CAPÍTULO 57
Quanto ao Curupira, trata-se de um caapora, residindo no interior das matas, nos troncos
das velhas árvores.
De defensor de árvores passou a ser protetor da caça, tal-qualmente sucedeu à
Diana greco-romana. 58
Os indígenas defendiam-se andando com um tição flamejante durante as jornadas noturnas.
Esses fantasmas da noite fogem da claridade que os homens dominam.
Negros e orientais
viajam com fogos, amedrontando os bichos fabulosos que povoam as horas escuras.
Trata-se de um grande homem coberto de pêlos negros por todo o corpo e cara, montado
sempre num porco de dimensões exageradas.59
Em qualquer direção, pelo interior do Brasil, o Caapora-Caipora é um pequeno indígena,
escuro, ágil, nu ou usando tanga, fumando cachimbo, doido pela cachaça e pelo fumo, reinando
sobre todos os animais e fazendo pactos com os caçadores, matando-os quando descobrem o
segredo ou batem número maior das peças combinadas.
O Caipora pequeno e popular é o velho Curupira, e possivelmente representa o Caapora
inicial, o selvagem apenas, agigantado pelo medo que espalhava no mistério da floresta.60
Se o Caapora fosse um gigante, dispensaria o sufixo açu, aumentativo.
Por todo o nordeste do Brasil duas imagens verbais pintam o duende: fumar como o Caipora
e assobiar como o Caipora.
Dizem, nessa região, comumente o Caipora fazendo-o sempre uma indiazinha, amiga do
contato humano, mas ciumenta e feroz quando traída.
Quem a encontra, fica infeliz nos negócios, e
em tudo quanto empreender.
Do Maranhão para o sul o Caipora é o tapuia escuro e rápido.
No Ceará, além do tipo
comum, aparece com a cabeleira hirta, olhos de brasa, cavalgando o porco, caititu, e agitando um
galho de japecanga (Smilax).
Engana os caçadores que não lhe trazem fumo e cachaça, e surra impiedosamente os
cachorros.
Em Pernambuco apresenta-se com um pé só, e este mesmo redondo, como o pé-de-garrafa,
e o segue o cachorro Papa-Mel.61
Na Bahia é uma cabocla quase negra ou um negro velho, e também um negrinho em que
só se vê uma banda.62
No Sergipe, quando não o satisfazem, mata o viajante a cócegas.
No Extremo Sul reaparece o homem agigantado.
No Paraná é também um gigante peludo.
Em Minas Gerais e Bahia, ao longo do rio São Francisco, é um “caboclinho encantado,
habitando as selvas”, com o rosto redondo, um olho no meio na testa.63
Por onde emigra, o nordestino vai semeando suas figuras e crenças.
O Caipora, ou a Caipora, popularizadíssimo em sertão, agreste e praia, vai alargando a área
geográfica do domínio.
O mesmo sucede nas regiões da erva-mate com a Coamanha, mãe-da-erva, apaixonando-se, auxiliando, enriquecendo o namorado, mas perseguindo e vingando bestialmente seu amor
abandonado.
O Caipora, com o contato do focinho do porco, da vara de ferrão, do galho de japecanga
ou da ordem verbal imperativa, ressuscita os animais mortos sem sua permissão, apavorando os
caçadores.64
Existe a versão que “o caipora pode ser afastado mastigando-se alho”, e registra-se um
episódio que é variante do Mapinguari:65
“O Caipora existe mesmo.
Assim como um soco no braço
da gente deixa sinal vermelho, o Caipora também deixa sinais.
Um imigrante português, homem honrado e digno de fé, que foi avisado para não caçar às
sextas-feiras.
Ele riu-se do aviso e foi ao mato procurar jacus: achou um e atirou.
O jacu voou para ele com as garras estendidas e arranhou-o cruelmente.
Ele atirou outra vez.
O jacu voltou e arrancou-lhe os olhos.
Então ele ouviu uma voz dizer:
“Você sabe que não deve caçar nas sextas-feiras”.
Era o Caipora.
O homem voltou cambaleando para casa, e caiu sem sentidos na porta.
Conheci bem esse homem”.
Essa interdição da caça nas sextas-feiras, como na história do Mapinguari do rio Purus,
referente aos domingos, identifica a influência católica da catequese.
58 Discute-se a existência do Caapora quinhentista, contemporâneo do Curupira, e não simples fusão posterior.
Gonçalves Dias (Brasil e Oceânia, 106) traduz facilmente Kaa, mato, e Gerre, ou Guerre, corrutela de Guara, habitante,
morador. O mesmo que pora, Kaagerre é informe e ameaçador como o Curupira de Anchieta.
59 É um mito tupi-guarani, emigrando do Sul para o Norte. Couto de Magalhães.
60 O próprio Couto de Magalhães, querendo escrever em nheengatu gigante morador do mato, grafou Caapora-assu.
61 (Barbosa Rodrigues).
62 (Silva Campos), lembrando os Ma-Tébélés africanos (Blaise Cendrars) ou os Nisnas clássicos, evocados por
Gustave Flaubert na Tentação de Santo Antão.
63 (Manuel Ambrósio).
64 Bibliografia: Couto de Magalhães, O Selvagem, 137; Gonçalves Dias, Brasil e Oceânia, 105; Beaurepaire Rohan,
Dicionário de Vocábulos Brasileiros; Barbosa Rodrigues, Poranduba Amazonense, no estudo do “Kurupira”; Manuel
Ambrósio, Brasil Interior, 71; Cornélio Pires, Conversas ao Pé do Fogo, 154; Luís da Câmara Cascudo, Geografia
dos Mitos Brasileiros, com registro de depoimento de caçadores contemporâneos. Donald Pierson, Brancos e Pretos
na Bahia, 324-325, São Paulo, 1945.
65 Em Silva Campos, LXXVI.
Texto retirado de artigos da internet sobre o folclore brasileiro, e de guias de viagens sobre o Brasil.
Luciana Celestino dos Santos
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