam aprendeu a fazer truques, bem como anunciar os números de Alencar.
E a jovem, com todo o seu donaire, usando uma roupa mais decotada, passou a participar do número de magia.
Mirtes ao ver o traje que a filha usaria para participar do número, ficou chocada.
Considerou-o inadequado.
Tanto que argumentou com Odair que a atração era o número de magia e não a plástica de sua filha.
Odair, ao ouvir estas palavras, argumentou que a roupa serviria apenas para tornar o espetáculo mais interessante, e que não adviriam danos a sua filha.
Mirtes por sua vez, não concordou com os argumentos apresentados.
Odair porém, dizendo se tratar de uma situação transitória, prometeu que assim que fosse possível, a designaria para um trabalho ainda melhor.
Mirtes então, calou-se.
Percebendo que precisava do emprego, resolveu aceitar as condições do trabalho.
O traje, pomo da discórdia, nada mais era que um corpete, chapéu com plumas e uma pequena saia de tule.
Bem diferente do discreto traje do número das facas.
Miriam também estranhou a roupa, mas com o tempo se acostumou.
O mais difícil para ela no entanto, era vencer sua inibição natural e anunciar as atrações do mágico.
Tinha que anunciar o número do coelho tirado da cartola, da pomba, das cartas de baralho. Também participava de um número em que ficava dentro de uma caixa e a mesma era serrada e ela ficava como que dividida em várias partes.
Todos aplaudiam o número.
Alencar também fazia apresentações com lenços e objetos que surgiam aparentemente do nada.
Em dado momento, solicitava a sua assistente Miriam que o amarrasse fortemente.
O mágico em questão de segundos, se soltava.
Miriam auxiliava-o com os números.
E Alencar, com seu terno bem cortado, fazia a alegria das crianças, que ficavam encantadas com os números.
Consideravam-no um excelente mágico.
Miriam por sua vez, ficou encantada com o ritual que envolvia a apresentação.
Razão pela qual aprendeu inúmeros truques de magia.
Alencar por sua vez, pedia a todo o momento que a moça não comentasse os truques, sob pena de ferir a ética profissional.
Os segredos da profissão só competiam aos mágicos, dizia.
Com efeito, Miriam não comentava os segredos dos truques com ninguém.
Mirtes, pouco sabia do trabalho da filha, além do que podia ver nas apresentações.
A moça silenciava a respeito do assunto.
Para decepção de Mirtes que adoraria conhecer alguns truques.
Nisto, enquanto não ensaiava os números de magia, a moça aproveitava para acompanhar a dupla de palhaços do circo.
Era pura diversão.
A dupla vestida com os trajes do ensaio, parcialmente maquiados, brincavam um com o outro.
Era um cheirando uma flor que jorrava água, outro cutucando o ombro do outro para fazê-lo olhar para a direção do toque e o parceiro, tomar seu pequeno baú.
Baú que segundo o palhaço, apesar de pequeno, era desajeitado e pesado, o que fazia com que despendesse muita força para carregá-lo. Quando finalmente o palhaço conseguia desajeitadamente arrastar o baú, o mesmo empinava para um lado e caia, para desespero do mesmo.
O outro por sua vez, ficava olhando na direção em que fora cutucado e aproximava-se da platéia, como que para procurar quem tocara em seu ombro.
A platéia por sua vez, ficava a todo o momento a indicar onde se encontrava o outro palhaço, o qual ficava o tempo todo tentando desesperadamente, esconder o baú.
Finalmente, depois de algumas trapalhadas, o palhaço finalmente se depara com o parceiro arrastando seu baú.
A descoberta é cômica.
O palhaço furtado, coloca as mãos na cintura e reclama da conduta do outro palhaço.
O mesmo continua tentando empurrar a mala.
Ao perceber que foi descoberto, tenta desajeitadamente se evadir, mas seu companheiro o segura pelo braço, fazendo-o parar.
Através de pantomimas, os palhaços discutem.
Miriam chega a chorar de tanto rir. Aplaude entusiasticamente o espetáculo.
Neste momento, eis que surge um terceiro palhaço, que aparta os contendores, e por conta disto, leva um sopapo, e tonto, fica girando, girando.
Por fim, o último palhaço chama a atenção dos brigões e tudo acaba bem.
Nisto, os três se juntam as mãos e se curvam para as cadeiras.
Mais aplausos de Miriam que elogia o espetáculo.
É o Trio da Alegria, com os palhaços Feliz, Alegre e Contente.
Com o passar do tempo, Miriam já conhecedora dos números de mágica, passou a fazer pequenos números ao lado de Alencar.
O número dos lenços passou a ser executado com sua participação.
Mirtes não se cabia de contentamento.
A esta altura, a mulher além de anunciar as atrações do circo ao lado de Odair, passou a cuidar da bilheteria.
Neste tempo, já fazia quase dois anos que Mirtes e Miriam haviam chegado ao circo.
Com toda a trupe e animais, circulavam pelas cidades interioranas, levando alegria e diversão para as crianças.
A certa altura, Miriam passou a fazer exercícios no trapézio.
Mirtes, ao ouvir inicialmente a proposta, chegou a questionar a idéia, mas Miriam parecia interessada no número.
Desta forma, percebendo o interesse da filha no número, coube a mulher acostumar-se com a idéia.
Miriam subia uma escada até chegar ao trapézio, onde havia uma rede de proteção.
A moça senta-se no banco de madeira e se balançava.
Auxiliada por um parceiro, começou a exercitar-se realizando pequenos movimentos.
Certa vez, ao tentar um movimento mais brusco, perdeu o equilíbrio caindo na rede de proteção.
Foi o suficiente para Mirtes se assustar e exigir o afastamento da filha do número.
Odair, ao tomar conhecimento do incidente, procurou conversar com a mulher. Disse-lhe que fora um pequeno acidente, e que Miriam não havia se ferido.
Miriam por sua vez, assustou-se com a queda, mas pouco tempo depois retomou a preparação.
Mirtes então, sempre que via a filha se arrumando para o treino no trapézio, tentava convencê-la a desistir da idéia.
A moça porém, não estava disposta a desistir de seu intento.
E assim prosseguiu com os ensaios.
Com o tempo, passou a fazer acrobacias no trapézio, auxiliada por seu parceiro Olegário.
Lançava-se para as mãos seguras de Olegário.
Quando finalmente chegou o dia da apresentação, a moça usava um colant vermelho com lantejoulas e brilhos, meia calça e sapatilhas. Cabelos presos e enfeitados com plumas.
Olegário, também usava roupas justas no corpo.
A apresentação ocorreu de forma impecável.
Miriam dominava o trapézio.
Em que pese este fato, a jovem estava ansiosa em sua primeira apresentação.
Depois de árduos meses de preparação, a moça estava tensa.
Olegário, parceiro mais experiente, tratou de acalmá-la. Disse-lhe que faria a apresentação de forma perfeita, e que não ocorreriam problemas, pois haviam ensaiado muito.
E assim, no dia da apresentação, os palhaços em seu número, diziam:
- Hoje tem goiabada? Tem sim senhor. E o palhaço o que é? É ladrão de mulher.
A platéia respondia e ria.
Palhaços com roupas coloridas, chapéu coco que levantava sozinho, sapatos compridos, gravata larga.
Miriam acompanhava tudo através da cortina.
Mirtes, momentos antes da filha se apresentar, desejou-lhe sorte.
Disse-lhe que estava bem preparada, e que a apresentação seria um sucesso.
Em seguida, abraçou a filha e desejou-lhe novamente sorte.
Miriam agradeceu e a seguir, dirigiu-se ao picadeiro.
Auxiliada por Olegário, subiu os degraus da escadaria, e posicionou-se no trapézio.
Este por sua vez, também subiu a escadaria e posicionou-se no trapézio oposto.
Começou o espetáculo.
A dupla se movimentava no ar.
Pulavam, faziam movimentos circulares e seguravam o trapézio anteriormente impulsionado.
Em alguns momentos da apresentação, Miriam saltava de seu trapézio, sendo segurada por seu parceiro.
A cada salto, a cada pirueta, aplausos da platéia.
Por fim, ao término da apresentação, o senhor Odair cumprimentou a moça pessoalmente.
Parabenizou-a, dizendo que para quem havia começado apenas anunciando as atrações circenses, havia progredido bastante.
Miriam agradeceu.
Mirtes por sua vez, foi elogiada pelo fato de ser mãe de uma jovem bonita e valorosa.
Com isto, o espetáculo prosseguiu.
Mais palhaçadas, números de magia, a apresentação do domador com seus animais.
Ao término do espetáculo, Odair passou a contabilizar o valor das entradas e a arrecadação.
Ficou satisfeito com o resultado.
Nas apresentações seguintes, providenciou uma tabuleta onde ficou exposto o nome de Miriam como atração do circo.
Tal fato tornou-se alvo da apreensão de Miriam, que temerosa de que descobrissem o paradeiro de ambas, sugeriu que ela criasse um nome artístico.
Miriam sugeriu chamar-se Amarante.
E assim foi escrito na tabuleta.
Tamanho prestígio porém, não era bem visto por alguns empregados do circo.
Algumas pessoas ficavam enciumadas com tanta atenção.
Mirtes e Miriam, perceberam isto.
Razão pela qual procuravam se manter discretas no local.
Homero, Alencar e Olegário, amigos de Miriam, estavam sempre juntos em conversas animadas.
Odair por sua vez, passava as tardes tomando o café de Dona Mirtes.
E as viagens pelo Brasil continuavam.
Incursões pelo interior do estado de São Paulo, Rio de Janeiro, e outros estados, traziam o conhecimento de outras realidades para as mulheres.
Mirtes e Miriam, adoravam passear pelos lugares e conhecerem a igrejinha, as praças, o comércio, e os lugares aprazíveis das cidades.
Viagens geralmente realizadas para cidadezinhas do interior.
Nestes locais, o circo costuma ser a única, ou uma das poucas diversões da cidade.
Atração que fazia o encantamento das crianças, que sonhavam com este universo.
Muitas nutriam o desejo de fugirem de casa para viverem no circo.
Felipe foi um desses garotos sonhadores.
Quando o circo “Palácio dos Sonhos”, chegou na cidadezinha, foi um alvoroço só.
As atrações do circo eram anunciadas enquanto os carros atravessavam a cidade.
Ao finalmente encontraram um lugar para se instalar, os homens trataram de se reunir para montarem a lona.
Era um trabalho de horas.
Alguns moradores acompanhavam a montagem.
No circo, momentos antes da apresentação, a platéia ouvia músicas.
Década de trinta.

Luciana Celestino dos Santos
É permitida a reprodução, desde que citada a autoria.

CARINHOSO - PARTE I - CAPÍTULO VI

O casal foi habitar o palacete construído pelo moço.
Maria Rosa foi muito feliz ao lado de Mário.
Juntos, criaram a filha que tiveram, Mirtes.
A menina foi criada conhecendo a origem da mãe, a história de Carina.
Para desespero dos avós, Dona Alaíde e Antenor que tentavam a todo custo encobrir a origem de Maria Rosa, a qual consideravam espúria.
Alaíde ficava inconformada em ver o modo com que a criança era criada.
Achava a criança, atrevida e solta demais.
E assim, Mirtes foi criada com o mesmo temperamento livre da mãe.
Estudou em colégio interno, aprendeu a tocar piano. Falava francês e inglês e lia diversas obras nos referidos idiomas.
Dona Alaíde dizia a Maria Rosa e Mário, que a menina deveria aprender a cozinhar, a lavar, passar, engomar, bordar. Enfim ofícios do lar, e não coisas endereçadas aos homens.
Maria Rosa ria. Dizia que ela também recebera esta criação.
Todavia a vida que sorria próspera para a família, se declinou com a crise do café.
Dona Alaíde e Antenor perderam as propriedades que tinham, posto que viviam exclusivamente da monocultura cafeeira.
Razão pela qual foram morar no palacete do filho, na capital.
Mário também perdeu bens, mas por exercer atividades outras, conseguiu manter parte do patrimônio.
A despeito da crise, o rapaz resolveu criar uma linha mais popular de suas porcelanas.
Resolveu também, se dedicar a tecelagem, plantando algodão em uma das fazendas que restara do rico patrimônio da família Oliveira Prates.
Mirtes realizou um bom casamento com um rico moço da região.
A moça usava os cabelos curtos, e penteados de forma ondulada.
Ousada, a jovem sabia até dirigir.
Para desespero de Alaíde que não conformava com os modos livres de Mirtes.
Modos estes os quais considerava escandalosos.
O casamento da moça foi realizado no campo, sendo convidada toda a ilustre sociedade da época.
Com o tempo porém, o fausto e a opulência se findaram.
A falta de tino comercial do marido de Mirtes, fez com que o patrimônio conquistado por Mário se reduzisse ao palacete e a fábrica de tecidos.
Henrique era mulherengo e perdulário. Jogador contumaz.
Mirtes por sua vez, ao ver a situação da família, as dívidas se avolumando, tentou de todas as formas assumir as rédeas dos negócios. No que foi impedida por Henrique.
A moça ao perceber que o marido era um péssimo administrador, passou a se preocupar.
Contudo, não podia retirá-lo da administração das fábricas. Não possuía poderes para tanto.
Nisto, já maduros, com uma filha crescida, se viram implicados em uma denúncia de desvio de dinheiro.
Henrique havia sumido com o dinheiro para pagar dívidas da família.
Mirtes e Miriam, ao se verem a todo o momento sendo importunadas por credores, trataram de arrumar os poucos pertences que ainda possuíam, e rumaram para outras paragens.
Sem nunca dizer que outrora foram ricas.
Para sobreviverem, passaram a trabalhar em um circo.
Inicialmente, mãe e filha anunciavam as atrações do circo: as apresentações dos palhaços; o número no trapézio, o domador e suas feras.
O dono do circo, ao perceber a beleza da jovem Miriam, sugeriu que a moça passasse a trabalhar nas atrações do circo.
Com isto, a moça passou a se apresentar juntamente com o atirador de facas.
Era um número arriscado e que exigiu muito treinamento e preparo da moça.
Mirtes tentou argumentar, se opondo a idéia, mas Miriam a demoveu da idéia dizendo-lhe que precisavam se manter e que apenas anunciar as atrações do circo não era o suficiente para garantir a subsistência de ambas.
Ademais, Miriam dizia estar cansada de ouvir gracejos dos freqüentadores do circo.
Com isto, Mirtes acabou concordando com a idéia da filha participar, de uma das atrações do lugar.
Contudo, ao ver o homem, atirando facas contra uma tábua, a mulher ficou horrorizada.
Por um instante chegou a pensar em conversar com a filha e fazê-la desistir da idéia de fazer dupla com Homero.
Homero ao perceber o ar assustadiço da mulher procurou conversar com ela.
Disse-lhe que o número não oferecia riscos, e que Miriam não sofreria nenhuma lesão. Isto porque, só passaria a treinar com a moça, quando estivesse seguro de sua pontaria.
E assim, o homem permaneceu por semanas treinando sua pontaria, até Miriam ser chamada para um ensaio.
Mirtes ao ouvir o convite, chegou a pedir a filha para que não participasse.
Miriam porém, resistiu aos apelos da mãe. Relatou que se sentia preparada para o desafio, e que não seria uma pequena dificuldade que a faria desistir do intento.
E assim, a moça se encaminhou para o picadeiro do circo para a realização do ensaio.
Estava ansiosa e trêmula.
Ao se posicionar na tábua, em cima do desenho no qual seu parceiro treinara por semanas, sentiu um arrepio.
Lívida, ameaçou desmaiar.
Homero, ao perceber o semblante pálido da moça, acorreu em sua direção para segurá-la.
Aflito, perguntou a jovem se estava tudo bem, como estava se sentindo.
Nisto, pediu para que uma assistente providenciasse um copo com água.
Miriam bebeu com sofreguidão.
Aos poucos, a jovem foi se recompondo, e depois de alguns minutos, a moça se levantou e insistiu com Homero, para que ensaiassem o número.
Ao ouvir isto, o homem ficou como que tomado de espanto.
Admirado, perguntou se ela realmente se sentia preparada para o número, se não precisava descansar, respirar um pouco...
Miriam, ao perceber o ar vacilante do moço, insistiu.
Disse que não sairia dali enquanto não ensaiasse o número. Argumentou que não desmaiaria novamente, e que caso se sentisse incapaz de realizar o ensaio, ela própria pediria para parar.
Com isto, insistiu mais uma vez para fazer o ensaio.
Desta feita, a dupla realizou o número.
Miriam posicionou-se na tábua, e Homero auxiliou-a a ajeitar-se.
Após, disse que iria atirar algumas facas a uma boa distância, e que ela não poderia se mexer, sob pena de se ferir.
Miriam respirou fundo e prometeu que não iria se mexer.
Nisto Homero pediu a ela que prendesse a respiração.
Começou a lançar facas.
Ao término do ensaio, Miriam estava com as pernas bambas.
Homero então, autorizou-a a se mexer.
Mirtes ao ver a filha caminhando pelo picadeiro com ar espantado, perguntou-lhe o que havia acontecido.
A moça respondeu-lhe que havia realizado o primeiro ensaio, do número com as facas.
Com o tempo, e os ensaios, a jovem foi ganhando mais confiança.
Aprendeu a se posicionar na tábua.
Homero por sua vez, passou a atirar facas, a uma distância menor da moça.
Quando finalmente foi realizada a primeira apresentação, Miriam usava um traje com uma saia longa de tule, corpete, e cabelos presos e enfeitados de flores e algumas penas. O rosto, pintado de branco, com bastante maquiagem.
Homero por sua vez, usava um traje semelhante a um fraque, com algumas flores, e cartola.
Mirtes acompanhou o número, enquanto, convidava todos a entrarem e ocuparem seus lugares, nos bancos colocados ao redor do picadeiro.

Luciana Celestino dos Santos
É permitida a reprodução, desde que citada a autoria.

CARINHOSO - PARTE I - CAPÍTULO V

Com o tempo a moça casou-se. O jovem objeto de seus afetos chamava-se Mário.
Com ele, teve uma filha de nome Mirtes.
Durante longo tempo viveram na capital.
Maria Rosa passou a gozar de um bom conceito junto aos moradores do local.
A jovem professorinha havia se casado com um dos melhores partidos da cidade.
Com o casamento, realizado com todo o cerimonial necessário a um casamento com uma pessoa ilustre, a moça deixou de lecionar, dedicando-se exclusivamente ao lar, aos afazeres domésticos.
Passou a viver em um palacete, vestindo-se com os melhores tecidos, roupas bem cortadas, sapatos.
Para adornar os cabelos cuidadosamente presos, sofisticados chapéus.
Cumpre salientar que o casal se conheceu na saída de uma das inúmeras celebrações eucarísticas acompanhadas por ela, conduzidas por Padre Josias.
Mário, adorava o jeito com que Maria Rosa se abanava com seu leque.
O jovem considerava um charme, o modo como a jovem abria e fechava o leque, golpeando delicadamente o ar. Achava-a parecida com uma borboleta sobranceira e misteriosa.
Quando soube se tratar da suposta filha de uma famosa cortesã da cidade, admirou-se. Espantou-se com a origem de sua mãe, com o fato de ter a moça se apresentado com filha de Carina, e com o fato da famosa cortesã ter abandonado uma vida de luxos e desregramentos e passado a viver uma vida discreta.
Admirou-se com a sinceridade da moça.
E assim, em que pese a oposição de seus parentes e familiares, o jovem mancebo pediu a moça em casamento.
Ofereceu-lhe um imponente anel de brilhantes, o qual foi assunto por mais de uma semana na cidade.
Tereza e Roberto diziam-lhe que era uma moça de sorte.
Outros moradores da cidade diziam-lhe o mesmo, quando a viam saindo da igreja.
Desta feita a moça casou-se.
A cerimônia realizou-se na matriz da cidade.
Maria Rosa trajava um exuberante vestido branco, todo bordado, várias anáguas, um longo véu. Cabelos presos, envoltos em flores de laranjeiras. Nas mãos, um buquê de flores.
Mário trajava calça, paletó, tendo na lapela um cravo.
No imenso salão da fazenda, um bolo imenso, bonito, decorado. Doces, bebidas como vinhos e licores.
Um lauto jantar seria servido para os convidados.
Na igreja, empresários, industriais, cafeicultores. Figuras ilustres da sociedade.
A cerimônia foi celebrada pelo sacerdote de escolha de Maria Rosa.
A moça escolheu seu confessor e conselheiro, Padre Josias.
Ester e seus filhos, acompanharam a cerimônia.
Durante o tempo em que a moça lecionou, os meninos tiveram aulas ministradas pela jovem.
Após a cerimônia, na saída da igreja, a moça foi cumprimentada pelos convidados e familiares de Mário.
Para muitos, tratava-se de uma jovem valorosa, de origem espúria, a qual alcançara sua redenção vivendo de forma digna.
Maria Rosa por sua vez, fazia questão de ressaltar que sua mãe também alcançara sua redenção, dedicando-se a ações de caridade, as quais dizia que daria continuidade.
Com efeito, os próprios familiares de Mário, com o passar do tempo reconheceram o valor da moça.
Seus pais diziam que Maria Rosa era uma jovem de valor.
Ao descobrirem que a moça se sustentava e que possuía um pecúlio em seu nome, herança de sua suposta mãe Carina, o casal percebeu que não se tratava de uma interesseira.
Como Mário também trabalhasse e tivesse seu próprio patrimônio, Dona Alaíde e Seu Antenor não tiveram como se opor ao casamento.
O jovem mancebo, empregando dinheiro de seu pai, investiu certa quantia, em uma fábrica de porcelanas.
Como o rapaz tivesse talento e tino comercial, a empreitada prosperou, e o moço se tornou proprietário da fábrica, ampliando-a.
E assim, quando se enamorou da jovem, possuía patrimônio próprio. Quais sejam: dois palacetes na capital, a fábrica, e uma fazenda no interior da província.
Percebendo que não poderiam controlar o filho ameaçando-o deserdá-lo, Antenor decidiu não mais fazer oposição direta ao relacionamento.
Aceitou o casamento do filho.
Maria Rosa era a princesa do coração de Mário.
O casamento, conforme já mencionado, foi uma festa de raro esplendor.
Muita música tocada por uma orquestra devidamente contratada para a celebração. Muitas valsas.
Em dado momento, a noiva, envolta em seu vestido branco, sentou-se diante de um piano e começou a tocar algumas músicas, modinhas, para deleite dos convivas.
Foi uma surpresa geral, afinal de contas, nem mesmo Mário conhecia os pendores musicais da moça.
Maria Rosa teve ímpetos de contar que desenvolvera tal talento, instigada por sua saudosa mãe, a inesquecível Carina. Mas ciente do poder que tais palavras teriam, resolveu se calar, demostrando apenas um sorriso.
A moça valsou ao lado do então marido.
Durante a cerimônia, diante de Padre Josias, prometeu fidelidade.
Roberto e Tereza parabenizaram a moça.
Segredaram-lhe no ouvido que Carina devia estar muito feliz.
Maria Rosa emocionou-se com o comentário.
Tanto que precisou pedir licença ao então marido, para se dirigir ao toalete.
Lá, sentada em uma cadeira confortável, começou a lacrimar.
Recordou-se dos poucos momentos em que pode desfrutar de alguma convivência com sua mãe.
Carina, engravidara de um de seus inúmeros clientes, para desespero de Leonor, que sempre lhe recomendara cuidado, quanto ao risco de engravidar.
Ainda assim, a moça, ao se descobrir grávida, a despeito dos conselhos de Madame Leonor e de Violeta, para que abortasse, decidiu levar a gravidez adiante.
Chegou até a se encaminhar a casa de uma mulher, denominada Lucrécia, com vistas a realização do fatídico ato, mas arrependida, desistiu em meio a muitas lágrimas.
Desculpando-se com Madame Leonor, disse que não poderia cometer tamanho crime contra a vida.
A mulher, percebendo o desespero da moça, conduziu-a de volta ao castelo.
Violeta estava inconformada.
Leonor então, pedindo para ficar a sós com Carina, encaminhou-a para uma sala reservada.
Aborrecida, comentou que aquela gravidez poderia atrapalhar sua vida, e que ela ainda não reunia condições de se manter sozinha, nem tampouco de sustentar uma criança.
Chorando, Carina pediu, implorou para que a mulher não a obrigasse a cometer tal pecado.
Disse que tinha consciência de que tão cedo não poderia abandonar aquela vida, mas que ainda assim, não poderia ceifar uma vida que não havia pedido para nascer.
E assim, Leonor, condoída com o desespero da jovem, acabou auxiliando-a.
Violeta ao tomar conhecimento de que Carina ficaria algumas meses afastada da casa, ficou furiosa. Enciumada, comentou que nenhuma das meninas teve direito a este privilégio.
Foi o bastante para a mulher puxá-la pelo braço e dizer-lhe que estava se excedendo. Argumentou que tratava-se de uma situação excepcional, e que para situações como aquela, as regras seriam outras.
Violeta ao ouvir isto, comentou que ela estava abrindo um precedente muito grave, estimulando que as outras moças a fazerem o mesmo.
Ao ouvir isto, Madame Leonor respondeu:
- Mas isto é que não! Isto é uma casa de tolerância não um educandário, tampouco a Roda da Santa Casa.
Violeta sorriu, irônica.
Com isto, Carina foi levada para a fazenda de um amigo da mulher.
Por lá ficou durante alguns meses.
Durante sua estada na fazenda, a moça passeou de charrete, caminhou por entre as plantações de café. Sempre acompanhada pelo dono da propriedade que lhe contava causos divertidos.
A moça deu a luz uma criança, a qual dedicou o nome de Maria Rosa.
Leonor, sempre dedicada a moça, acompanhou-a durante o parto, realizado com a ajuda de uma parteira da região.
Curiosa, depois da criança ser limpa e de Carina se recompor do parto, a mulher perguntou-lhe o porquê do nome.
Carina respondeu:
- Era o nome de minha falecida mãe.
Neste momento, Madame Leonor perguntou-lhe se ainda tinha mágoa de seus tios.
Carina respondeu então, e que diante da situação que estava vivenciando, sentia-se capaz de entender um pouco o gesto dos tios, os quais não reuniam condições financeiras para cuidar dela.
Pensando um pouco, Carina respondeu que sim, já tivera muita mágoa deles, mas, ciente de que deveria proceder de forma parecida com sua filha, comentou que sim, os entendia um pouco.
Com isto, a jovem passou a cuidar da filha.
A brincar com ela, a embalá-la para dormir.
Conforme os dias se passavam, mais apegada ficava a filha.
Leonor, ao se aperceber disto, ficou preocupada.
Tanto que por diversas vezes conversou com a moça, dizendo-lhe que sua profissão era incompatível com as funções de mãe.
Isto era o bastante para que Carina se debulhasse em lágrimas.
Com ar comovido, a jovem cortesã, acabou por convencer a mulher a não entregar a criança para adoção.
E assim, a menina foi criada na fazenda, onde era esporadicamente visitada por Carina.
No castelo, poucos sabiam da gravidez de Carina, e assim, a existência de Maria Rosa, foi mantida em segredo.
Somente Violeta sabia da gravidez de Carina.
Não sabia porém, do paradeiro da criança, embora desconfiasse, em razão dos sumiços de Carina, que esta iria se encontrar com a criança.
Era o bastante para se desentender com Madame Leonor, por achar que ela protegia demais a moça.
Violeta no entanto, era pessoa de confiança de Leonor, a qual, sempre que precisava ausentar-se, ficava a cuidar da casa.
Em dado momento chegou a dizer que quando faltasse, o castelo ficaria em boas mãos.
Ao ouvir isto, Violeta se emocionou. Chorando, chegou a agradecer a confiança.
Madame Leonor respondeu-lhe então que às vezes era dura com ela, por sabê-la suficientemente forte para agüentar os trancos que a vida tantas vezes lhe dera. Disse-lhe que era uma mulher de fibra, em que pese ser um pouco dura demais, para com as pessoas que faziam parte de sua vida.
Violeta ao ouvir tais comentários, tentou retrucar, no que foi impedida por Leonor, que respondeu-lhe que não estava lhe criticando, apenas lhe dando um conselho.
Disse-lhe que para substituí-la na direção da casa, deveria agir com docilidade.
Ressaltou que em sua longa vida de cortesã, conseguiu obter mais coisas com doçura que com azedume. Argumentava que o vinagre afasta as abelhas, ao passo que o mel as atraí.
E assim, de vez em quando, Carina se ausentava.
Ia visitar a pequena Maria Rosa.
Visitando-a, ouvi-a chamar-lhe de mãe, ajudava-a a andar.
Viu a criança engatinhar.
Carina lamentava não poder acompanhar todos os passos da filha.
Contudo, ao sabê-la bem cuidada, se acalmou.
A menina teve uma educação esmerada.
A própria Carina ensinou Maria Rosa a dedilhar as teclas de um piano de cauda existente na fazenda.
A criança adorava o jeito misterioso da mulher, que adorava se abanar com um bonito leque, e estava sempre tão bem arrumada e composta.
Dizia que ela parecia uma sinhazinha.
Seu Eustáquio – o dono da fazenda – achava graça.
Cumpre destacar que nesta época, a menina acreditava que era filha do ilustre fazendeiro e de sua falecida esposa, a qual concordara em manter o segredo quando Carina surgiu grávida na fazenda.
Somente quando Carina se despediu daquela vida desregrada, é que ela confessou a menina que ela era sua mãe.
Foi o bastante para Maria Rosa, chocada, recusar-se a receber visitas da mulher.
A criança chamava-lhe de mentirosa.
Argumentava que sua mãe se chamava Ana Carolina, e que ela não devia dizer mentiras.
Carina ficou magoada com a atitude da filha, mas compreendeu-a.
Enquanto isto, passou a viver uma vida casta e discreta. Angariou a simpatia e confiança de todos.
Meses antes de Carina ser morta, Maria Rosa estava se entendendo com a mulher.
Já havia aceitado-a como mãe.
Mas as circunstâncias não permitiram que elas passassem a viver juntas em outra cidade.
Isto por que, quando Carina passou a fazer planos neste sentido, foi assassinada, interrompendo peremptoriamente uma relação que estava apenas começando.
Com efeito, em que pese a morte da mãe, a menina permaneceu na fazenda.
Carina tinha perfeita consciência de que Eustáquio continuaria cuidando de sua filha, como sempre fizera.
E assim, Maria Rosa freqüentou um colégio interno na capital da província.
Mais tarde retornaria ao local, para se anunciar como filha da famosa cortesã, e causar comoção na cidade.
Desejava ardentemente ser aceita.
Para tanto, não poderia esconder a verdade, ou revelar apenas meia verdade.
Tal fato encantou Mário.
O moço dizia que nunca havia visto uma pessoa tão honesta e sincera. Argumentava que nunca conhecera ninguém parecido com ela, nem mesmo homem.
Mas voltando a festa, depois de chorar e se recordar emocionada de sua vida, Maria Rosa enxugou as lágrimas e recompondo-se, retornou ao salão.
Sorrindo, cumprimentou os convidados.

Luciana Celestino dos Santos
É permitida a reprodução, desde que citada a autoria.

CARINHOSO - PARTE I - CAPÍTULO IV

Frequentava as missas celebradas por Padre Josias, munida do indefectível acessório, o qual fazia questão de exibir, quando dos sermões do sacerdote.
Em diversas ocasiões fora vista no confessionário.
Era vista com freqüência ajoelhada, rezando terços.
Também oferecia módicas quantias a título de esmola para os pedintes.
Alguns homens quando a viam passar, diziam que se ela era realmente filha de Carina, havia herdado a beleza da mãe.
Maria Rosa freqüentava a missa, ofertava esmolas.
Havia quem dissesse tê-la visto no cemitério, com os olhos fixos na sepultura de Carina. Semblante triste, expressão de pesar.
Por longo tempo a moça fora vista com desconfiança.
Poucos acreditavam na idéia de que a santinha tivera uma filha antes de morrer.
Contudo, como Maria Rosa, se comportava de forma digna, mesmo sem acreditar na versão da moça, diziam entre si, que era inofensiva.
Como precisava se manter, passou a procurar trabalho.
Tal circunstância, foi motivo de escândalo na cidade.
Maria Rosa, já acostumada com olhares de reprovação, ignorou o fato.
Com isto, passou a bater nas casas ricas da capital em busca de trabalho. Inicialmente, ofereceu-se para trabalhar como criada.
Foram semanas de procura, até a moça encontrar emprego em uma casa de família.
Limpava a casa, preparava as refeições, às vezes cuidava das crianças.
Seus modos refinados e educados, faziam com que a dona da residência questionasse a necessidade da moça trabalhar.
Maria Rosa respondia que recebera uma educação esmerada.
Aprendera a ler e a escrever. Disse que já lera muito livros, conhecera lugares.
Mencionou que sua mãe, enquanto viveu, proporcionou-lhe uma vida de conforto. Sem grandes luxos, mas de conforto. Para garantir seu futuro, a mulher providenciara um pecúlio para a filha, em caso de necessidade. Alegava que poucas pessoas conheciam sua história, e que uma madrinha cuidava dela em confiança.
Maria Rosa disse que sua mãe era bela.
Sempre bem vestida, mesmo quando singelamente trajada. Linda e sozinha.
Emocionada, respondeu que aqueles poucos momentos ao lado de sua mãe, são recordações cálidas e indeléveis.
Comentou que Carina engravidara nos anos que viveu como cortesã em casa de Madame Leonor.

Como ninguém poderia ter conhecimento da história, o fato foi escondido de todos, inclusive das demais cortesãs do rendevouz da mulher.
Leonor cuidou para que a moça fosse descansar em um lugar retirado.
Relatou indiscreta, que muitos homens reclamaram sua ausência.
A dona da casa, ficou incomodada com o comentário.
Maria Rosa, ao perceber isto, desculpou-se.
Disse que não fora sua intenção escandalizar ninguém. Argumentou que Carina não era uma mulher de má fama, escandalosa. Apenas não tivera opção. Respondeu que as mulheres não tinham muita opção. Sorrindo, comentou que ela mesma, tivera que trabalhar como criada em casa de família.
A mulher, ao ouvir isto, perguntou-lhe se estava insatisfeita com o trabalho.
Maria Rosa respondeu sorrindo que não. Argumentou apenas, que gostaria de aplicar o aprendera, transmitindo seus conhecimentos a outras pessoas.
Dona Ester, ao tomar conhecimento do interesse da moça, perguntou-lhe se não gostaria de ensinar os seus filhos. Relatou que poderia pagar pelas aulas.
Maria Rosa ao ouvir a proposta, perguntou a mulher se ela não estava de pilhéria.
Ester respondeu-lhe que não. Estava de fato fazendo uma proposta séria.
E assim, a moça passou a ensinar aos meninos Dário e Péricles, o havia aprendido.
Explicou ao pequeno Dário que seu nome era o mesmo de um imperador da Pérsia, e que Péricles fora um administrador grego, a quem se credita um período conhecido como Século de Ouro.
Curiosos, os meninos faziam perguntas e mais perguntas, e Maria Rosa os ensinava informalmente.
De noite, lia livros e contava histórias infantis.
Contava aos meninos lendas, como a história do Negrinho do Pastoreio, vítima de um cruel senhor que o martirizou por conta do sumiço de uma rês, e o trucidou.
Como a moça usava palavras rebuscadas, precisou explicar aos meninos, o significado das palavras.
Dário e Péricles, adoravam conversar com Maria Rosa.
Com efeito, em que pese este fato, Ester, ao perceber que a moça possuía tão grande conhecimento, aconselhou-a a procurar trabalho como professora.
Argumentou que era um desperdício a jovem guardar tão grande nível de conhecimento só para si. Contou que se ela fora agraciada com tão grande saber, era por que precisava compartilhar com os demais.
Ester, disse que ela deveria dividir o que sabia com muitas pessoas.
Ser generosa como Carina.
A mulher passou a perceber que seu marido passou a nutrir um grande interesse na moça.
Sempre que a moça aparecia na sala de jantar para servir o café da manhã, o almoço ou o jantar, o homem não conseguia disfarçar os olhares interessados em sua direção.
Certo dia, Ester se enervou com o marido e exigiu que o homem tivesse compostura. Argumentou que Jader esta envergonhando a família.
O homem ao ouvir as palavras ásperas da mulher, tentou desconversar.
Ester respondeu-lhe então, que não admitiria ser humilhada por ele.
Jader ficou sem argumentos.
Em dado momento, Ester chamou Maria Rosa para uma conversa.
Com isto, ao se ver a sós com a jovem, Ester disse-lhe que já havia percebido o interesse de Jader por ela.
Maria Rosa tentou desconversar, mas a mulher pediu para que parasse.
Nervosa, a moça tentou dizer que nunca dera esperanças ao homem. Argumentou que sempre procurou se manter afastada de Jader. Mencionou ainda, que a despeito disto, caso ela não acreditasse em suas palavras, poderia demiti-la.
Ao ouvir isto, Ester argumentou que conhecia perfeitamente seu marido e sabia quem era responsável por aqueles fatos.
Mencionou que tinha conhecimento de que Jader era mulherengo, e que não aconselhável que ela permanecesse na casa. Argumentou que ela, sendo jovem e bonita, não estava em segurança.
Maria Rosa concordou. Chegou até a se desculpar por haver causado tantos transtornos.
Ester, compreensiva, disse que lamentava muito sua partida, mas que não poderia ser diferente.
Desta forma, tentando minimizar as dificuldades da moça, prometeu recomendá-la a uma escola tradicional. Lá poderia lecionar e transmitir seus conhecimentos ao maior número possível de pessoas.
Nisto a moça se despediu agradecendo por tudo o que Ester havia feito por ela. Argumentou que durante todo o tempo em que permaneceu na cidade, nunca fora tão benquista por alguém e tratada de forma tão desinteressada.
Desta forma, aproximou-se de Ester e lhe deu um abraço.
Disse-lhe que era uma pessoa muito especial e que Jader não merecia a esposa que tinha.
Em seguida dirigiu-se a seu quarto, onde tratou de arrumar seus pertences.
Voltaria a se hospedar em um hotel.
Antes de partir, Dário e Péricles despediram-se dela com um presente.
Ester pagou-lhe o salário, e lhe deu de presente uma jóia.
Pediu para que levasse consigo e que a vendesse em caso de necessidade.
Maria Rosa, ao se deparar com o mimo, ficou perplexa. Tratava-se de um anel de rubi.
Constrangida, a moça tentou recusar o presente, no que foi impedida por Ester, que argumentou que ficaria ofendida em caso de recusa.
Nisto a jovem despediu-se da mulher.
Chamou um cocheiro e assim, dirigiu-se a um hotel.
Tempos depois, a moça recebeu uma correspondência especial.
Era um convite de um colégio conceituado da cidade, convidando-a para integrar o seu quadro de funcionários, e lecionar para jovens alunos.
Mais do que depressa, a moça dirigiu-se ao colégio.
Vestiu sua roupa mais elegante, colocou chapéu e de sombrinha, saiu a rua.
De coche, chegou no colégio, onde foi recebida pelo diretor, que se admirou de sua juventude.
Ao longo da conversa, a jovem demonstrou segurança, e os conhecimentos necessários para desempenhar o mister.
Razão pela qual foi contratada.
E assim, passou a lecionar.
Ministrava aulas para meninos filhos de industriais, fazendeiros, cafeicultores.

Luciana Celestino dos Santos
É permitida a reprodução, desde que citada a autoria.

sexta-feira, 19 de março de 2021

CARINHOSO - PARTE I - CAPÍTULO III

Nos últimos tempos, fazia planos de sair da casa, queria viver longe dali, uma vida tranqüila e feliz. Coisa que tivera fora dali, dizia.
Relembrou-se da infância miserável, dos momentos de sofrimento, da morte dos pais, de quando fora levada por parentes, para o bordel de Madame Leonor. Lembrou-se do quanto chorou, pedindo para os tios não a abandonarem.
Leonor tentou demovê-la da idéia, mas Carina estava decidida.
A moça argumentou dentro de alguns meses, abandonaria a vida de cortesã.
E assim, o dia em que a moça decidiu abandonar a vida dissoluta, foi uma tristeza imensa no lugar.
Os clientes faziam-lhe propostas para que passasse a viver com eles.
Ofereciam-lhe casa montada, roupas de luxo, jóias, conforto.
Carina porém, recusava a tudo. Agradecia a gentileza, mas declinava as propostas.
Como continuasse sua vida no lugar, passou a viver numa casa simples, sem o luxo e a ostentação de outrora.
Com o dinheiro ganho em sua vida de luxúria, Carina poderia viver uma vida larga, sossegada.
Não obstante este fato, a moça resolveu viver de forma diversa da que vivera por anos.
Para ocupar seu tempo lia, cuidava da casa e se dedicava ao piano.
Também oferecia esmola aos necessitados.
Oferecia alimento a quem batia em sua porta em busca de um prato de comida.
Por adotar trajes e maneiras mais discretas, passou a ser aceita pelas mulheres do lugar.
Conforme o tempo passava, passou a dedicar-se as obras da igreja.
Usava roupas simples, de cores claras.
Com o tempo, Carina passou a ser chamada de santinha, por seus modos suaves, seu jeito bondoso, e por sua caridade.
Instruída por algumas mulheres, passou a dedicar-se a construção de uma capela em homenagem a Nossa Senhora.
Muitos diziam que a viam iluminada.
Com seus longos vestidos brancos e véus da mesma cor, muitos argumentavam que ela se assemelhava a uma santa de altar.
Diziam que ela era uma pecadora redimida.
Nisto, ao aparecer um rapaz coberto de chagas nos arredores da igreja, todos pensaram logo em afastá-lo.
Alguns fiéis diziam se tratar de um leproso, o qual poderia transmitir a doença para todos.
Foi o suficiente para causar uma celeuma.
Alguns se afastaram atemorizados, outros passaram a investir contra o homem.
Foi então que Carina se aproximou e disse a todos, que eles não poderiam agredir o homem, só porque estava doente, precisando de ajuda. Alegou que todos precisavam ser caridosos com quem sofria, pois Deus não gostava de injustiças.
Nisto um dos manifestantes argumentou que se tratava de doença contagiosa, e portanto, de uma questão pública. Mencionou que o estranho não poderia expor a todos a um risco desnecessário.
Carina por sua vez, perguntou ao rapaz insurgente, se ele era médico e se era capaz de realizar um diagnóstico preciso sobre a moléstia do rapaz.
Sem argumentos, o mancebo calou-se.
Nisto a jovem aproximou-se do homem, e tocando em sua cabeça, pediu para que levantasse.
Disse-lhe que lhe daria comida.
Ofereceu-lhe pão e um frasco com água.
Com o tempo, as feridas do rapaz desapareceram.
Em apenas alguns dias, o jovem desfigurado, parecia outra pessoa.
Cuidado por Carina, muitos passaram a afirmar que se tratava de um milagre.
A moça por sua vez, ignorava este fato.
Prosseguia com seu trabalho de benemerência.
Contudo, em que pese a recusa de ser considerada santa, sua nova fama chegou ao conhecimento de Leonor e suas meninas.
Violeta reagiu com ironia.
Dizia que somente faltava a ela um nome de santa. Como se alguém que outrora tivera a vida desregrada da jovem, pudesse se transformar em uma santa. Dizia que só se fosse santa do pau oco.
Leonor ao ouvir isto, dizia que Carina não fazia parte daquele mundo. Relatou que os modos da moça, não combinavam com aquele mundo cínico em que viviam. Falou que se a moça continuasse a viver aquela vida, acabaria por ficar desgostosa.
Com isto, suspirou. Disse que a jovem fora sua melhor discípula, a cortesã mais elegante que pisara em seu castelo.
Leonor admirava a moça.
Gostava tanto de Carinha, que passou a ofertar generosas somas para as obras de benemerência patrocinadas pela jovem.
Era comida, roupas, e até abrigo.
Com o tempo Carina alugou um imóvel que servia de abrigo para moradores de rua.
Mais tarde, auxiliada por outros fiéis, a casa passou também a fornecer aulas de alfabetização.
Um dia, depois de conversar longamente com o padre, a moça, ao ficar sozinha, foi abordada por um homem que elogiou sua beleza singela.
Sem jeito, a moça agradeceu o elogio e se afastou.
No dia seguinte, ao sair da missa, a jovem foi novamente abordada pelo rapaz, que começou a dizer:
- Quem diria! Uma meretriz ser merecedora da alcunha de santa!
Todos os freqüentadores da igreja olharam o homem com ar de reprovação.
Um desses homens, defendeu Carina, dizendo que o passado não importava, já que a moça havia se redimido de suas faltas. Argumentou que ela, ao abandonar a vida dissoluta, desregrada que levava, adotou uma conduta digna, com a qual pautava sua vida. Ressaltou que sua postura era tão digna quanto a de qualquer pessoa de bem.
Também citou uma passagem bíblica na qual Jesus ensinava aos homens, a tolerância.
Tal passagem era a do apedrejamento da mulher adúltera, e Cristo ao ver a cena deplorável, indagou que somente aquele que fosse isento de pecados, que atirasse a primeira pedra.
Como não existem pessoas isentas de pecados, ninguém ousou agredir a mulher.
Desta forma, o homem retirou-se humilhado.
Carina, olhou seu defensor com ternura, como se naquele olhar, agradecesse o gesto de gentileza.
Dias mais tarde, um homem amparado por muletas pediu-lhe para que o curasse de sua paralisia.
Carina, sem graça, respondeu-lhe que não operava milagres.
O homem contudo, insistiu.
Afirmava que assim como ela curara o leproso, restituindo-lhe a saúde, poderia também lhe fazer voltar a caminhar.
Com isto, formou-se uma roda em torno da moça e do jovem.
Carina saiu da praça atordoada.
Conforme o tempo passava formou-se uma romaria em torno de sua residência, fato este que ensejou sua mudança do local.
Leonor, ao tomar conhecimento dos fatos, ficou penalizada.
Tanto que auxiliou-a a arrumar outra casa para morar.
Todavia, foi questão de tempo para que descobrissem onde ela morava.
Carina a todo o momento era cercada. Pessoas lhe pediam ajuda, imploravam para que ela as curasse.
Assustada, a moça a todo o momento dizia que não operava milagres. Argumentava que já estava fazendo o que podia para auxiliar as pessoas.
Certo dia, ao encontrá-la desalentada, Leonor procurou consolá-la.
Carina chorava copiosamente.
Mais tarde, ao perceber que a imposição de suas mãos trazia conforto as pessoas, passou a executar o gesto.
Foi o suficiente para o Padre Josias enervar-se com a jovem, dizendo que ela estava querendo ocupar uma função que era divina.
Revoltado, o sacerdote chegou a dizer-lhe que ela não era digna daquele mister, e que ela não passava de uma versão malsã de Maria Madalena, esta sim, verdadeira seguidora dos preceitos de Cristo.
Sentida, Carina ouviu a tudo calada.
Mas apoiada por alguns poucos amigos, a moça continuou a auxiliar os necessitados.
Com o tempo, passou a receber cartas anônimas contendo ameaças.
Seus amigos, Tereza e Roberto, ao tomarem conhecimento do teor das cartas, aconselharam-na a se acautelar.
Carina porém, não levou em consideração as ameaças.
Prosseguiu seu trabalho.
Até que um dia, tarde da noite, após o retorno de uma missa, a moça foi baleada na porta de sua casa.
Ao sentir o impacto do tiro, a moça caiu desfalecida.
Quando encontraram-na desacordada, fizeram de tudo para reanimá-la.
Carina ainda vivia.
Apenas o suficiente para dizer a todos que continuassem os trabalhos, que não desanimassem, e que tudo acabaria bem. Tendo paciência, todos veriam o resultado.
Despertou um pouco desorientada, para depois soltar seu último suspiro e morrer nos braços de Roberto.
O moço então, ficou deveras desalentado.
Contudo, prometeu a si mesmo continuar o trabalho da moça.
E prosseguiu.
As obras de benemerência continuaram.
Leonor, ao tomar conhecimento da morte da moça, ficou desesperada.
Desalentada, deixou o rendevouz nas mãos de Violeta, para quem vendeu o imóvel e todo o fundo de comércio.
Passou a se dedicar a obras de caridade.
Assim, passou a trabalhar na instituição idealizada por sua pupila Carina.
Dizia a Roberto e Tereza, que de pupila, Carina se tornou sua mestra. Superou-a em lições de vida.
Quando falava da moça, seus olhos invariavelmente se enchiam d’água.
Triste, dizia que se Carina não a tivesse conhecido, sua vida seria diferente, e talvez não tivesse sido morta.
Tereza, sempre que a ouvia proferir estas palavras, dizia-lhe que estava falando besteira.
Argumentava que Carina tivera que passar por aquela prova, e que havia se redimido.
Nisto, com o passar dos anos, Carina passou a ser reverenciada como santa.
Com o tempo surgiram peregrinações em seu nome.
Cerca de dezoito anos após os fatos, surgiu uma mulher de nome Maria Rosa dizendo ser sua filha.
Foi um escândalo na cidade.
A indignação foi geral.
Leonor, a única pessoa que poderia confirmar a veracidade da história, falecera meses antes da revelação.
Mesmo assim, a moça insistia em dizer-se descendente direta de Carina.
Viera sozinha para a cidade. De seu, apenas suas malas, seus pertences.
A jovem vestia-se com longos vestidos e anáguas, além de véus rendados e leque.

Luciana Celestino dos Santos
É permitida a reprodução, desde que citada a fonte.

CARINHOSO - PARTE I - CAPÍTULO II

Carina então, passou a desfilar sua beleza pelo ambiente.
Quando os freqüentadores da casa a notaram, passaram a perguntar a Leonor quem era aquele anjo, de pele pálida e cabelos negros.
Leonor dizia que era uma menina nova, que passara a viver sob sua proteção.
Contava que a moça estava recebendo a melhor instrução com que poderia esperar. Literatura, conhecimentos gerais. Relatou que a menina sabia ler e escrever, que recitava poemas e cantava modinhas com primor.
Adotando um tom confidente, mencionou que a moça sabia cozinhar com ninguém.
Leonor afirmou que se tratava de uma princesa, alguém para ser tratada como uma flor.
Um dos freqüentadores do lugar, comentou que por uma mulher igual aquela, ele seria capaz de montar uma casa, e cobri-la de jóias e presentes.
Em uma das aparições da moça, um freguês afoito, tentou puxá-la para junto de si, no que foi controlado por Leonor, que disse que Carina ainda não estava a disposição dos freqüentadores. Comentou que no momento oportuno, ele poderia privar da companhia da moça.
Mais tarde, aflita, a moça pediu insistentemente a Leonor que não a obrigasse a servir o tal freguês.
Leonor tentou acalmá-la.
Prometeu a ela, que iria servir um cliente de fino trato. Disse-lhe que se tratava de um jovem belo, rico e fascinado por belas mulheres.
E assim, se fez.
Deodoro, o jovem mancebo, admirado por muitas mulheres, assíduo freqüentador da casa, encantou-se com a beleza da jovem.
Leonor, encarregou-se de ressaltar ainda mais a beleza da moça, com um rico vestido, anáguas, bordados coloridos. Para compor o visual cândido, cabelos presos por tranças, poucas e delicadas jóias, e um lenço de cambraia.
O moço ao ver a moça tão singelamente trajada, em contraste com os exuberantes vestidos, e com modos quase tímidos, a caminhar pelo salão como se não estivesse ali, ficou encantado.
Leonor, ao perceber o interesse do ilustre freqüentador, providenciou logo a aproximação de ambos.
Carina, tímida, tentou se desvencilhar do encontro, mas Leonor exigiu que ela conversasse com o moço. Argumentou que ela tinha a opção de não trabalhar na casa e viver na miséria, morando nas ruas e podendo ser abusada por qualquer homem que a visse só e abandonada; ou então, abrir mãos de certos escrúpulos e cuidar para viver poucos anos naquele ambiente, e depois construir uma vida convencional em qualquer lugar distante daquelas paragens.
Ao ouvir estas palavras de advertência, a moça engoliu em seco, e enchendo-se de coragem, foi se apresentar ao moço.
Deodoro, gentil, atencioso, conversou com a moça como se conversasse com alguém que conhecesse há muito tempo.
O moço contou-lhe sobre suas brincadeiras de criança, de como adorava atormentar sua irmã.
Tentando chamar a atenção da moça, o rapaz disse-lhe que parecia conhecê-la de algum lugar.
Foi o primeiro cliente de Carina.
Orientada por Leonor, a moça levou o jovem para sua alcova.
Momento difícil, no qual foi auxiliada pelo cliente.
Com o tempo, a moça conseguiu conquistar bons clientes da casa.
Violeta e outras moças por sua vez, ficaram indignadas.
Reclamaram com Madame Leonor, que Carina estava lhes tirando clientes.
No que a cafetina argumentou que os fregueses preferiam a jovem. Tentando amenizar os ânimos, comentou que Carina era novidade e que com o tempo, as coisas iriam se normalizar.
O tempo passou, e o frisson pela moça não diminuiu.
Carina continuou angariando bons clientes.
Também passou a sofrer ameaças.
Quando Leonor adentrou seu quarto para conversar sobre as ameaças que vinha sofrendo, Carina já vivia há alguns anos no lugar.
A mulher comentou que Carina se tornou uma mulher refinada, de gosto requintado. Disse-lhe que dali há alguns poucos anos, poderia abandonar aquela vida e se esquecer de tudo.
Todavia, dizendo-lhe que não estava em condições de abandonar tudo, repetiu o discurso que dissera quando Carina titubeou em se apresentar ao seu primeiro cliente. Comentou que estava em suas mãos, garantir um futuro tranqüilo e sem sobressaltos; ou viver o restante de sua vida de forma obscura e na miséria. Argumentou que ela já havia ido muito longe para desistir de tudo de uma hora para outra. Disse-lhe que compreendia sua aflição, mas que isto não deveria afastá-la de seu objetivo.
Segurando suas mãos, Leonor falou-lhe que ela fora o seu melhor projeto, e que era seu maior orgulho. Argumentou que ela era uma verdadeira ladie. Discreta, refinada, bonita, inteligente. Ressalvou que ela teria um futuro brilhante. Argumentou que ela poderia ser ainda maior que Domitila de Castro.
A moça porém, ameaçada por um freguês raivoso, estava com medo.
Dona Leonor não fez por menos.
Salientou que o ensandecido, não teria mais coragem de aproximar e importuná-la. Argumentou que possuía meios para afastar clientes inoportunos.
Carina por sua vez, depois da longa conversa, concordou em se apresentar, ainda aquela noite.
Com isto, a jovem prosseguiu sua rotina.
Encontros amorosos a noite, e durante o dia, alguns passeios pela cidade.
O fato de ser alvo de olhares constantes, a incomodava.
Leonor a ensinou a ignorar os olhares cobiçosos e invejosos de uns e outros.
Dizia que nenhum ser humano seria capaz de agradar a todos.
Carina conversava com os clientes, recitava trechos de poesias. Lia obras em francês.
Leonor, pessoa instruída que era, ensinou-a a ler, escrever, bordar, costurar, tocar piano, falar francês.
Carina era a mais refinada cortesã do estabelecimento.
Em um sarau organizado por Madame Leonor, a moça mostrou seus dotes artísticos, entoando uma modinha.
Também dançou com freqüentadores da casa.
Violeta e as demais cortesãs da casa, ficavam enciumadas. Diziam que ela iria roubar todos os freqüentadores da casa para ela.
Leonor, quando ouvia os comentários, recomendava que as moças fossem passear pelo salão.
Quando Carina tocou piano, as moças aproveitaram para dançar com os clientes.
Leonor recitou alguns poemas.
Nisto, um dos freqüentadores pediu a palavra, e recitou um belo poema de Álvares de Azevedo.
Foi aplaudido entusiasticamente.
Mais tarde, Carina recolheu-se ao quarto com um freguês.
Quando saía da casa, devidamente acompanhada por Leonor e outras meninas, a jovem chamava a atenção de todos.
Muitos passantes paravam para admirar o bonito préstito de mulheres seguindo pelas ruas da capital da província.
Alguns homens, tiravam o chapéu para as bonitas mulheres.
E até mesmo Leonor, do alto de seus cinqüenta anos, atraía a admiração de alguns freqüentadores da casa.
Muitos galantes lhe diziam que era uma mulher belíssima. Com a pele de um pêssego e o frescor e a vivacidade de uma jovem moçoila.
Madame Leonor soube fazer bom uso de sua beleza, amealhou fortuna. Diziam suas pupilas, as cortesãs, de sua famosa casa – sempre festiva e alegre.
Leonor fazia questão de decorar a casa com mastros e bandeiras durante o tempo das festividades juninas. Adorava os saberes populares.
Para suas meninas, providenciou roupas confeccionadas com estampas florais.
Já para Carina, sempre Carina – como reclamavam as outras moças – Leonor providenciou um vestido branco, todo ornado de fitas coloridas.
Violeta chegou a argumentar que o vestido de Carina era mais belo que o seu.
Leonor ao ouvir isto, repreendeu-a seriamente.
A certa altura, chegou a mencionar que estava cansada das críticas de Violeta. Mencionou que nunca estabeleceu preferências. Ressaltou ainda, que Carina sempre mostrou mais interesse em aprender suas lições.
Depois da conversa tensa com Leonor, Violeta ameaçou Carina, dizendo-lhe que ela iria se arrepender de havê-la humilhado. Disse que estava cansada de ser eternamente comparada com ela, a queridinha de Madame Leonor, a princesinha do castelo.
Como Carina não gostasse da ironia, Violeta ressaltou que era desta forma que ela era conhecida na cidade. Contou que todos os clientes que freqüentava a casa da madame diziam que ela era amorosa como poucas mulheres, e que diante de todos se portava como uma grande dama.
Irritada, Violeta dizia que antes dela aparecer, ela era a preferida da madame, e que nenhuma das meninas da casa se comparavam a ela. Acusou Carina de ser a usurpadora de seu posto de preferida dos clientes.
Como Carina ouvisse as acusações calada, Violeta continuou a instigar a moça, que por sua vez, não aceitou as provocações.
E assim, deixou Violeta a vociferar, indo recolher-se em seu quarto.
Por fim, Violeta gritou furibunda, que ela iria se arrepender de fazer pouco caso de suas ameaças.
Com isto, Carina foi amealhando fortuna – dinheiro, jóias e bens, deixados por clientes fascinados. Também amealhou amores.
Por diversas vezes, recebeu proposta para abandonar a casa de Madame Leonor e viver como amante de ricos senhores.
Certa vez, recebeu proposta de casamento.
Educadamente, recusou a gentileza da oferta, dizendo que não poderia casar-se com tão distinto cavalheiro, posto que já se encontrava comprometida com uma vida que não era apropriada a uma moça que estava disposta a casar-se. Firme, disse que não havia retorno para ela, e que por mais que gostasse da gentil proposta, não poderia casar-se com ele e comprometê-lo para sempre com seu passado. Argumentou que desta forma, estaria destruindo a vida de alguém, não seria feliz.
Por último, finalizou argumentando que por mais que parecesse contraditório, ali possuía a proteção de Madame Leonor, com a qual não poderia mais contar quando saísse dali. Comentou que não seria aceita por nenhum dos amigos, familiares e conhecidos do rapaz, e que com o tempo, o amor, seria substituído pela vergonha.
O jovem, desapontado, tentou argumentar, mas Leonor aparteando, disse que Carina não poderia se casar com ele, em razão de uma série de convenções sociais. Reiterou os argumentos da jovem, salientando que ele não estava em condições de enfrentar a família para sustentá-la.
Relatou que em pouco tempo, a jovem teria que trabalhar para sustentar a família.
Ao ouvir isto, o moço protestou. Alegou que ela jamais trabalharia fora.
Leonor então, argumentou que Carina não poderia aceitar a proposta.
Deixou o moço entender que a moça já tinha um protetor, e que se ele se intrometesse na relação de Carina e o tal homem, poderia ter problemas.
O jovem, temeroso, deu-se por vencido.
Desistiu da proposta de casamento.
Contudo, passou a seguir a moça por algum tempo, até desistir de assediar Carina.
Carina costumava dar esmola as pedintes, e adjutórios aos necessitados.
Violeta e as outras meninas, ao notarem o costume da moça, de reservar parte do dinheiro que recebia dos clientes, para esmolas, a criticaram. Diziam-lhe que estava louca em reservar tão elevada quantia para esta finalidade.
Violeta respondeu-lhe que ela poderia utilizar valores módicos para tal intento.
Carina sorria dizendo que sabia o que estava fazendo.
Com isto, quando os necessitados recebiam as esmolas, agradeciam-na efusivamente.
Em outubro, Leonor, Carina e as meninas, organizavam uma festa para os garotos pobres da região.
Festa esta em que os meninos comiam regaladamente.
Carina gostava de conversar com os meninos, saber com era sua vida...

Luciana Celestino dos Santos
É permitida a reprodução, desde que citada a fonte.

CARINHOSO - PARTE I - CAPÍTULO I

O cortejo acompanha o caixão em passadas lentas e muitas orações.
São pessoas simples que acompanharam os últimos passos da jovem, que outrora cortesã, tornou-se segundo eles, mulher de bem.
Carina era uma jovem bela, de longos cabelos e olhar doce.
Com sua voz suave, cativava a todos.
Como cortesã, encantou a muitos homens, ocasionando a fúria de esposas e moças casadoiras.
Elegantemente trajada, perfumada, bem penteada, discreta.
Sempre impressionava a todos com sua elegância.
A mulher, acompanhada de uma senhora mais velha, de nome Leonor, saía para fazer compras nas ruas de comércio da cidade. Também compravam víveres, aves, alimentos.
O leite era entregue na porta do estabelecimento da cafetina.
A fama do bordel era tamanha, que extrapolava os limites da cidade.
Os homens ficavam encantados com a beleza da moça.
Contudo, não ousavam se aproximar. Diziam que Carina parecia uma pintura de tão bela.
Algumas mulheres, também observavam as duas mulheres ricamente adornadas, cheias de donaires e de jóias.
Muitas admiravam o talhe e a elegância de Carina. Comentavam entre si, que muitas mulheres de fino trato não eram portadoras de tão belos e delicados modos.
Outras mulheres por sua vez, retrucavam dizendo que aquilo era bobagem. Que nenhuma mulher de estirpe, ficaria em desvantagem em relação a duas marafonas.
Os moleques pobres do lugar, gostavam das gorjetas que Leonor lhes dava para carregarem sacolas.
Também gostavam das sobras de comida oferecidas por Carina.
Diziam a moça, que sua bondade a fazia se parecer com uma santa.
Desta forma, a jovem seguia com sua triste vida.
A noite, era sorridente e solícita para os homens que podiam pagar uma pequena fortuna para tê-la nos braços.
Muitos se apaixonaram por sua beleza, seus modos gentis. Confundiram sua gentileza com afeto.
Com relação a estes amantes insistentes, Leonor se encarregou de afugentá-los.
Mandava os homens embora.
Como esporadicamente apareciam estes inconvenientes apaixonados, a mulher ameaçava denunciá-los a suas famílias e até a surrá-los, se voltassem a importunar sua mais valiosa pupila.
A certa altura, ao se depararem com os escravos bem vestidos, altos e alinhados, os amantes se afastavam.
Até que se cansarem de serem rechaçados.
Um deles chegou a ameaçar a moça. Disse-lhe que iria se vingar.
Argumentou que nenhuma mulher o havia rejeitado, e que não seria Carina quem abriria precedentes. Jurou vingança.
Ao ouvir as imprecações do moço, Leonor recomendou a Carina que se acautelasse.
Por algum tempo, a moça ficou temerosa. Evitava sair do bordel.
Temia se deparar com o moço.
Leonor, ao perceber o retraimento da jovem, que chegou até a pedir para não trabalhar, resolveu conversar com ela.
Carina, permanecia trancada em seu quarto.
Quando Leonor foi conversar com ela, a moça observava a janela, observava a rua através da gelosia.
Ao vê-la tão absorta, a cafetina chamou-a docemente.
Carina, entretida que estava em seus pensamentos, assustou-se.
A mulher, ao perceber que a moça se assustou, pediu desculpas. Contudo, insistiu para conversar.
Carina tentou argumentar dizendo que precisava ficar algum tempo sozinha, mas Leonor interrompeu-a dizendo que precisavam conversar ... e muito.
Tentando tranqüilizá-la, a mulher argumentou que ela não precisava esconder-lhe nada.
Recordou-se do tempo em que a recolheu em sua casa, quando a moça não tinha a quem recorrer, tampouco para onde ir. Comentou que Carina parecia um bicho acuado.
Assustada e maltratada, ainda assim, deixava entrever a beleza nascente, o encanto de mulher que se tornaria com o passar dos anos.
Leonor atenciosa, dedicou toda sua atenção e cuidados, àquela menina de cerca de treze anos, que segurava uma colher, desconhecendo outros talheres, como faca, garfo.
A cafetina, ensinou-lhe tudo o que sabia.
Boas maneiras, a maneira de cumprimentar os fregueses, a segurar os talheres, a segurar os copos, de se portar. Ensinou-lhe também a ler, e estimulou a moça a ler Machado de Assis, Joaquim Manoel de Macedo, Victor Hugo, entre outros autores da época.
Dizia a moça que ela deveria seduzir os homens, não apenas com sua beleza, mas também sua inteligência e cultura. Argumentava que estes eram os maiores capitais que ela poderia almejar, posto que se tratava de uma riqueza que ninguém poderia lhe tomar, ao contrário de quaisquer bens materiais, porventura alcançados. Ressalvava porém, que nem por isto, deveria recusar bons presentes, dinheiro, jóias, propriedades.
Argumentava que a beleza era um dom efêmero, e que ela deveria amealhar um patrimônio. Assegurar uma velhice tranqüila.
Rindo, dizia que Carina devia achá-la louca, por aconselhá-la a pensar em uma eventual velhice.
Sorrindo ainda, completava dizendo que o tempo lhe mostraria que estava correta.
Carina tentava entender aquelas palavras.
Inicialmente auxiliava nos serviços domésticos.
Auxiliava a preparar as refeições, a lavar a louça, cuidava das roupas das cortesãs que trabalhavam na casa.
Cautelosa, Leonor evitava que a menina adentrasse o salão, no horário de funcionamento do estabelecimento.
E assim, Carina ficava a fazer faxina.
Por ciúmes, algumas cortesãs diziam que a menina era protegida de Madame Leonor.
Com o tempo, a moça foi percebendo qual era o trabalho das meninas.
A certa altura, mais crescida, Leonor providenciou-lhe vestidos bonitos, perfumes. Passou a sugerir que ela circulasse pelo salão.
Carina, por sua vez, se recusava.
Leonor paciente, dizia que ela decidiria o momento em que iria começar a trabalhar. Contudo, sugeriu-lhe que não se demorasse nesta decisão, ou ela não poderia mais contar com sua proteção.
As outras meninas, ao tomarem conhecimento deste fato, começaram a provocá-la dizendo que ela era a queridinha de Madame Leonor.
Enciumadas, hostilizavam Carina, dizendo que desde que ela chegara a casa, só tivera privilégios.
Leonor, ao tomar conhecimento deste fato, repreendeu as moças. Argumentou que todas elas tiveram oportunidade de aprendizagem, e que se prepararam para a nova vida.
Violeta, ao ouvir isto, retrucou dizendo que Carina estava ali há anos.
No que a mulher respondeu que todas tiveram o tempo que precisaram para desabrocharem. Carina também tivera seu tempo.
E assim, ainda que contrariada, a moça passou a circular pelo salão.

Luciana Celestino dos Santos
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