Poesias

quinta-feira, 5 de agosto de 2021

TEMPOS DE OUTRORA - CAPÍTULO 26

Nisso, ao ouvir todo o relato, Ticiano, perguntou:
-- E o que é que isso tem a ver comigo?
Rogério então respondeu:
-- Isto. – e segurando Ticiano, rasgou sua camisa, deixando-o nu. 
Foi então que toda e qualquer desculpa dada pelo rapaz caiu por terra.
Com as roupas de Ticiano em farrapos, Rogério ao ver uma pala, decidiu então, dar o golpe de misericórdia. Mais uma vez segurando Ticiano, Rogério puxou o pala e assim deixou-o completamente desnudo.
Percebendo que não havia mais como esconder nada, Ticiano simplesmente cruzou seus braços por cima do peito, tentando disfarçar o indisfarçável.
Rogério então, comentou irônico:
-- E agora, como devo tratar Vossa Senhoria? Ou será que vai continuar tentando negar o inegável? Heim, Senhorita Letícia Carvalho?
Desconcertada, Letícia não sabia o que dizer. Desorientada, pegou seu casaco, abotoou-o, e saiu em disparada, em desabalada carreira sabe-se lá para onde.
Rogério, percebendo isso, tentou seguir a moça. Debalde. 
Por um instante chegou a se sentir culpado por ter feito todas aquelas revelações. Preocupado com Letícia, perguntou-se inúmeras vezes se não havia exagerado.
Porém agora era demasiado tarde.
Letícia havia caído no mundo. 
Contudo, Rogério temia que ela nunca mais voltasse. Por esta razão, ao perceber que conforme os dias passavam a moça não voltava, Rogério tratou de colocar Horácio novamente em seu encalço. Sentindo-se culpado, sabia que ainda tinha muito o que contar a amiga. E a o contrário do que esta poderia pensar, ele não estava ali para prejudicá-la. Muito embora Letícia não soubesse, Rogério sentia muita admiração por ela. 
Mal sabia ele que Letícia havia partido no encalço de Otávio, na vã tentativa de desvendar o seu passado. 
Sim, depois de ter seu passado desvendado por Rogério, Letícia, sentindo-se ameaçada, tratou logo de partir. Tão logo arrumou sua trouxa, caiu no mundo. Desesperada  por ter sido descoberta por Rogério, Letícia temia, que em resolvendo ficar, este revelasse toda a verdade. 
Triste não conseguia entender por que sempre que estava bem, alguma coisa acontecia para desviá-la de seus planos. Sim, mesmo anos após a tragédia que se abatera sobre sua vida, Letícia continuava fugindo, se escondendo. Por que não podia ter uma vida normal? Por que tinha que viver assim?
Desencantada, a moça partira sem rumo. Estava determinada apenas a acertar as contas definitivas com seu passado. Cansada de ficar o tempo todo se escondendo, Letícia resolvera enfrentar a situação. Acreditando que Otávio era a chave para fazer as pazes com seu passado, decidiu procurá-lo. 
Porém, por mais determinada que estivesse, sentia-se ainda muito angustiada com os últimos acontecimentos. E assim, desorientada, seguia em direção a nada. E foi assim, sem rumo, que a moça acabou caindo em uma armadilha. Ao cavalgar nas proximidades de um palacete, acabou sendo confundida com um dos inimigos do morador, e desta forma, foi aprisionada.
Mantida em cárcere privado, Letícia não conseguia atinar o porquê de tudo aquilo estar acontecendo. Por que afinal fora confundida com um inimigo? Acaso os inimigos se mostram assim tão abertamente aos adversários?
Mas não tinha jeito. Por mais que Letícia argumentasse, nada convencia o morador de que ele estava cometendo um engano. Álvaro, não acreditava nas palavras da jovem. Ainda mais vendo a jovem vestida com suas roupas habituais, todas elas ainda do tempo em que trabalhou para José. Assim vestida, Letícia dava a impressão de ser um homem. 
Todavia, não demorou muito para que o jovem dono do palacete descobrisse toda verdade. Isso por que, depois de passar um longo tempo trancafiada na senzala, Letícia a certa altura, começou a passar mal. Em razão disso, Álvaro recomendou que levassem o rapaz para outro cômodo da casa, para que pudesse repousar.
Com efeito, o mal estar se devia ao fato de que, em uma das inúmeras tentativas frustradas de se evadir do local, Letícia acabou por enfrentar o dono da casa, e este aborrecido, mandou que a colocassem a ferros na senzala, juntamente com os escravos. Contudo, antes que a levassem para lá, Letícia resistiu o quanto pôde. Tanto que tentou inutilmente brigar com os criados de Álvaro. Além disso, como estava chovendo, a moça acabou se molhando, e sem ter como trocar suas vestes úmidas, adoeceu.
Não fosse a intervenção de Álvaro, fatalmente seu estado de saúde poderia ter se agravado. Porém, o desconfiado dono da morada em que Letícia estava, agiu em tempo. 
Isso por que, a moça, doente, mal conseguia se agüentar de pé. 
Diante disso, foram os criados da casa, que cuidaram dela enquanto esteve doente. Por isso nem por um minuto, os mesmos desviaram sua atenção da doente. E foi exatamente por este fato, que Álvaro descobriu que quem ele pensava ser um rapaz, de nome Ticiano, não passava de uma mulher. 
Um dos criados, ao tirar suas vestes e banhá-la, percebeu logo o embuste e tratou de avisar o patrão. 
Álvaro ficou então, surpreso com a novidade. Como podia ser isso? Por que razão uma mulher se vestiria de homem? Acaso estava fugindo de alguém? Pensativo, tentou chegar a uma conclusão. Com isso, a única resposta que conseguia achar para tudo aquilo era o fato de que ela, a moça – da qual ele não sabia sequer o nome –, estava fugindo de alguém. Porém, qual a razão disso? O que fazia a moça se esconder assim? Se fosse isso realmente, certamente devia ser algo muito sério. 
Diante disso, Álvaro pensou diversas vezes em libertar a moça. Contudo, queria saber antes, o que a teria levado a se travestir de homem. Curioso, por esta razão, acompanhou pacientemente sua recuperação. Embora estivesse ansioso para lhe falar, procurou ter o máximo de paciência com ela. 
E assim, conforme os dias foram se passando, Álvaro aproveitou para conhecer a moça. Durante o tempo em que Letícia esteve febril, Álvaro cuidou para arrumassem algumas camisolas para ela. Afinal de contas, se era uma mulher, era assim que deveria se vestir.
Com isso, olhando para ela, ele percebeu que não se tratava de uma mulher comum. Muito embora parecesse frágil, em razão de sua obstinação em fugir e sua resistência física, era forte. Talvez muito mais forte que muitos homens que ele conhecia. Porém, a despeito de sua força, Letícia não era menos bela por isso. Diante disso, Álvaro, a cada dia que passava, ficava cada vez mais intrigado. 
Por isso, não queria afugentá-la. Desta forma, o homem decidiu que teria tato ao conversar com ela. 
Com isso, conforme a moça convalescia, não desejando constrangê-la, mais e mais Álvaro procurou se afastar. Todavia, tal estratagema não surtiu o efeito esperado. Isso por que Letícia, assim que despertou de seu estado de letargia, ao ver-se envolvida em uma delicada camisola de tecido fino, chegou a conclusão de que haviam descoberto sua identidade. Por conta disso, ficou desesperada.
Não bastasse isso, ao se levantar e percorrer todo o quarto, Letícia percebeu que não havia como fugir dali. Isso porque, ao tentar passar pela porta, descobriu que um homem estava parado defronte a mesma. Portanto, não havia maneira alguma de sair dali.
Nisso, Álvaro, ao saber do pronto restabelecimento da moça, tratou logo de ir lhe falar. Intrigado com ela, Álvaro queria saber o porquê de suas vestes masculinas. Por que afinal de contas, ela precisava se esconder?
Letícia, ao ouvir as indagações de Álvaro, tentou de todas as formas possíveis desconversar, mais infelizmente para seu desespero, não foi possível. Como isso, sem ter como escapar, Letícia acabou contando que se vestia como homem, por que queria integrar o exército, e se fosse vestida como uma delicada senhorita, certamente seria ridicularizada.
Foi então que Álvaro, perguntou:
-- Quer dizer então, que todo esse mistério se deve apenas e tão somente ao fato de teres um singelo sonho de ser um soldado? Curioso. Mas então, se era só isso, por que precisou se vestir de homem para vir até aqui? 
-- Por que estando no exército, eu jamais poderia levar vestidos e objetos femininos, para lá, não é mesmo? Ou então desconfiariam.
-- Está certo. Concordo. Mas por que estava tão afoita? Parecia tão preocupada. Parecia até estar fugindo de alguém. Acaso alguém descobriu sua identidade?
-- Não quero falar sobre isso. Me deixe ir. – respondeu ela secamente.
Mas Álvaro insistiu. Como Letícia se calou, o homem resolveu então, fazer uma última pergunta: 
-- Pois bem, eu esqueci de perguntar. Qual é o seu nome, senhorita? Isso Vossa Mercê pode me contar, ou não?
-- Letícia. – respondeu ela, depois de um curto silêncio. 
O rapaz então respondeu:
-- Pois bem Letícia, levando em consideração tudo o que me disseste, eu não irei tomar nenhuma providência com relação a senhorita. Porém, quero que saiba, que enquanto não me esclarecer toda essa história, não poderei deixá-la ir. Por isso, vou deixá-la neste quarto. Aqui poderá ler se quiser. Assim, poderá passar o tempo. Mais tarde eu vou providenciar algumas roupas para você. Desta forma, quero que se sinta a vontade. Está bem? Agora dê-me licença. – finalizou Álvaro se retirando do quarto. 
E assim, muito embora Letícia quisesse retrucar com Álvaro a respeito de sua estada compulsória, o mesmo não a deixou sequer abrir a boca.
Com isso, Letícia ficou profundamente irritada com a atitude arrogante de Álvaro. Porém, sem alternativa, a moça aproveitou para ler um dos livros que haviam sido colocados na estante do quarto. Dessa forma, por horas a fio, ficou entretida com sua leitura. De tão absorta pelas idéias do livro, nem sequer percebeu a entrada do estranho nos aposentos. Álvaro, percebendo então o interesse da moça pela leitura, constatou o óbvio. 
Além disso, depois de vasculhar os pertences da moça, Álvaro descobriu entre suas coisas, uma boa soma em dinheiro, roupas finas e caras, além de alguns livros, bastante manuseados. Diante disso, chegou a seguinte conclusão: Letícia não era uma moça simplória.
Também, em meio a seus pertences, Álvaro descobriu a Certidão de Nascimento da moça. E como já era de se imaginar, lá estava seu nome de batismo. Tal qual ela havia dito, seu nome realmente era Letícia. O que ele não poderia imaginar era que ela pertencia a uma das mais tradicionais famílias da Corte. O rapaz, percebendo isso, ficou ainda mais perplexo com a história contada pela moça. 
Conhecendo por alto a história da família, Álvaro não sabia ao certo qual fora a tragédia que se abatera sobre os Carvalho. Sabia apenas que depois do ocorrido, a felicidade desta família acabou. Cada qual foi para um canto, nunca mais se ouvindo falar sobre o paradeiro de nenhum deles.
Intrigado, Álvaro então se perguntou: Então esta moça fez parte da elite?
Por isso Álvaro, ao ver-se diante da moça, ficou ainda mais admirado ao ver o quanto ela gostava de ler. Tanto que para chamar-lhe a atenção, perguntou:
-- Então gostas mesmo de ler? Interessante. 
Letícia então, surpreendida, se assustou, e deixou o livro cair no chão. 
Álvaro, percebendo que a assustara, pediu-lhe desculpas e insistiu para que continuasse sua leitura. Porém, surpresa com a visita, Letícia se desinteressou pela leitura. Recuperando-se do susto, perguntou-lhe:
-- O que o senhor quer? Por acaso eu não te respondi tudo o que querias saber? Por que não me deixas ir? Se sabes que eu não sou nenhuma espiã, por que não me deixas ir?
-- Pelo simples fato de que não estou totalmente convencido de sua história. – respondeu ele. 
-- E o que falta para te convencer de que estou falando a verdade?
-- Falar a verdade. 
-- Mas o que é que eu não falei? –  perguntou ela, visivelmente angustiada. 
-- Primeiramente, o que a faz se esconder das pessoas. Isso por que, esta história de integrar o exército, não passa de uma grande bobagem. Eu sei perfeitamente que foste membro de uma família nobre. Portanto, és nobre de criação. Tanto que gostas de ler e admira os autores clássicos, como pude perceber ao ver os seus pertences. O que aconteceu com sua família?
Letícia, ao ser inquirida a respeito de seu passado, insistia em dizer que aquele não era assunto para se conversar com um estranho. 
Ao ouvir isso, Álvaro irritado, depois de muito insistir para que ela lhe revelasse o que teria ocorrido em seu passado, acabou por desistir, ao menos temporariamente, de interroga-la a respeito do assunto.
E assim, Letícia continuou a ler. 
Mais tarde, quando ele resolveu então devolver suas roupas, Letícia vestiu-as. Com isso, aproveitando para tentar descobrir uma forma de fugir dali, Letícia passou a esquadrinhar todo o quarto para ver se encontrava uma passagem ou mesmo uma janela aberta para sair. Mas, por mais que perscrutasse minudentemente o quarto, não conseguiu descobrir nenhuma maneira de fugir. Acuada, Letícia resolveu então, apelar. Assim, tentando atrair a atenção de um dos sentinelas, pediu ao homem que estava em frente a porta de seu quarto, que a ajudasse a pegar um livro que não conseguia alcançar. 
O escravo, entrou no quarto e gentilmente se ofereceu para ajudá-la. Letícia, então,  aproveitando a distração do sentinela, tratou logo de pegar sua chave e trancá-lo no quarto. 
A moça, vendo-se temporariamente livre, tratou logo de sair dali. Porém, notando a aproximação de Álvaro, teve que imediatamente se esconder num dos cômodos da casa. Assim, entrando num dos dormitórios da construção, procurou se esconder o melhor que pôde. Todavia, por melhor que tenha se escondido, não tardou para que fosse descoberta. 
Pega tentando fugir, Letícia foi levada para um novo quarto do palacete e lá ficou encarcerada. 
Com isso, Letícia, ao se ver novamente trancada, começou a fazer um escândalo. Avisando o dono da casa que ele estava cometendo uma arbitrariedade ao mantê-la em cárcere privado, a moça gritou a plenos pulmões que tudo aquilo não passara de uma grande confusão. 
Porém, de nada adiantou sua revolta, pois Álvaro não se abalou nem um pouco. Diante do acesso de fúria de Letícia, tratou apenas de se afastar. Cauteloso, recomendou a criadagem e aos escravos que dessem um tempinho para que ela se acalmasse.
E assim, em respeito as ordens dadas, a criadagem só entrou no quarto para levar e buscar a bandeja onde estava a refeição. 
Todavia, se Álvaro estava medindo forças com Letícia, ela também sabia brigar. Acostumada a passar dificuldades, a moça nem sequer tocou na comida.
Álvaro ao saber disso, recomendou que os criados demorassem algum tempo para levar a próxima refeição. 
Porém, isso de nada adiantou, porque novamente Letícia recusou a comida. 
Teimosa, durante dois dias Letícia se recusou a comer. 
O rapaz ao saber disso, foi tomado de uma profunda irritação. Isso por que, aquela história estava indo longe demais. Onde já se viu isso? Como alguém poderia ficar todo aquele tempo sem comer?
Incomodado com a teimosia de Letícia, Álvaro foi ter com ela. Afinal, não podia admitir que aquela situação prosseguisse. 
No entanto, quando finalmente foi conversar com ela, ao entrar no quarto onde a moça estava, Álvaro constatou que esta dormia. Percebendo isso, retirou-se do quarto e conversando com os criados, percebeu que ela passara quase o dia inteiro acamada.
Preocupado, imediatamente retornou ao aposento onde Letícia dormia e enquanto tentava acordá-la, uma das escravas preparou uma sopa para que a moça tomasse. 
Nisso o mancebo, insistia para que ela acordasse. 
E assim, depois de muito insistir, Álvaro acabou conseguindo fazê-la despertar. 
E muito embora Letícia tivesse acordado aborrecida, Álvaro fez o todo o possível para que ela se mantivesse desperta. Colocando a mão em sua fronte, percebeu que a moça tinha um pouco de febre. 
Foi nesse instante que uma das escravas, trazendo um prato de sopa, entrou no quarto, e deixou a bandeja em cima da mesa que havia no quarto. A seguir, se retirou.
Álvaro, ao constatar que Letícia não tomaria a sopa por bem, ordenou que um dos escravos a segurasse para que ela não tivesse como recusar a refeição.
A moça, então, percebendo que ele não estava brincando quando dissera que a faria tomar a sopa, resolveu aceitar a contra-gosto, a refeição. Porém, como estava debilitada, acabou tomando só parte dela. 
Álvaro satisfeito, ao ver que Letícia tomara ao menos parte da sopa, ordenou ao escravo para que levasse o prato até a cozinha.  
Nisso, Letícia, ao se levantar da cama, acabou caindo sentada. 
Álvaro, ao ver isso, tratou logo de lhe passar uma admoestação:
-- Está vendo só que no que dá, ficar sem comer? Mal consegue se manter em pé.
Mas Letícia irritada, respondeu que aquele era apenas um mal estar passageiro. Porém, não ousou mais levantar. 

Luciana Celestino dos Santos 
É permitida a reprodução, desde que citada a autoria.

TEMPOS DE OUTRORA - CAPÍTULO 25

Mariana, diante da constante ausência do marido, passou a se sentir cada vez mais sozinha. Sem a companhia dos amigos da Corte, só tinha agora os vizinhos da localidade para visitar. Por esta razão, sentia-se só. 
Além disso, sempre que Otávio voltava para casa, invariavelmente os dois acabavam brigando. Sim, Mariana, estava cansada de viver na região. E ao ver seu marido, freqüentando livremente os salões da Capital do Império, sentia-se profundamente irritada com ele. Relegada a segundo plano, Mariana sentia-se desprezada e diante disso, seus acessos de ira, eram freqüentes. Por via de conseqüência, o alvo era sempre o Otávio. 
Assim, sozinha, triste e desolada, Mariana acabou encontrando conforto ao lado de um amigo. Amigo este que a ajudou no momento em que ela mais necessitava de auxílio. Sim, o cavalheiro que lhe passou a fazer companhia, era Júlio. O mesmo rapaz que a defendeu quando estava sendo importunada por um sujeito mal encarado. 
Júlio, porém, era gentil demais para se insinuar. Ainda mais, sabendo se tratar de uma mulher casada.
Além disso, de origem humilde, Júlio não se sentia em condições de igualdade com Mariana, para ousar cortejá-la. Ao contrário, respeitoso que era, sentia-se até constrangido quando ela lhe pedia para fazer um pouco de companhia e conversar.
Todavia, conforme o tempo foi passando, mais e mais os dois foram se aproximando. Mariana e Júlio ficaram tão amigos, que até os moradores do lugar comentavam. Contudo os comentários eram todos desairosos em relação a conduta de ambos.
Isso tudo em razão da confiança que Mariana mostrava a Júlio. Este ao se tornar seu amigo, passou a freqüentar a casa da família, quando Otávio não estava em casa. 
Assim, estava armada a rede em que fatalmente Júlio, e toda a família de Mariana se veria enredada. 
A forte amizade que ligava Júlio e Mariana, depois de algum tempo, foi descoberta por Otávio, que sentindo-se traído, humilhou de todas as formas possíveis sua mulher.
Ao perceber que estava grávida, Mariana não conseguiu convencer nem por um minuto seu marido, de que o filho que esperava era dele. Muito embora reconhecesse que a amizade entre ela e Júlio não era muito comum, jamais aceitou a alegação de que fora infiel. Ao contrário, como explicação para seu comportamento ausente no tocante a família, Mariana dizia que estava cansada de viver naquele mausoléu, e que se sentia muito só. 
Porém, quando seu marido gritava exigindo explicações, ela dizia que tudo aquilo não passava de um equívoco. De uma armadilha que prepararam para os Carvalho. 
Otávio porém, ao ouvir essas palavras, não ficou nem um pouco convencido. Nem mesmo diante das lágrimas de Mariana, se convenceu de que o ela dizia era verdade.
Não bastasse isso, a cidade ansiava em acompanhar o desenrolar dessa história. E assim foi. 
Furibundo por se acreditar enganado, Otávio não pensou duas vezes em entregar sua mulher aos cuidados de uma senhora que morava na cidade.
Letícia e Rafael, ao terem que se despedir da mãe, não entenderam a razão de tudo aquilo. Muito embora não soubessem exatamente o que estava acontecendo, sabiam que algo de muito estranho havia ocorrido. Contudo, toda vez que perguntavam a Regina ou algum dos escravos o que estava acontecendo, nenhum deles lhes respondia claramente.
Para piorar, Otávio estava cada vez mais distante dos filhos. Arrasado, só conseguia pensar em sua suposta traição. Agressivo, cada vez que um de seus filhos se aproximava, reagia com uma profunda ira. 
Por conta disso, diversas vezes Letícia e Rafael choraram. Não conseguiam entender o estava acontecendo. 
Não conseguiam acreditar em tudo o que estava acontecendo. Sentiam falta de Mariana. Letícia, ao lembrar de seus passeios com a mãe pela cidade, recordou-se de um dia em que queria por queria uma coisa – não se lembra o que –, e foi severamente repreendida por Mariana. Isso por que agindo como uma criança mimada, a menina conseguiu tirar a mulher do sério. 
Após, Letícia percebendo que os acontecimentos se precipitavam sem que ela ao menos compreendesse o que estava se passando, passou a ficar cada dia mais triste. Não queria saber de comer, estudar, muito menos de brincar com seu irmão. Não conseguia entender por que sua mãe tinha partido.
Certo dia, ao ver um estranho se aproximando da fazenda, pronto para falar com Mariana, Letícia ficou deveras assustada. Afinal de contas, o que um estranho poderia estar querendo com sua mãe?
Seu pai, ao perceber que Letícia tinha ouvido parte da conversa do estranho, ficou tão irritado que passou a bater na filha. 
Regina – a preceptora das crianças, ao ver Otávio batendo em Letícia, tratou logo de intervir e repreendê-lo. Decepcionada com o comportamento dele, dizia:
-- Ela não tem culpa do que está acontecendo, e o senhor não tem o direito de descontar sua raiva nela.
Letícia, depois disso, só fazia chorar. Sentindo-se sozinha, pedia todo dia para Regina levá-la até onde sua mãe estava e deixá-la com ela. 
A preceptora porém, não podia levá-la até onde a Mariana estava. Isso por que, havia sido proibida por Otávio, de comentar sobre o assunto. 
Mas Letícia insistia com isso. E cada vez mais triste, desejava falar com a mãe.
Regina porém, não podia fazer nada.
Um dia porém, cansada de esperar por uma autorização de seu pai, Letícia decidiu ir sozinha para a cidade. 
E assim o fez. Caminhando pela estrada, Letícia acabou aceitando a carona de um sitiante que a levou de carroça até a cidade. Ao lá chegar, desceu da carroça e agradeceu a carona. Depois, a menina foi diretamente bater na porta da senhora que sabia estar cuidando de sua mãe. Porém, por mais que batesse na porta e pedisse para entrar, ninguém atendia. 
Diante disso, Letícia começou a gritar para que abrissem a porta.
A garota fez um escândalo tão grande que todos os passavam pela rua naquele momento, comentaram:
-- Só podia mesmo ser filha daquela mulherzinha, para se atrever a fazer um escândalo tão grande quanto este. Onde já se viu um coisa dessas?
Ouvir esta imprecação, só serviu para fazer a garota chorar. 
Triste, Letícia não conseguia entender por que as pessoas tinham tanta raiva de sua mãe. 
Contudo, não demoraria muito tempo para ela descobrir a razão de tudo. 
Com isso, a peripécia de Letícia, ao ser descoberta por Otávio, não foi bem interpretada por ele. 
Por esta razão, quando a menina finalmente apareceu em casa, foi logo punida. 
Otávio, que há tempos estava irritado com Letícia, passou a bater nela sem nem dar a chance dela se explicar. 
E assim, mais uma vez Regina teve que intervir na confusão. Ao ver a menina gritando, não podia ficar parada. 
Isso para Otávio, foi a gota d’água. Irritadíssimo, respondeu:
-- Parabéns, Letícia. Conseguistes o que queria. Conseguistes me indispor com minha criadagem. Nem mesmo meus escravos me respeitam mais. Vosmecê não me respeita mais. O que mais você quer? Me desmoralizar publicamente, como o fez sua mãe? Às vezes eu me pergunto se você é mesmo minha filha. Vosmecê é tão diferente de mim. Por que será?
Ao ouvir isso, Regina mandou Otávio se calar. Não podia admitir que mesmo sendo seu patrão, ele falasse com Letícia daquela maneira. 
Otávio porém, ao ver o comportamento de Regina, advertiu-a de que, caso se comportasse novamente daquela maneira, seria despedida.
Mas Regina não se intimidou. Ao contrário, disse que ele poderia fazer como achasse melhor. Porém, independente de qualquer coisa, levaria Letícia e Rafael com ela.
Otávio riu. Afinal de contas, como ela, sendo uma simples empregada, podia ser tão atrevida daquele jeito? Isso por que, ele era o responsável pelos dois e jamais aceitaria que seus filhos fossem levados dali.
E assim, o martírio perdurou por longos meses. 
Letícia, angustiada pela falta de notícias sobre sua mãe, dormia e sonhava com ela. Ao sonhar, acordava chorando. 
Regina, ao ouvir o choro de Letícia sempre ia até seu quarto consolá-la. Penalizada, a mulher não sabia mais o que fazer para acalmá-la. 
Com isso, Letícia ficava a cada dia mais triste. 
Rafael também se ressentia com a falta da mãe, mas foi Letícia, quem mais sofreu com o exílio de Mariana. 
Nessa época, diversas vezes, Júlio foi até a fazenda onde moravam os Carvalho para tentar conversar com Otávio e lhe explicar que tudo aquilo não passava de uma intriga. Dizendo que o único erro de Mariana fora ser imprudente, comentou nada de mais sério havia acontecido. Além disso, insistiu para que Otávio acreditasse na esposa.
Otávio, porém, ao ouvir as palavras de Júlio, ficou profundamente irritado. Por conta de sua ira, chegou até a agredi-lo. 
Júlio, porém, percebendo que era mais forte que Otávio, não tirou vantagem disso. Ao contrário, deixou que o homem extravasasse sua raiva. 
Regina no entanto, sempre que percebia alguma confusão, pedia para que alguns dos escravos apartassem a briga. Após, insistia com Júlio para que saísse da fazenda.
O rapaz atendendo o pedido da mulher partia.
Com isso, definitivamente os céus que iluminavam a vida da família Carvalho se cobriu de chumbo. 
Nisso, Letícia, em um de seus sonhos, pressentindo que em breve algo de decisivo aconteceria, mais uma vez saiu escondida de casa e foi tentar ver sua mãe. Angustiada, temia que esta fosse a sua última oportunidade de vê-la.
Foi então que ao chegar na cidade, a menina descobriu que ela estava em trabalho de parto. 
Espantada, Letícia descobriu que sua mãe estava grávida. De posse dessa informação, passou a ligar os fatos. Pensando, pensando, chegou a conclusão, de que se o seu pai estava se empenhando tanto em esconder esse fato do restante da família, é por que havia algo de estranho naquela gravidez. Não obstante isso, ao se lembrar da visita do estranho, e de Júlio à fazenda, Letícia então concluiu: Se havia tanta gente insistindo para ver Mariana e falar com seu pai, é por que ela havia feito algo de errado. Porém, não conseguia entender o que poderia ser.
Mas não demoraria muito para descobrir o que era.
Na tarde daquele mesmo dia, sua mãe dera a luz a um menino. Porém, mais uma vez, Letícia não pôde se aproximar da mãe. 
A garota ficou arrasada ao saber que não poderia ver o seu irmão. 
Mal sabia ela que estavam pensando em se livrar da criança.  
Não bastasse isso, dias após o parto, Mariana faleceu. Letícia ao ouvir essa notícia, entrou em desespero. Chocada com o ocorrido, a menina passou dias longe de casa. 
Isso por que, na casa de um sitiante, a menina passou alguns dias. Porém, Letícia foi logo descoberta. 
E Otávio ao saber onde ela estava, tratou de ir buscá-la. Irado, praticamente a levou arrastada para a fazenda. 
Porém, ao contrário das outras vezes, Letícia enfrentou o pai. Dizendo que ele havia matado sua mãe, disse-lhe que jamais perdoaria tudo o que ele fizera a ela e sua mãe. Profundamente magoada, Letícia disse que o odiava, e que nada no mundo a faria mudar de idéia, quanto a esse sentimento. 
Otávio, então, surpreso com as palavras ríspidas da filha, ameaçou lhe bater. 
Letícia, então disse:
-- Pois então bata. Bata. Pode bater. Essa é a única coisa que o senhor sabe fazer mesmo, bater e maltratar as pessoas. Pode fazer o que quiser. 
Otávio, porém, não bateu em Letícia. Ao contrário. Não suportando o vergonha por tudo o que estava acontecendo, tratou logo de arrumar suas malas e sair daquele lugar o mais depressa possível. Saiu e nunca mais voltou.
Letícia porém, ao saber disso, não se surpreendeu nem um pouco. Acostumada com a covardia de seu pai, nos últimos tempos, sentiu-se até aliviada quando ele partiu. Assim, não precisa mais aturá-lo. 
Com isso, a despeito de seu desprezo por Otávio, o mesmo tivera o cuidado de antes de partir, deixar uma boa quantia de dinheiro nas mãos de Regina para que esta tivesse como cuidar de Letícia e Rafael, bem como viver no Solar dos Viajantes. 
Todavia, ao contrário de antes, Letícia passava cada vez mais tempo na cidade. Isso por que, preocupada com o futuro de seu irmão, a garota tentou de inúmeras formas, protegê-lo. Temendo que ele tivesse o mesmo destino de sua mãe, ameaçava os moradores da casa onde a criança estava, de que se algo lhe acontecesse, estariam encrencados. Debalde, pois, depois de algumas ameaças, ela descobriu que a criança estava sob os cuidados do  pároco da cidade. 
Ao saber disso, porém, Letícia não ficou nem um pouco sossegada. Por isso, dia após dia, passou a elaborar um plano. Queria por que queria, retirar seu irmão da igreja.
De tanto pensar nisso, elaborou um plano. E foi assim, que na calada da noite, Letícia adentrou a igreja e sorrateiramente pegou o menino e fugiu. 
De posse do menino, no entanto, Letícia sabia que não poderia voltar para casa. Se voltasse fatalmente a obrigariam a devolver a criança, e ela isso não podia admitir. Por esta razão, ao ter a criança nos braços e sabendo que teria boa acolhida, a menina foi direto para a casa de Júlio. 
Nisso Júlio, ao ver a menina e o bebê diante de sua porta, temeroso de ser acusado de rapto, comentou que não poderia continuar na cidade. Acusado de ser amante de Mariana, disse a garota que não agüentava mais ouvir as acusações de que havia destruído um lar. Sentindo-se culpado, não conseguia suportar tudo o que estava acontecendo.
Letícia então comentou que se não tivesse arrebatado o menino, talvez ele fosse morto ou levado para bem longe dali. Quem sabe se seria bem cuidado, ou seria mais uma criança abandonada. 
Júlio então, se convenceu. Recebendo Letícia e a criança com toda a deferência, comentou que talvez essa fosse a forma de se redimir da culpa que alegava ter. Por isso acabou aceitando cuidar dela e de seu irmão.
E foi assim que durante cinco anos Letícia viveu. Auxiliada por Júlio, a garota cuidou de Antônio como se fora um filho seu. Porém, dada sua tenra idade, era flagrante que ela jamais poderia ser a mãe do garoto, e assim, as pessoas quando a viam com o menino e Júlio, achavam deveras estranho o cuidado que ela tinha com a criança.
Foi esta a deixa para se descobrisse o paradeiro de Letícia e em pouco tempo a mandassem para um reformatório. Por conta de uma armadilha, mais uma vez a garota se vez se viu prejudicada. Como era menor de idade ainda, ficou durante algum tempo reclusa. Todavia, assim que arranjou uma maneira de fugir, fê-lo logo. 
Porém não foi nada fácil. Constantemente vigiada, Letícia teve que fazer o possível para desviar a atenção dos funcionários do reformatório. Não bastasse isso, a menina tinha que enfrentar brigas e agressões. Diante disso, pode-se considerar esta, como uma das piores fases de sua tão curta vida. 
Mas o sofrimento não durou muito tempo. Nem o assédio de um dos menores. Um deles, ao ser rechaçado por ela, tentou logo arrumar uma forma de se vingar. O que ele não contava é que ela conseguiria fugir antes. 
E sim, Letícia fugiu. Fugiu e foi parar numa fazenda. Para a fazenda de um amigo. 
E assim terminou o relato de Rogério.

Luciana Celestino dos Santos 
É permitida a reprodução, desde que citada a autoria. 

TEMPOS DE OUTRORA - CAPÍTULO 24

Porém, depois de um longo tempo de calmaria, nuvens negras se aproximaram dos céus de felicidade em que vivia a família, lançando a todos num profundo abismo. 
Mariana, a esposa de Otávio, cansada de viver isolada na propriedade, passou, nas inúmeras vezes em que o marido retornava a Capital, a freqüentar a casa de ilustres senhoras que viviam na localidade. Desacompanhada, acabou sendo alvo de assédio de um senhor que estava de passagem pelo lugar.
Com isso, sempre que Mariana saía da casa de uma das ilustres damas que freqüentemente visitava, lá vinha o intruso assediá-la. Dizendo-lhe gracejos, comentava que a mulher era ainda muito jovem para se enterrar naquela vidinha medíocre de interior.
Mariana, contudo, sempre que ouvia os comentários desabonadores do cavalheiro, fazia questão de retrucar dizendo que ele sim era muito medíocre. Além disso, o lugar era muito bom e ela estava muito bem ali, vivendo com sua família.  
No entanto, mesmo sendo constantemente rechaçado, o homem passou a ficar cada vez mais impertinente. 
Muito embora isso não fosse verdade, sempre que Mariana encontrava o tal sujeito, fazia questão de dizer que adorava a cidade e que estava muito feliz de viver ali. 
Contudo, não estava feliz. Ao saber que Otávio decidira se fixar na região, Mariana ficou profundamente desapontada. 
Não por que o lugar fosse ruim, mas por que havia poucas oportunidades de passeios assim como de estudos para os filhos. 
Otávio, no entanto, sempre que ouvia isso, para tentar desdizer a esposa, alegava que com a presença da preceptora, a educação dos filhos estava mais do que assegurada. 
Mariana, todavia, não estava nem um pouco satisfeita. Ao saber que teria que abandonar a efervescência da Corte, ficou deveras desapontada. Isso por que, acostumada a viver na cidade, não conseguia se imaginar vivendo longe dali. Além do mais, era ainda muito jovem e muito alegre para viver numa localidade tão pacata.
Resultado, as brigas do casal, eram cada vez mais constantes. Por conta disso, Otávio passava cada vez mais tempo longe de casa. O que facilitava deveras a aproximação de pessoas estranhas, entre elas, a do estranho homem.
Certa vez, ao vê-la pela cidade em companhia dos filhos, o rapaz ficou espreitando, na espera de uma oportunidade de cercá-la novamente. 
Foi assim que ao vê-la por um instante sozinha, o homem aproximou-se e oferecendo-lhe flores, convidou-a para acompanhá-lo. Não bastasse isso, o rapaz passou a segurar seu braço, na vã tentativa de intimidá-la.
Mariana, sendo mais vez alvo das investidas do sujeito, ameaçou fazer um escândalo se ele não soltasse seu braço. 
O rapaz porém, mesmo diante de suas ameaças, não se deixou intimidar. E assim, começou a arrastá-la na tentativa de levá-la em sua carruagem. 
Não conseguiu. Por sorte, um outro rapaz que passava pelo lugar, percebendo a confusão, se prontificou a ajudar Mariana. Ao desferir um soco no rosto do sujeito impertinente, acabou por afastá-lo dali. Isso por que, com o olho machucado, o mesmo viu-se desmoralizado diante da mulher.  
Sentindo-se humilhado, o sujeito prometeu se vingar da pobre mulher. 
Nisso, Mariana, ainda assustada com o ocorrido, agradeceu o jovem rapaz que interviera, e a ajudara a se livrar do sujeitinho.
Agradecido, o rapaz comentou que ela deveria ter mais cuidado e não andar mais sozinha pela região. Aconselhando-a a seguir acompanhada de seu marido, ouviu como resposta que o esposo dela estava ausente.
Por esta razão, preocupado com o que se sucedera, o jovem ofereceu-se prontamente para levar toda a família de volta para a casa.
Mariana então, foi procurar os filhos e depois de resolver o que tinha para resolver, voltou escoltada pelo rapaz, para sua morada.
A jovem mulher, que a esta altura já estava a tempos afastada do marido, ficava cada vez mais tempo longe de sua casa.
No entanto Letícia e Rafael, raramente a acompanhavam em seus passeios. Abandonados pelos pais, o divertimento dos dois, com o passar do tempo, passou a ser a companhia dos escravos. Regina, a preceptora dos meninos, também, passou a ser uma grande amiga dos dois.
Não obstante as novas companhias, os dois se sentiam muito sós sem a presença dos pais. Acostumados a viverem em uma família harmoniosa e presente, Letícia e Rafael mal podiam acreditar que haviam sido postos de lado por seus pais. 
Porém, mal sabiam eles que as coisas ficariam ainda piores. Isso por que, quanto mais Otávio e Mariana se afastavam, mais se abriam brechas para que ambos se envolvessem em escândalos.
E fatalmente, foi isso o que aconteceu.

Luciana Celestino dos Santos 
É permitida a reprodução, desde que citada a autoria.

TEMPOS DE OUTRORA - CAPÍTULO 23

Instalados na região serrana próxima da Povíncia do Rio de Janeiro, uma ilustre família habitou uma esplendorosa casa de campo, conhecida como Solar dos Viajantes, anteriormente ocupada pela igualmente importante família Bastos. 
Situada às margens de uma estrada precária, a imponente construção já chamava a atenção de quem por ali passava, mesmo estando a uma certa distância. Belíssima mansão em estilo neoclássico, trazia muitas referências dos templos greco-romanos. Era uma construção ampla, com muitos quartos, avarandada, uma bela cozinha e salas. 
Para o Doutor Otávio poder trabalhar em casa, havia um imenso escritório com biblioteca. Tudo ricamente decorado com móveis coloniais. Os outros ambientes da casa, também possuíam móveis coloniais, esculturas, e muitos objetos trazidos de viagens da família pela a Europa, principalmente da França. 
Realmente era uma construção interessante, mas o que a tornava ainda mais atraente, era o fato de ser uma das poucas naquela região. A casa era uma edificação solitária no meio dos arvoredos e das matas que circundavam o lugar.
Não obstante a distância considerável de qualquer presença humana nas cercanias, tratava-se de um belíssimo lugar. Lugar calmo, tranqüilo, onde as crianças podiam brincar alegres em meio a uma extensa área verde repleta de árvores, flores e frutos. Naquele imenso jardim estavam as melhores recordações daquela família tão unida. 
Assim, a conhecida família Carvalho, que freqüentava os melhores bailes do império, resolveu se mudar para aquela bela região. Senão para ali morarem definitivamente, ao menos para fugirem do calor causticante da Capital. 
Para o Doutor Otávio, aquele era um bom lugar para sua família, constituída por sua mulher e seus dois filhos. 
Ademais, quando ele precisasse trabalhar, poderia viajar e permanecer alguns dias na Província. Isso porque, tencionava mudar-se definitivamente para lá, muito embora sua esposa e filhos não soubessem disso. Otávio temia contar-lhes, pois achava que encontraria resistência por parte de sua esposa, que preocupada com a educação dos filhos, não queria vê-los longe de seus preceptores. 
Por esta razão, a mestra de Rafael e Letícia, seguiu viagem, algum tempo após a partida da família, para que ambos não ficassem sem as aulas, necessárias para uma boa formação cultural. Para os Carvalho, a educação era algo extremamente importante. Por isso a grande preocupação em educá-los e torná-los preparados para a vida cultural que se impunha a eles. E assim, Mariana – a mãe das crianças – não teria do que reclamar.
E assim, diante de educação tão esmerada, mesmo a menina, sabia ler, e era grande conhecedora da literatura brasileira da época. Gostava tanto de ler que já se aventurava a conhecer autores estrangeiros complexos e muitas vezes obscuros quanto a sua literatura. Além disso, sabia falar francês, espanhol e inglês. Seu pai insistia para que também aprendesse italiano, e ultimamente, era o que vinha fazendo.
Seu irmão Rafael, também era educado com o mesmo esmero. Mas seu grande fascínio não era pelos estudos. O que ele gostava mesmo é de correr por entre as árvores, brincando de se esconder com sua irmã. 
Nessas brincadeiras, algumas vezes a família inteira se reunia para participar, preparando até convescotes. E em meio as algazarras, permaneciam a tarde inteira unidos. Admiravam o pôr-do-sol, a beleza do lugar, e se divertiam correndo por entre as árvores.
Aliás, estas, eram as melhores recordações de Letícia, sobre aquele tempo tão feliz em sua vida. Feliz, passava as manhãs tendo aulas com sua preceptora Regina, estudando e conhecendo coisas novas a cada dia. Às vezes se aborrecendo com algumas disciplinas, mas gostando de estudar. 
Depois do almoço, a menina passava algumas horas lendo, imaginando outros mundos muito além das fronteiras de seu jardim, sonhando ... e vivendo. Ao final da tarde, saía para passear pelo jardim, onde apreciava as esculturas trazidas por seu pai para adornar o jardim. Também apreciava a beleza natural do lugar, o campo dos pássaros nativos, as belas e imponentes árvores. E, apesar de uma certa brisa que caía ao final da tarde e que abaixava a temperatura do lugar, Letícia sentia-se feliz por estar passando uma temporada em um lugar tão aprazível.
Naquele lugar, sentia-se profundamente acolhida. Gostava das tardes em que em toda a família permanecia unida correndo pelo jardim, por entre as árvores, sentindo o perfume das flores, tocando os pés na terra sem se importar se sujava os pés. Algumas vezes chegavam até a rolarem na grama. E ao final da tarde, todos exaustos, apreciavam o belo pôr-do-sol.
Ah, como tudo já foi tão bom.

Luciana Celestino dos Santos 
É permitida a reprodução, desde que citada a autoria. 

TEMPOS DE OUTRORA - CAPÍTULO 22

Com isso, conforme os dias foram se passando, e de acordo com o que tinha prometido, Ticiano, momentos antes de viajar, foi ter com o amigo.
Como já era de se esperar, Rogério estava pronto para lhe revelar tudo o que sabia a seu respeito. Por isso, cautelosamente, começou dizendo que há muito tempo o conhecia.
O rapaz ficou surpreso. Afinal, como Rogério poderia conhecê-lo se fazia muito pouco tempo que ele havia rumado para lá? Em sua estada na Capital do Império, não ficou mais do que um ano! 
Mas Rogério continuou a insistir dizendo que o conhecia há muito.
Ticiano, incrédulo, instou o amigo para que explicasse direito o que estava querendo dizer com tudo aquilo.
Rogério então disse:
-- Está bem. Eu vou lhe explicar minudentemente o significado desta afirmação. Não só isso. Eu vou provar a você que tudo o que eu digo é a mais lídima verdade. 
-- Prossiga. – insistiu Ticiano.
Rogério então, continuou:
-- Meu caro Tício. Não faz muito tempo, eu me lembrei de uma passagem muito curiosa em minha vida. Aconteceu há vários anos atrás. Um menino muito triste e acanhado, apareceu de repente na fazenda em que eu vivia, sabe? Aquele menino, de nome Ticiano, me lembra muito você. Curiosamente, da mesma forma que ele apareceu em minha vida, sumiu. Depois que ele partiu, nunca mais ouvi falar dele. Cheguei até a pensar que tivesse morrido, dado o mistério que envolvia sua curta existência. Isso por que, vivendo bem na fazenda, não havia nenhum motivo aparente para ele fugir...
Ticiano, após ouvir o relato, comentou que não estava entendendo o porquê daquela conversa. 
Rogério então, prosseguiu: 
--  Lembra-se daquele baile que ocorreu não faz muito tempo aqui na região? Foi um lindo baile. Mas não foi só isso. Você dançou com uma senhorita e com seus modos cavalheirescos impressionou muita gente. Foi então que eu cheguei a seguinte conclusão. Uma pessoa de origem humilde, jamais conseguiria ter tão bons modos sem que alguém muito refinado ensinasse como se comportar. Enfim, não sei se você está me entendendo, mas somente uma pessoa de muitas posses, conseguiria criar um filho tão bem. 
Ticiano, ao ouvir o comentário sobre sua criação, foi logo interrompendo o rapaz. Tentando esclarecer, disse que havia sido criado por uma tia muito rica, e que sua mãe o deixara aos cuidados da gentil senhora, por que estava às portas da morte. Porém, com o passar dos anos, esta sua tia, ao ver-se em uma situação difícil, acabou por se desfazer de seus bens, e falecendo, acabou deixando-o ao léu.
Nisso, Rogério, que ouvia a tudo atentamente e sem discutir, interveio dizendo:
-- Não minta Ticiano. Eu sei muito bem que esta história não é verdadeira. Eu sei perfeitamente que você é filho de uma família muito abastada da Corte. Por isso tiveste uma formação esmerada, com o aprendizado de idiomas, viagens ao exterior com a família, leitura de bons livros, e até o acompanhamento de preceptores. Sei até que já moraste por essas paragens quando ainda era muito jovem, e que por isso mesmo os moradores da região não te reconheceram.
-- É mentira! – respondeu Ticiano revoltado. – Eu nunca estive nesta cidade. Se dissesses que morei em Serra Azul, seria obrigado a concordar. Mas aqui...
-- Meu caro Tício. Sabes perfeitamente que o digo é autêntico. Jamais cometeria a leviandade de levantar falso contra você. Muito embora me conheças muito pouco, gosto muito de você. Desde que te vi caminhando pelas ruas da Corte, me impressionei com você. Sempre discreto, se portava muito bem diante de todos. Melhor até que, seus colegas de farda, e dentre estes, os mais ricos. Isso por que, riqueza não compra educação. Dinheiro não compra berço. 
-- Quer dizer logo onde quer chegar? Eu já estou farto de ouvir essa conversinha sem sentido algum. – respondeu um Ticiano descontrolado.
--  Acalme-se Tício. A minha intenção não é agredi-lo.
--  Pois então, vá direto ao ponto. – respondeu o rapaz.
-- Pois bem. Voltemos ao assunto de nossa conversa. Eu descobri que você é exatamente o que eu pensava. O senhor é muito mais do que aparenta ser. Bem nascido, teve a melhor educação que o dinheiro pode proporcionar. Mesmo diante de sua condição, poderia facilmente se sobressair, não fossem as vicissitudes da vida.
Ao ouvir falar em infortúnio, Ticiano empalideceu.
Rogério, percebendo isso, prosseguiu contando:
-- Não obstante isso, você já foi muito feliz. Já teve família com pai, mãe e irmão. E ainda os teria não fosse a tragédia que se abateu sobre vocês. Eu sei de tudo. Sei que trabalhou como cavalariço em uma fazenda no interior da província. Sei que quase se casou. Que andou vagando por várias cidades até chegar em Serra Azul. Mas também sei o principal, o motor que o propulsionou a fazer tudo o que fizeste. E creia em mim, eu não te culpo por ter feito o que fizestes, pois em seu lugar, provavelmente eu teria feito a mesma coisa. Então, não se preocupe com o que eu vá pensar.
Ticiano, ao ouvir as palavras de Rogério foi tomado de um profundo sentimento de desespero. Dizendo frases desconexas, falou que precisava sair dali o quanto antes. Porém, ao tencionar sair da casa do rapaz, Ticiano foi impedido pelo próprio Rogério, que insistia em dizer que os dois ainda tinham muito o que conversar. 
Desta forma, acossado, o rapaz acabou se sentando e ouvindo tudo o que o amigo tinha a dizer, ainda que contrariado. 
Foi então que Rogério prosseguiu:
-- Eu sei de tudo.  
-- Não. Você não sabe de nada. Não sabe. – começou a gritar o rapaz. – Você não tem o direito de me prejudicar. Me deixe em paz. Quantas vezes eu vou ter que repetir que eu não preciso de sua ajuda?
Rogério então se aproximou do amigo e segurando seu rosto, falou:
-- Escute amigo. Eu não quero te prejudicar. Pelo contrário. Eu quis saber sobre você para poder te entender melhor. Não foi para te julgar, te criticar, ou te prejudicar. Longe de mim. Então, ouça bem...
Ticiano, irritado, afastou as mãos do amigo de seu rosto e disse rispidamente que não precisava nem da ajuda, nem da piedade de ninguém.
Mas, Rogério, insistia em prosseguir com seu relato. 
E assim, o homem contou o seguinte:  

Luciana Celestino dos Santos 
É permitida a reprodução, desde que citada a autoria.   

TEMPOS DE OUTRORA - CAPÍTULO 21

 Ao voltar para sua casa, Rogério tratou logo de se recolher. 
Cansado que estava, não demorou muito para que caísse no mais profundo dos sonos. E foi em sonhos que o homem descobriu mais uma pista sobre a vida de Ticiano.
Sonhando com fatos de sua infância, Rogério se lembrou que há muito tempo, conheceu um rapaz muito pobre que vivera escondido na fazenda em que morava. O rapazote, sujo e maltrapilho, se chamava Ticiano, e da mesma forma que seu atual amigo, era bastante tristonho e calado. 
Nisso, Rogério, ao sonhar com sua infância, passou a entender algumas coisas com muito mais clareza. Sim, era por isso que conhecia o rapaz e seu semblante lhe não era estranho. Todavia, como explicar o que o tinha levado a viver daquele jeito?
E mais. Por que vivendo junto a família de Rogério, Ticiano inesperadamente desapareceu, vindo a nunca mais ser encontrado? Qual a razão de tudo, se lá ele tinha uma vida até boa?
Foi então que Rogério se lembrou que, antes de Ticiano partir, alguns guardas apareceram rondando a fazenda. E que ele ficou bastante apreensivo com a presença dos oficiais na propriedade. 
Rogério então, passou a ligar os fatos. Se o rapaz ficara tão apreensivo, era por que tinha algo a temer. Mas o que seria? 
E assim ficou a pensar. Porém, por mais que pensasse não conseguia chegar a uma conclusão. 
Mas determinado que era, Rogério prometeu a si mesmo que cedo ou tarde encontraria a resposta para todas essas perguntas. 
Nisso, passou boa tarde do dia, a se lembrar do sonho que tivera. Porém, só conseguia se lembrar de Ticiano muito só, encolhido em um canto.
Com isso, conforme a tarde caiu, um mensageiro lhe entregou uma correspondência. 
Ansioso, Rogério tratou logo de abrir a epístola. Ao lê-la, constatou satisfeito, que em pouco tempo, Horácio, estaria de volta. 
Rogério, então, ao tomar conhecimento da auspiciosa notícia, sentiu que as dúvidas e todo o mistério que cercavam a vida do amigo, se acabariam por completo. 
Porém, a despeito de tudo isso, Rogério teria que ter muita paciência. Isso por que, dadas as condições de transporte da época, seria necessário algum tempo até que o detetive chegasse. 
Assim, sem ter outra alternativa, Rogério esperou. Esperou, pacientemente. 
A duras penas, mas esperou.
Enquanto isso, Ticiano prosseguia em seu trabalho pela região. Às vezes, era chamado para ir até a Corte. 
Muito embora o mancebo estivesse trabalhado em uma pequena cidade serrana, às vezes era necessário que alguns deles voltassem para a capital, para informar como estava indo o trabalho. 
No tocante a isso, a despeito da cidade ser pequena, era de vital importância que a mesma estivesse muito bem protegida. Daí a necessidade de se deslocar soldados para lá. Além disso, apesar de pequena, a cidade era bem mais atrativa que Serra Azul, que de tão acanhada, mais parecia um cemitério, na visão de seus jovens moradores.
Durante esse tempo, inúmeras vezes, Ticiano recebeu a visita de Margarida, que queria a tudo custo enlaçá-lo. Porém, a despeito de suas incontáveis investidas, a moça nada conseguiu. 
Aborrecida Margarida, passou então, com a ajuda de seus amigos, a elaborar um plano para prejudicar o rapaz. Porém, por mais que ela e seus amigos pensassem em uma maneira de prejudicá-lo, nada conseguiam. Ticiano era impecável em seu trabalho. Por isso, eles não tinham como desmoralizá-lo. Desta maneira, precisavam descobrir uma outra forma de atingi-lo.
 Mal sabiam eles o quão seriam agraciados com as revelações que seriam feitas.
 Foi nessa época que Horácio, retornando de uma longa viagem, trouxe as informações que Rogério queria tanto saber.
O detetive ao chegar, calmamente revelou a Rogério, tudo o que descobrira a respeito do jovem.
Rogério, curioso, apesar de sua ansiedade, ouviu pacientemente tudo o que o detetive tinha a dizer. Emocionado com as revelações do detetive, mal pôde conter sua alegria ao descobrir toda a verdade sobre o rapaz.
Após, com as informações necessárias em mãos, passou a elaborar um plano. Um plano que iria modificar a vida de Ticiano. 
Por esta razão, Rogério planejou cuidadosamente uma armadilha para enredar o rapaz. Isso por que, Rogério queria que Ticiano soubesse de sua investigação. 
Porém, não queria agredi-lo. Assim, todo o cuidado era pouco. 
Todavia, não podia esconder o que sabia do amigo, por muito tempo. Sim, apesar de tudo o que fizera e ainda estava por fazer, considerava Ticiano, um amigo. Um amigo que precisava de ajuda e ao qual não se negaria a auxiliar.
No entanto, não cabia a ele, agir com precipitação. Por isso, nas vezes seguintes em que encontrou o rapaz, fez o possível para não revelar o que sabia a seu respeito. 
Ticiano porém, conhecendo um pouco Rogério, percebeu que algo de muito estranho estava acontecendo. Isso por que, Rogério, estava cauteloso demais com ele.
Rogério, contudo, ao ser inquirido a esse respeito, fez questão de dizer que não havia nada de mais em sua atitude. Simplesmente estava tentando ser agradável com seu amigo.
Ticiano porém, desconfiou sobremaneira dos modos do amigo. Entrementes, como não queria discutir sobre isso, tratou logo de mudar o assunto. Foi então que ele comentou com Rogério, que dentro em breve, voltaria para a Corte.
Ao ouvir isso, Rogério ficou deveras surpreso com a novidade. Tão surpreso que chegou a se sentar. 
Ticiano então, percebendo o desapontamento do amigo, perguntou o por quê da surpresa. 
Rogério então, respondeu:
-- Não. Não é nada. É que eu tenho um assunto muito importante para falar com você. Mas precisa ser dito antes que parta.
Ticiano não entendeu nada. Sim, Rogério estava muito estranho. Todavia, dada a sua insistência para que ele o ouvisse antes voltar para o Rio de Janeiro, Ticiano acabou concordando e prometendo que passaria em sua casa antes de viajar.

Luciana Celestino dos Santos 
É permitida a reprodução, desde que citada a autoria. 

TEMPOS DE OUTRORA - CAPÍTULO 20

A propósito, Rogério desde a primeira vez que vira Ticiano, notou que o conhecia de algum lugar. 
Isso por que, em diversas conversas com o rapaz, inúmeras vezes, Rogério teve a sensação de já conhecê-lo. Assim, mesmo diante das negativas do rapaz, Rogério acreditava que já o tinha visto antes. Daí a razão em investigar seu passado.
E assim, como única pista, Rogério sabia que como bom cavaleiro que era, provavelmente Ticiano vivera alguns anos em uma fazenda, cuidando de animais. Contudo, mesmo diante desta pista, havia muito trabalho a ser feito. Por esta razão contratou ele, os serviços de um detetive.  
Nisso, Ticiano, que estivera a trabalho em outra localidade, finalmente retornou ao seu labor. Porém depois de quase um ano na capital, Ticiano foi novamente convocado para uma viagem. Desta vez passaria alguns meses, numa cidade na região serrana da província. 
Ao saber da novidade, o mancebo ficou um tanto quanto incomodado. Temendo que pudesse vir a ser reconhecido, fez o possível para que seu superior chamasse outra pessoa para o encargo. Porém, a despeito disso, ordens são ordens, e não cabia a ele, um simples oficial, discuti-las.
Diante disso, sem ter alternativas, o rapaz acabou viajando para a aludida cidade.
Rogério, então, sequioso de conhecer algo mais sobre o novo amigo, decidiu viajar para a mesma localidade. Cauteloso porém, resolveu esperar um pouco para rumar para lá. Isso por que não queria chamar a atenção do mancebo que já devia estar bastante desconfiado da inesperada aproximação.
Assim, com todo o cuidado, Rogério esperou pacientemente alguns meses, até viajar para a cidade. 
Quando então finalmente chegou à cidade, Ticiano, com oficial de cavalaria, fazia ronda pela cidade. À essa altura, o rapaz já era conhecido de boa parte das pessoas que por ali viviam.
Com isso, quando Rogério chegou à região, não foi nada difícil encontrar o rapaz. 
Josué, amigo de Ticiano, desde os primeiros tempos de exército, também havia sido deslocado para lá. Este, companheiro do jovem mancebo, foi quem comunicou a Rogério, que Ticiano era conhecido na localidade. 
Rogério então, na vã tentativa de descobrir algo mais sobre Ticiano, encheu Josué de perguntas, as quais, a grande maioria, o jovem não conseguiu responder. Em razão de Tício – a maneira como ele chamava o rapaz – ser reservado, Josué não sabia muita coisa sobre a vida dele. 
Contudo, respeitando as reservas do amigo, Josué nunca se preocupou em saber sobre seu passado. Por isso, ao ser inquirido por Rogério, Josué sentiu-se deveras incomodado. Além disso, desconfiado das intenções de Rogério, tratou logo de avisar o amigo de que o tal cavalheiro estava querendo saber demais sobre sua vida. 
Ticiano, que a esta hora estava almoçando, ao ouvir de Josué, que Rogério estava tentando descobrir algo sobre seu passado, ficou deveras preocupado. De tão nervoso, chegou a derrubar os talheres que segurava, no chão.
Josué, que até então, nunca vira o amigo perder a calma, ficou deveras surpreso com a reação de Tício a notícia. Mas este, percebendo a impressão do amigo, respondeu que estava preocupado com um assunto particular.
Josué, porém, não ficou nem um pouco convencido disso. Ao perceber que sabia muito pouco a respeito do amigo, chegou a acreditar que o mesmo guardava um segredo. Algo muito sério devia ter acontecido a ele para que passasse a agir tão discretamente.
Observando o comportamento do amigo, percebeu que o mesmo sempre evitava sair, tinha poucos amigos. Além disso, certa vez, quando saíram juntos, Ticiano, ao vistar uma certa pessoa, tratou logo de se esconder, como se estivesse com medo de ser reconhecido.
Sim, o comportamento do jovem era bastante estranho.
Além disso, o rapaz era refinado demais para quem tinha uma origem humilde. E quanto a isso, até mesmo os companheiros de farda de Tício concordavam. Provavelmente o rapaz era de família nobre. Talvez ele tivesse sido muito rico, mas depois sua família perdeu tudo. Foi a essa conclusão que chegaram tanto Josué quanto Rogério, que essa altura descobria algo mais sobre o rapaz.
Diante dessa constatação, Rogério tratou de avisar imediatamente o detetive. Por meio de um telegrama, Horácio foi informado que o jovem talvez tivesse a tal ascendência nobre.
Enquanto isso, ali na região, um baile era organizado em honra aos militares.
Com toda essa pompa, até mesmo Ticiano foi instado a comparecer ao evento.
Rogério, ao saber do baile, fez questão de ser convidado para a festa.
E assim, foi que durante o evento, pôde ver Ticiano dançando pelo salão. Dançando com algumas das moças, o jovem se esqueceu por algum tempo de sua vida. Distraído em sua dança, nem sequer percebeu que era observado por Rogério. 
À essa altura, uma jovem, de nome Margarida, procurando conhecê-lo melhor, fez questão de que alguns de seus amigos arrumasse um encontro com o rapaz.
Foi assim, que Ticiano, estando a sós por um instante foi convidado por um grupo de rapazes para tomar uma bebida. Ressabiado, o rapaz acabou recusando o oferecimento.
Os jovens, contudo, não desistiram. Insistentes, reiteraram o convite e só o deixaram novamente a sós, quando o jovem concordou em conversar um pouco com eles.
Pronto, estava arrumado o encontro.
E lá foi Ticiano, sem saber o que o esperava. 
Por isto, qual não foi sua surpresa, quando ao chegar no jardim, avistou Margarida, uma jovem conhecida na região. Ticiano, sem saber o que fazer, muito menos o que dizer, acabou perguntando:
-- O que é que a senhorita faz aqui?
Margarida no entanto, não se intimidou nem um pouco com a indagação do mancebo. Ao contrário, ousada, respondeu:
-- O mesmo que você. Eu vim fazer um passeio. Às vezes, mesmo nas melhores festas, é bom ficar um pouco sozinha. Você não concorda?
-- Às vezes, é bom ficar a sós. Mas não foi por isso que eu vim para cá.
-- Não? – perguntou a moça, falsamente surpresa.
-- Não. Provavelmente eu fui alvo de uma pilhéria. Mas eu acho bom que se assim o foi, quem participou da brincadeira não apareça na minha frente a partir de agora. Com licença, senhorita. – disse já se afastando.
-- Espere. – pediu Margarida. – Me desculpe os modos, eu não me apresentei. Me chamo Margarida. A propósito, qual é o seu nome?
-- Ticiano. – respondeu segurando as mãos da jovem, e num delicado gesto de cortesia, beijou-as. 
Depois, dizendo ter pressa, alegou que tinha que partir.
Margarida, no entanto, insistiu para que o jovem não fosse ainda. Dizendo que ainda não tinha dançado com ele, argumentou que gostaria de valsar. 
O jovem, no entanto, sem ter como recusar o pedido, gentilmente a conduziu até o centro do salão e lá dançou com a moça, que parecia encantada com suas maneiras. 
Depois, despedindo-se da moça, Ticiano alegou que precisava partir. 
Nessa altura, Rogério finalmente tivera a oportunidade que esperava. Assim, vendo Ticiano sozinho, tratou logo de se aproximar e conversar com o rapaz. 
O rapaz, que até então não tinha se encontrado com Rogério, surpreendeu-se com sua presença na festa. Tanto que chegou a comentar:
-- O senhor por aqui? Pensei que estivesse de passagem.
-- Meu caro Tício, acaso pensaste que eu viria para cá e não veria meu amigo? Podes não acreditar, mas eu tenho muita estima por você.
-- É mesmo? É por causa desta tal estima que andas devassando minha vida? Aliás, qual a razão de tudo isso? – perguntou demonstrando claramente o quão estava incomodando com as constantes perguntas de Rogério.
-- Me desculpe se pareço inconveniente, mas é que eu acho que você é muito mais do que aparenta ser. Tenho certeza absoluta que posso te ajudar.
Ao ouvir isso, Ticiano respondeu então:
-- Pois bem! Quer me ajudar? Então não se intrometa mais na minha vida. Se o senhor fizer isso, já vai me ajudar deveras. – finalizou saindo do salão. 
Rogério porém, mesmo diante da severa admoestação sofrida, não desistiria de seu intento. Decidido a desvendar o passado de Ticiano, se empenharia mais ainda para descobrir detalhes. 
Nisso, ao término do baile, aproveitou para dar uma caminhada pelas ruas da cidade. Desapontado por ter causado uma má impressão em Ticiano, ainda assim, prosseguiria em sua investigação. 
Acreditando que o jovem pudesse ser um fidalgo, filho de um homem de posses, Rogério queria ajudar o amigo a melhorar sua vida. Porém, não poderia imaginar o que estaria por vir.

Luciana Celestino dos Santos 
É permitida a reprodução, desde que citada a autoria.