Poesias

quarta-feira, 4 de agosto de 2021

TEMPOS DE OUTRORA - CAPÍTULO 7

 Ao anoitecer, Ticiano, conforme o esperado, apareceu na sede da fazenda para conversar com José. O rapaz queria entender o porque do gesto do patrão.
Com isso, assim que acabou sua lida, ao terminar de levar os animais para a cocheira, foi para sua casa. Chegando lá, preparou-se para tomar um banho. Para tanto, trouxe água para o quarto e encheu uma grande tina com ela. Antes é claro, tirou sua roupa suada do trabalho e deixou-a no chão. Depois entrou na banheira improvisada e se lavou.  
Vestiu uma roupa limpa e foi ter com o patrão.
Finalmente, por volta das sete horas da noite, chegava o jovem Ticiano à casa do fazendeiro.
Ao entrar na casa, o rapaz desculpou-se pela demora e se dirigiu para a sala. Lá foi imediatamente cumprimentado por José. O fazendeiro, desde que acolhera o mancebo em sua propriedade sempre nutrira uma grande admiração pelo rapaz. Por isso, o interesse em ajudá-lo. 
Por essa razão, resolvera doar algumas de suas roupas para o jovem. Mas, a razão maior para convidá-lo para ir à sua casa, era porque precisava conversar com ele. Tinha planos para o rapaz. Para tanto, precisava da concordância do mesmo, para que pudesse colocar seus planos em prática.
José, ao ver que Ticiano, era extremamente dedicado ao trabalho, esforçado e inteligente, decidiu lhe dar uma oportunidade de crescer profissionalmente. Queria lhe dar uma promoção.
Nisso ao se deparar com a proposta do patrão, Ticiano ficou extremamente surpreso. Não esperava que isso pudesse acontecer. Ser promovido. Mesmo assim, vacilante, perguntou:
-- Mas porque me julgas capaz disso? 
-- Por que já provaste que é um homem de valor. Digno de confiança, e preparado para tal incumbência. 
-- Julgas mesmo, que sou capaz de corresponder a sua expectativa?
-- Asseguro-te que sim. Vosmecê, já me provou isso.
-- E ... qual vão ser minhas atribuições a partir de então?
-- Vosmecê será, a partir de agora, o meu braço direito na administração desta fazenda.
Disse isso, e não aceitou nenhuma discordância. Nem mesmo do jovem mancebo, que parecia um pouco assustado com a novidade. 
Realmente, Ticiano não esperava por isso. O rapaz contava em sair da fazenda dentro de alguns meses. Só precisava arrumar mais algum dinheiro para isso. 
Entretanto, se aceitasse a proposta do patrão, mais rapidamente poderia reunir um bom dinheiro para tanto. Como peão, ganhava muito pouco, e parte do que ganhava, reunia para comprar livros e tecidos. A outra parte, tentava, a duras penas guardar. Afinal de contas, quando saísse da fazenda, precisaria de dinheiro.
No entanto, Ticiano sentia necessidade de sair de lá. Tinha vontade de conhecer outros lugares e partir em busca de algo que era muito especial para si.
Mas, diante da insistência do patrão para aceitasse a oferta, o rapaz não teve outra alternativa a não ser aceitá-la.
Assim, disse:
-- Está bem. Eu aceito.
Esta frase, que deixou o fazendeiro muito satisfeito. José não espera outra coisa.
Ademais, o fazendeiro afirmou que para isso, Ticiano precisaria também se apresentar de uma forma mais elegante. Precisaria de novas roupas. Por isso, estava doando algumas de suas antigas roupas  para ele. 
Para tanto o fazendeiro pediu para que Ticiano as vestisse, para verificar o que precisaria ser ajustado. 
Entretanto, como já sabia que o rapaz não possuía uma grande estatura, tratou de advertir uma de suas serviçais, de que o primeiro ajuste a ser feito seria no tamanho das roupas.
E assim, advertida, a escrava comentou com o patrão, que se o rapaz era mais baixo, provavelmente, também haveria necessidade de se fazer ajuste na largura das roupas, e que isso talvez desse mais trabalho do que fazer novas roupas para o mancebo.
Decepcionado, o patrão perguntou a escrava:
-- Então ... quanto tempo seria necessário para se confeccionar as novas roupas do rapaz?
-- Ah, patrão ... fazer roupa demora um bocado. Mas se eu tivesse todo o tempo livre para isso, eu poderia gastar talvez umas três semanas confeccionando roupas para ele. Para isso, eu precisaria das medidas do mancebo.
-- Está bem. Eu vou chamá-lo.
E assim o fez. 
Para que a criada tivesse privacidade para fazer seu trabalho, José levou Ticiano até a biblioteca, para que lá pudesse ser tiradas as medidas para as roupas.
Apreensivo, Ticiano pediu a escrava para ele próprio tirar suas medidas. Para tanto, perguntou a ela quais as medidas necessárias para que pudesse fazer as roupas. De posse dessas informações, o rapaz começou a se medir, e fazendo isso, passou as informações para ela.
Depois, saiu da biblioteca. 
Ao vê-lo saindo da biblioteca, José convidou-o para cear com sua família. 
No que Ticiano, tentou recusar o convite. Todavia o fazendeiro sinalizou para que o rapaz se sentasse a mesa com sua família. Diante disso, não restou outra alternativa ao jovem, senão ficar e jantar com a família de seu patrão. 
Assim, durante o jantar, enquanto iam sendo servidas as iguarias, José conversava com Ticiano. Logo o avisou de que no dia seguinte não deveria ir trabalhar. Deveria estar às sete horas da manhã, em sua casa. Isso por que, ele precisava lhe passar algumas informações importantes, para que assim o rapaz pudesse executar seu trabalho. 
E assim, Ticiano se comprometeu a estar pontualmente na sede da fazenda.
Surpreendentemente, para a família de José, Ticiano comportou-se maravilhosamente bem a mesa. Pareceria um deles, não fosse a roupa surrada que usava.
Intrigados, todos admiraram seus modos educados à mesa. 
Nesse instante, ao vê-lo comportar-se tão adequadamente durante a ceia, José não teve dúvidas. Estava diante da pessoa mais indicada para cuidar de sua fazenda.
E assim, depois da ceia, Ticiano despediu-se de todos e voltou para sua casa.
Depois de tantas novidades, o rapaz precisava dormir um pouco, pois, apesar de poder acordar um pouco mais tarde no dia seguinte, sua casa ficava afastada da fazenda, o que lhe impunha uma boa caminhada. E um tempo menor para que pudesse dormir.

Luciana Celestino dos Santos 
É permitida a reprodução, desde que citada a autoria.

TEMPOS DE OUTRORA - CAPÍTULO 6

Nisso, ao cair da tarde, como faziam normalmente, todos se recolheram para suas casas. Quando a luz do sol acabasse, já estariam dormindo.
Nesse dia, no entanto, nem tudo saiu como de costume. Tereza, a filha mais nova do fazendeiro, entrou furtivamente no quarto de Ticiano. Mais do que depressa, ao vê-lo se aproximar da casa, tratou de se esconder debaixo da cama.
Durante alguns minutos, Tereza teve que aguardar sua chegada. Finalmente, quando Ticiano adentrou o quarto, a moça pensou em sair debaixo da cama e fazer-lhe uma surpresa, mas desistiu. Pensando que seria melhor ficar ali embaixo da cama por mais algum tempo, esperou para ver o que acontecia.
Com isso, logo que chegou em casa, Ticiano retirou suas botas, e despejou parte da água que havia num jarro na pequena bacia de louça, para que assim, lavasse o rosto.
Tencionou tirar a roupa que usou no trabalho e então se recolher. Mas, cansado que estava, ao se sentar na cama, quase que imediatamente foi deslizando no colchão e deitado, acabou caindo no sono.
Foi quando então, Tereza saiu debaixo da cama do jovem e ficou admirando-lhe e velando seu sono. Quando Ticiano acordou e se deparou com aquela jovem à sua frente, assustou-se.
Espantado, perguntou:
-- O que a senhorita está fazendo aqui? 
-- Nada. Só vim te dizer boa noite.
-- Se não se importa. Não poderia ter dito isso lá fora?
-- E qual o problema em entrar no seu quarto?
-- O problema é que você é uma menina. Além do mais, é filha do meu patrão. 
-- Se eu não fosse a filha do patrão não haveria problema. É isso?
-- Não, não é isso. Só que eu não quero mais você aqui dentro. Por favor saia.
-- E quem me leva em casa?
-- Qual o problema?
-- Por favor, me leva.
-- Está bem, eu te levo até a entrada.
Nisso, Tereza saiu da casa e ficou do lado de fora, esperando Ticiano sair. Ao que este então lavou o rosto, se ajeitou um pouco e levou Tereza até a entrada da sede. 
Lá ela insistiu para que ele esperasse um pouco. 
Isso por que, Tereza tencionava contar ao pai que estivera perdida por toda a noite, e que de manhã ao sair de sua casa, Ticiano lhe encontrara. 
Ticiano, no entanto desconfiado, ao ouvir o pedido da moça, pediu licença e voltou para casa. Ela que procurasse sozinha, uma explicação para seu sumiço. 
Só que Tereza teimosa, queria muito que o rapaz se interessasse por ela, e para isso, seria capaz de fazer qualquer coisa. Até mesmo prejudicá-lo se fosse preciso.
Por essa razão, durante o dia, enquanto os peões trabalhavam duramente, cuidando dos animais da fazenda, Tereza ficava rondando a cocheira, esperando Ticiano voltar com os cavalos. Queria por queria participar-lhe uma novidade. Desejava ser a primeira a contar que seu pai havia doado a ele, algumas peças de roupa. 
Isso porque, José esperava que ele, usando uma das peças, participasse da festa juntamente com a família Vieira.
Por essa razão Tereza ficou esperando quase até o cair da tarde para que Ticiano aparecesse e assim, pudesse contar a novidade. 
Quando então, o jovem finalmente surgiu, com sua roupa de montaria, Tereza ficou encantada. Para ela parecia a imagem de um príncipe. Nunca o vira antes com uma roupa de montaria, e por esta razão, quando o viu entrar vestido com estes trajes, achou-o verdadeiramente, encantador. 
Não que Ticiano fosse um rapaz feio, mas com sua constante implicância com o rapaz, Tereza não havia reparado na beleza do mancebo. Ultimamente, no entanto, parecia estar interessada demais no moço. O que com certeza causou estranheza em todos os seus familiares, já acostumados com sua hostilidade declarada em relação ao rapaz. 
Isso por que, Tereza sempre fizera tudo para provocá-lo, humilhá-lo. Um dia com suas amigas, insinuou que ele possuía um porte muito elegante. Altivo como os cavalos criados por seu pai, o moço possuía nobre raça, somente comparada aos puros sangue. 
Nisso diante da caçoada, todos riram estrondosamente. Em especial, os rapazes.
Além disso, diversas vezes, Tereza tentou fazê-lo seu criado. Para isso tentou dominá-lo, impondo serviços domésticos. 
Entretanto, apesar de ser a filha do dono do lugar, Ticiano, nunca se deixara humilhar por ela. Jamais aceitaria isso. 
Ademais, José, conhecedor do temperamento da filha, ao vê-la tentar humilhá-lo, sempre a rechaçava. Por ser um homem justo, nunca aceitou o comportamento da filha em relação ao rapaz. Reiteradas vezes disse a filha que aquele era um rapaz de fibra e de valor, e Tereza, mesmo sendo sua filha, jamais poderia maltratá-lo.
Em razão disso, tanto Tereza, quanto sua mãe Catarina, por muitas vezes, chegaram a desconfiar de que havia uma estranha relação entre os dois. Cismada Catarina, cogitou a possibilidade de que talvez Ticiano fosse filho de seu marido.
No que, José, certa vez, ao ouvir tal absurdo, começou a rir abertamente.
Catarina, ficou então indignada. Mas diante das explicações do marido, e dada as circunstâncias em que o rapaz apareceu, a mulher acabou por se convencer de que Ticiano não poderia mesmo ser filho de seu marido. 
Entretanto, mesmo diante de tais explicações, Catarina continuou cismada com a atenção que o rapaz despertava em seu marido, com o estranho aparecimento do rapaz, com o seu verniz de cultura. Simplesmente, não parecia um peão.
Mas enfim, voltando a cocheira. Quando a jovem encontrou o moço, depois de um certo tempo de silêncio, contou o fazia ali. Tereza disse a ele que seu pai havia se desfeito de algumas roupas antigas com as quais o estava presenteando.
Ticiano surpreso com o gesto, perguntou:
-- Mas porque para mim?
-- Porque papai disse, que não havia pessoa mais indicada. 
Disse e isso, e ao se preparar para sair da cocheira, completou:
-- Hoje à noite estaremos o esperando para buscar as suas roupas.
Ao terminar de dizer isto, saiu. 

Luciana Celestino dos Santos 
É permitida a reprodução, desde que citada a autoria.  

TEMPOS DE OUTRORA - CAPÍTULO 5

Conforme os dias foram se seguindo, os sonhos de Ticiano iam se tornando agora, menos freqüentes. Depois de tantas noites dormindo mal, passara agora a dormir normalmente, sem sobressaltos.
Foi nesse ínterim que Tício resolveu que, quando juntasse uma boa quantia em dinheiro, sairia da fazenda e viveria em outro lugar. Isso por que sentiu que precisava mudar sua vida de alguma forma. Necessitava partir em busca de algo que se perdera e do qual não esqueceu o valor.
Mas ainda teria que trabalhar na fazenda por mais algum tempo, até arrumar um bom dinheiro e planejar o que iria fazer quando de lá saísse.
Por essa razão trabalhou ainda mais algum tempo na fazenda.
Mas, esqueçamos o trabalho pelo menos por alguns instantes. 
Isso por que, em comemoração ao bom resultado nas vendas de seus animais, José planejava cuidadosamente uma festa. 
Festa essa da qual participariam todos os fazendeiros da região com suas respectivas famílias. 
De acordo com as palavras do simplório Juvenal, lugar onde os peões, não poderiam colocar os pés, que dirá participar. 
No entanto, para espanto de todos, José, o fazendeiro para o qual trabalhavam, cuidadosamente preparou uma espécie de festa a parte para eles. Para que assim, todos pudessem comemorar o resultado do trabalho. 
Em razão disto, todos ficaram extremamente agradecidos ao fazendeiro, e passaram a considerá-lo ainda mais digno de suas estimas.
Ticiano, em virtude dos recentes problemas pelos quais passou, não queria, de forma alguma, participar da festa. Não estava inclinado a aceitar o convite de José.
No entanto, quando a negativa de Ticiano chegou aos ouvidos do fazendeiro, este tratou então, de imediatamente chamá-lo, por meio dos amigos do rapaz, para participar da festa. 
Mesmo assim, Ticiano resistiu. Só foi aceitar o convite quando, o fazendeiro apareceu em sua casa e intimou-o pessoalmente a comparecer a festa, sob pena de aborrecê-lo tal recusa. 
Foi nessa oportunidade que o fazendeiro, ficou sabendo por meio dos amigos do rapaz, que ele estivera um pouco adoentado e que estava se recuperando.
Ao saber disso José indagou o rapaz a respeito do assunto.
Ticiano, respondeu então, que não estivera doente, e que tampouco estava convalescendo. Com isso, perguntou ao patrão:
-- Como foi que o senhor tomou conhecimento disso?
-- Seus amigos me contaram. – respondeu sem rodeios.
-- Já devia saber.
-- Mas, não se aborreça com eles não. Eles estavam preocupados com você.
-- Mas eles não deviam aborrecer o senhor com isto. Não era nada grave. 
-- No entanto, se isso acontecer novamente ... Se vosmecê rapaz, estiver com algum problema me avise. Não haverá problema nenhum se precisar faltar algum dia. Vosmecê e seus amigos, não são meus escravos. E mesmo que o fossem, estando doente, trataria de dispensá-los do labor. Não sou um tirano. 
-- Eu sei. Só não queria incomodá-lo. Não era nada sério.
-- Não me incomoda. Vagabundagem sim.
Disse isso, e despedindo-se de Ticiano saiu. 
Ao sair, lembrou-se de quando ele havia chegado e de como ele era diferente dos outros peões. A primeira vista, não, pois estava sujo e maltrapilho. Mas depois limpo e adequadamente vestido, parecia outra pessoa.  
Por isso mesmo, ao conhecer um pouco de sua história, José se solidarizou com o rapaz. Quis ajudá-lo. 
Ticiano parecia tão triste e sozinho. Sem rumo, desesperançado. 
Pouco a pouco, José foi descobrindo que ele era um rapaz esforçado, dedicado, inteligente. Muitas vezes, chegou a se perguntar se aquele jovem, era realmente o que parecia. 
Isso por que, até mesmo sua aparência destoava dos outros jovens, filhos de camponeses. Ticiano possuía feições suaves, seu porte era altivo, seu modo de falar era mais polido.
Catarina, sua esposa, já comentara o assunto. Vestido como Tiago, facilmente o teriam como filho de fazendeiro.
Pensando nisso, José arquitetou um plano. Queria vestir uma antiga roupa sua em Ticiano, para ver como ficava. 

Luciana Celestino dos Santos 
É permitida a reprodução, desde que citada a autoria.

TEMPOS DE OUTRORA - CAPÍTULO 4

Ao se recolher, Ticiano, posto que estava transido de sono, imediatamente adormeceu. 
Agora, finalmente poderia se desligar um pouco daquela realidade. 
Poderia enfim sonhar. 
Muito embora acreditasse que não havia sonhos. Sua vida era uma dura demonstração desta constatação.
Não obstante, sua firmeza com relação a isso, ultimamente, vinha-lhe em sonhos, a imagem de uma família unida e feliz, brincando num imenso jardim. Ao final do jardim havia um campo totalmente sem vegetação. Nele só havia terra e ao longe algumas árvores. Neste cenário, pai, mãe e dois filhos brincavam de pegar um ao outro, e de jogar bola entre si. No sonho a família rolava na lama, e algumas vezes, fazia um pequenique.
Não obstante parecer um sonho alegre, na primeira vez que o sonhou, Ticiano acordou sobressaltado. Aquela alegria era para ele algo distante e inatingível. Soava com uma lembrança extremamente dolorosa. Algo que preferia esquecer. 
Diante do sonho inesperado, assustado que estava, Ticiano tratou de fixar seus olhos em algum ponto do quarto. E assim ficou por alguns minutos. 
Durante esse tempo, pensou em muitas coisas. Mas, em razão do que sonhara, seus pensamentos estavam desordenados. Vinha-lhe a mente muitas idéias confusas. 
Somente depois de olhar fixamente para o baú que tinha em frente a cama, e se acalmar, é que a estranha sensação que tomara conta de seu corpo passou.
Depois de algum tempo, ao se dar conta de já era tarde, voltou a dormir. No dia seguinte precisava estar bem para poder trabalhar. Precisava do serviço. E assim, voltou a dormir. 
Passadas algumas horas, levantou-se e imediatamente, começou a se preparar para mais um dia de trabalho. Com isso, como de costume, trocou a roupa, lavou o rosto, e foi trabalhar. 
Durante o dia, trabalhou normalmente, mas seus amigos perceberam que o rapaz estava com um ar cansado. Ao ver-se alvo da curiosidade dos companheiros de trabalho, o rapaz disse logo, que não dormira bem a noite, e que por isso parecia cansado. 
Não havia nada demais. Muito menos com o que se preocupar, dada as explicações apresentadas.
Não obstante o breve relato de Ticiano, Caio e Juvenal ainda especulavam o que teria se sucedido para que Tício tivesse dormido tão mal ou tão pouco. Intrigados que estavam com aquela história, os dois chegaram até a fazer um pouco de troça com o amigo, no que ele ignorou.
Nisso, o dia foi passando. Sobreveio a noite, e todos foram se recolher. Ticiano dirigiu-se para sua casinha e logo tratou de se preparar para dormir.
E assim fez. Ao colocar o pijama, deitou-se na cama e dormiu. Dormiu, dormiu, e continuaria dormindo não fosse novamente o sonho. Exatamente igual a noite anterior.
Agora, estranhamente, já se passando dois anos em que ali estava, passara a sonhar repetidas vezes, o mesmo sonho. Não entendia o por que disto. 
Há muito tempo atrás, sonhou seguidas vezes aquele mesmo sonho. Só que com o passar dos anos, aquela terrível cena, apagou-se de sua memória. Já estava desacostumado daquelas imagens. 
Para ele, a aludida cena fazia parte de um passado distante do qual não queria guardar lembranças. Não sentia saudade daquele tempo, em que noite após noite, sonhava com a referida família, quase sempre na mesma situação. Não queria novamente, passar por isso.
No entanto, o sonho voltou a ser freqüente, infelizmente para ele. 
Mas ao contrário de antes, dada a repetição dos seus sonhos, passou a se acostumar com eles, de certa maneira, muito embora a imagem da família feliz, ainda o perturbasse. 
A despeito, do sonho, contudo, passou também, a sentir vontade de sair daquele lugar. Queria ir embora dali. Não se sentia mais animado em permanecer naquela fazenda.  
E nisso, os dias iam se passando. Ticiano, continuava a sonhar o aludido sonho. 
Não obstante isto, uma vez, além da cena das brincadeiras no descampado, houve um momento em que surgiu um estranho que quis conversar com a jovem mãe. Tratava-se de um homem alto, bem vestido e de maneiras elegantes que queria conhecê-la. O jovem senhor, insistiu muito para vê-la apesar de sua resistência. Parecia aflito. 
Entretanto, apesar da aflição do homem, a jovem mulher parecia determinada a não atendê-lo. Pediu ao marido para que dissesse que não poderia lhe falar. Assim, o esposo tentou o quanto pôde conversar com o aristocrata, já que pelos modos parecia sê-lo. 
Mas, apesar do pedido do marido para que este não incomodasse sua esposa, e da insistência do consorte para que lhe fosse adiantado o assunto, o estranho homem reiterava constantemente que o assunto era particular, pessoal e urgente. Que só ela interessava.  
Inobstante, a alteração da cena, as personagens dos sonhos anteriores permaneciam as mesmas. Somente o enredo é que fora modificado. 
Ademais, quando acordou, Ticiano, tratou de se levantar. 
Ao se preparar para o trabalho, o rapaz tentou se lembrar do que sonhara mas não conseguiu. Parecia, ter perdido uma parte do sonho. 
Nisso ao lavar o rosto, Ticiano tentou mais uma vez reavivar a lembrança, mas não conseguiu. Só conseguia se lembrar da resistência da mulher em atender o estranho homem.
O rapaz queria tentar se lembrar do restante do sonho, mas não conseguia. Ao constatar que o esforço era inútil, se precipitou contra a porta e saiu.
Quanto se dirigiu a cocheira para tratar dos cavalos, retirou um dos animais e deu-lhe um banho. Depois trocou o feno e levou o animal de volta para a cocheira. 
O rapaz, já estava saindo com outro cavalo, quando Mário o avistou. Ia cumprimentá-lo. Mas este, ao perceber a expressão abatida do amigo, aconselhou-o a ir até a sede e pedir para que o dispensassem do labor, pelo menos pelo dia.
Só que, teimoso que era, Ticiano não deu a devida atenção aos conselhos de Mário. Disse-lhe que estava bem, e que aquilo era uma leve indisposição.
Mas Mário insistiu com Ticiano afirmando que ele já vinha apresentando este abatimento há algum tempo. Preocupado Mário foi dizendo que primeiro, foi a expressão de cansaço no rosto, agora o abatimento. 
Ao ouvir isso Ticiano rebateu alegando ser talvez uma gripe. Todavia não convenceu o camponês. 
Para Mário, a alegada indisposição era algo mais sério que ele não queria contar.
Por esta razão, durante toda a jornada, Mário tentou saber do amigo o que se passava. Todavia, não obteve respostas. 
Não bastasse isso, por causa da insistência do amigo, Ticiano se fechou mais do que de costume. 
Acabrunhado, durante o horário de almoço comeu pouco, o que preocupou deveras os amigos, e ficou encolhido em um canto do refeitório improvisado. 
O rapaz ficou pensando no que estava acontecendo nas últimas semanas. Ensimesmado não conseguia parar de se lembrar do sonho que não queria mais sonhar. Não se sentia confortável por ter a lembrança daquela família em seus pensamentos. Sentia-se mal por sonhar com isso. Sentia-se perdido, sem ter para onde recorrer. 
E assim, novamente transcorreu o dia. Todos se recolheram e cuidaram de descansar, pois precisavam trabalhar no dia seguinte.

Luciana Celestino dos Santos 
É permitida a reprodução, desde que citada a autoria.

TEMPOS DE OUTRORA - CAPÍTULO 3

Tício, era como o rapaz era conhecido por alguns colegas de labuta, os quais sempre foram camaradas com ele. Os mesmos gostavam de sua companhia, pois ele trabalhava bem, embora, o achassem um pouco triste e solitário. Coisas de amigo. 
Mário, Caio, Sérgio e Juvenal eram as pessoas mais chegadas a ele, desde que chegou àquelas paragens, há quase dois anos. No começo o achavam um pouco taciturno e sombrio. Não parecia estar interessado em amizades. 
Os quatro ao conhecerem-no se espantaram ao vê-lo sozinho, sem família. Até mesmo, porque, quando Ticiano chegou àquelas cercanias, estava sujo e maltrapilho. Parecia fugir de alguma coisa. Entretanto, não parecia assustado.
O fazendeiro, dono da propriedade, José, estranhou um bocado a ausência de seus pais, dada a tenra idade que o mancebo parecia ter. Assim, quando foi ter com o rapaz, procurou logo se inteirar de sua situação. 
Preocupado com a possibilidade de se tratar de um menor desaparecido, crivou-o de perguntas. Chegou até mesmo a pensar em levá-lo para um abrigo de menores, dada a insistência do rapaz em dizer que não tinha pais. No entanto desistiu de tal intento ao constatar que o jovem era um excelente trabalhador.
José, reiteradas vezes tentou saber sobre a família de Ticiano. Pensou até em investigar a vida pregressa do rapaz. Mas o fazendeiro abandonou essa idéia, mesmo o jovem tendo, em conversas com o então futuro empregador, mencionado ter vindo de São Paulo. 
Para José, havia algo de estranho em suas poucas explicações sobre sua origem. Não havia muitos detalhes em sua história, e quando alguém tentava descobrir mais sobre sua vida, Ticiano se fechava como se fora uma ostra. 
Contudo, o fazendeiro aceitou-o em sua fazenda. Enquanto fizesse um bom trabalho, não haveria motivos para dispensá-lo.
Até porque, acostumado com a discrição do jovem mancebo, José nunca tivera um motivo sequer para desconfiar dele. Mesmo as rusgas que havia entre Ticiano e Tereza, não davam razão para desconfiar do rapaz que sempre agira corretamente com o patrão.
Além do mais, sempre que José via sua filha Tereza junto do moço, tratava logo de admoestá-la e proibi-la de fazer troça com ele.
Ticiano era portanto, um rapaz correto. Por isso, pouco se podia falar contra ele. Exceto por seu temperamento fechado e sua insistência em não falar sobre sua vida, o seu comportamento era impecável.
Mas havia, como já foi dito, esta estranha aura de mistério que circundava sua vida. Sempre sério, taciturno, alguns camponeses o achavam presunçoso, outros, ao contrário. Ao se aperceberem de sua habilidade para a leitura e para os estudos, concluíram tratar-se de alguém com um certo refinamento e portanto membro de uma rica família. 
Estes últimos comentários caíram nos ouvidos de José, que novamente, depois de meses em que Ticiano trabalhava para ele, pensou em investigá-lo. O fazendeiro cogitou até, ir a São Paulo, para descobrir seu paradeiro. 
Isso por que José, sempre achara muito estranha a história que ele havia contado. 
Para ele a história de que os pais de Ticiano morreram quando ele era muito pequeno, e que havia sido criado por uma tia, era pouco provável. Contudo ao ouvir que o rapaz era maltratado constantemente, e por que isso resolveu fugir, José então, começou a acreditar na história. 
Foi por esta razão também, que Ticiano comentou que antes de chegar lá, se escondeu em vários lugares. Até que chegou naquela região, e logo ficou sabendo que havia um fazendeiro que precisava de empregados. Necessitado de um pouso, imediatamente se candidatou para o labor. Assim, depois de muito caminhar, ali chegou e por lá ficou. 
Com isso, no começo, alguns dos camponeses pensaram se tratar de um andarilho, mas como Ticiano permanecera na fazenda, descartaram a idéia. Um andarilho não ficaria tanto tempo num mesmo lugar.  Mário, um dos colegas de Tício, cismou que o rapaz trazia consigo uma dor muito grande, daí aquele jeito gélido e duro de tratar as pessoas. Ele achava que Ticiano se comportava daquela maneira para se defender. Por isso, várias vezes, tentou descobrir em vão o que fizera ele ser tão indiferente. Curioso comentava com os amigos:
-- Não adianta, Ticiano é duro como uma rocha. Não comenta sobre seu passado.  
-- O Tício, não fala de nada. Vosmecê quer dizer. – retrucou Juvenal.
-- Não adianta, Mário. Ele não quer contar. Não podemos obrigá-lo. – disse Caio. 
-- Deve ter acontecido algo muito sério em sua vida, para que não queira falar. – insistiu Mário.
Ás vezes, Mário, Caio, Sérgio e Juvenal, se reuniam numa venda que havia próxima a fazenda onde trabalhavam e ficavam a noite inteira bebendo e conversando. Falavam sobre a vida de trabalho duro que tinham, dos outros camponeses iguais a eles, sobre a vida do patrão, etc. Também, perguntavam ao dono do estabelecimento sobre as novidades, e nessa conversa se divertiam por horas e horas. 
Naquelas paragens, essa era uma das poucas distrações que os campesinos tinham. As idas à cidade eram escassas, só se dirigindo para lá quando havia absoluta necessidade. Não precisavam comprar seus alimentos porque, com seu labor garantiam a comida. 
Isso já  era uma grande conquista, dado que, a grande maioria dos trabalhadores que havia eram escravos, que nada recebiam por seu trabalho. Por essa razão, eram uma exceção. Possuíam liberdade. Poderiam de lá sair quando quisessem. Ao contrário dos escravos.
Entretanto, para que sairiam de lá? Na Fazenda Passárgada tinham tudo que precisavam. Toda a família deles ali trabalhava e era dali que retiravam seu sustento. Ademais, já estavam por ali há muito tempo. 
Lugar pacato, sossegado, tranqüilo, repleto de fazendas cafeeiras. De longe, nas precárias estradas de terra que existiam, se podia ver a imensidão da verdura das lavouras de café. Tudo por ali era calmo. 
Quando surgia um estranho, alguém de outras paragens, era um acontecimento. 
Isso por que, esta era uma forma de conhecerem outros lugares, visto que a maioria dos camponeses que ali viviam, vieram de regiões próximas, ou até mesmo, já nasceram lá. O lugar mais distante que conheciam era a cidade próxima. 
Então, o aparecimento de alguém novo por lá, era uma forma de se ter novidades e assunto para conversar.  
Por isso, quando Ticiano surgiu por lá, todos queriam conhecer sua origem. 
Contudo como o rapaz se revelou uma pessoa extremamente calada, uma aura de mistério permanecia ao redor. 
Em razão disso, mesmo após algum tempo, Ticiano ainda era motivo de assunto para muitos dos camponeses do lugar.

Luciana Celestino dos Santos 
É permitida a reprodução, desde que citada a autoria.

TEMPOS DE OUTRORA - CAPÍTULO 2

Apesar de sua pouca idade, Ticiano não era a dado a grandes confabulações, ficando boa parte do tempo calado. Por isso possuí poucos muitos amigos.
E apesar de seu interesse pelos estudos, não era muito suave em suas maneiras. Era um pouco rude com as pessoas. Por muitos era tido como um sujeitinho arrogante e até presunçoso.
Os próprios filhos do fazendeiro, o tratavam com pouco caso, e reiteradas vezes, tentaram intimidá-lo e humilhá-lo.
No que, apesar de sua origem simples, não se deixava intimidar. Se tentam ofendê-lo respondia firmemente que, respeito é uma troca, e que quem não o respeitava, não devia exigir dele respeito.
A despeito de suas maneiras sisudas, quando necessitava argumentar com os filhos do fazendeiro sobre algo que o incomodava, não se fazia de rogado.
Uma vez disse que:
-- A finalidade do ser humano é a busca de sua realização, e a partir do momento em que se tenta escravizar um homem, ou reduzi-lo a condição análoga de escravo, vosmecês estão praticando, não só contra esse homem, mas também, contra toda a humanidade, um ato de violência. O fim de qualquer ser humano, não é a escravidão, nem a exploração deste por outro homem. Não é reduzindo um homem a mera condição de objeto, que conseguirão retirar dele sua consciência, suas convicções. Ademais, até onde sei, a própria Igreja Católica, através de seu maior símbolo, recrimina isso. Não é o próprio Jesus Cristo, que diz, ‘Amai-vos uns aos outros?’ Se ele realmente disse isso, ele já estava pregando a igualdade em sua época.
Depois que terminou de dizer estas palavras, calou-se e saiu.
Entretanto, diante de tal argumentação, todos que por ali estavam, ficaram impressionados. Como alguém aparentemente tão pobre e simplório poderia ter uma visão tão crítica e perigosa sobre a condição dos escravos?
Ao chegar aos ouvidos de José a tal conversa, o fazendeiro tratou logo de chamá-lo. Queria ter com ele.
Ao ser chamado, o rapaz, imediatamente se dirigiu a sede da fazenda.
Ticiano, adentrando a sede da fazenda, atravessou a sala principal para chegar até o escritório do fazendeiro, o qual ao vê-lo foi imediatamente inquirindo-o:
-- O que vosmecê, tem contra a escravidão?
Imediatamente, o rapaz, notando o sinal que o fazendeiro fazia, tratou de fechar a porta. Em seguida, respondeu:
-- Aparentemente nada. Somente o fato de que quem está submetido a este regime, está privado de sua liberdade.
-- Bobagem. Se eu os libertasse agora, eles não teriam para onde ir.
-- Eu sei. Mas isso não é culpa deles, nem do senhor. Tenho perfeita consciência de que este sistema é tão antigo quanto a própria humanidade. O que não o impede de estar errado.
-- E que é que o senhor quer que eu faça?
-- Nada. O senhor, apesar disso, trata bem todos eles pelo que vejo, e só não os liberta por que não teria como.
-- Vosmecê, acha realmente isso, Ticiano?
-- Sim eu acho. Se o senhor realmente libertasse seus escravos, teria que enfrentar a ira e a reprovação de todos os seus amigos fazendeiros escravagistas. Todos eles temeriam os reflexos de sua atitude.
-- Ticiano, vosmecê me surpreende dizendo isto. Realmente, eu não poderia fazê-lo sem o apoio dos outros fazendeiros, e até mesmo do governo, pois como eu faria para contratar novos trabalhadores, para colocá-los em seu lugar?
-- Realmente, um problema de difícil solução. Diante de tal fato, eu não tenho mais argumentos.
-- Está bem Ticiano. Pode se retirar.
-- Com licença.
Dito isso, retirou-se e ao sair, encostou a porta.
Essa fora apenas uma das diversas conversas que o rapaz teve com seu patrão.
Deveras, diversas vezes Ticiano foi interpelado pelos filhos do fazendeiro que tentavam atingi-lo de alguma forma.
Uma vez, Tiago usou o argumento de que os homens devem amar uns aos outros, para tentar desarmá-lo.
No que Ticiano retrucou:
-- Talvez isso tudo seja uma grande quimera. Não existe uma forma de escravizar as pessoas para que possam ser controladas. No entanto, foi ensinado através da religião, aos humilhados, que se conformem com a escravidão que lhes é imposta. Para que assim, não reajam. Porque quando morrerem terão o reino dos céus.
Ao estar diante de uma afirmação tão inesperada e perturbadora, dada sociedade e a época em que vivia, Tiago encontrou-se sem argumentos para se defender das palavras de Ticiano. Não esperava por aquilo. Afinal, Ticiano era sempre tão cristão em suas colocações!
Por fim, para não se sentir em grande desvantagem, Tiago tratou de adverti-lo de não dizer o que acabara de dizer para qualquer um, pois se o fizesse poderia ter problemas.
Enfim, sempre que encontrava oportunidades para falar de coisas que lhe interessava, Ticiano acabava por mostrar um pouco do que ía dentro de si.
Exatamente nessas horas, quando enfim, proferia algumas palavras, é que podia notar, que Ticiano, não era um camponês ignorante e inculto. Nesses momentos, via-se nele um brilho de cultura, algo de educação.
Certa vez, Catarina ao ouvi-lo conversar com seu filho, intrigada, indagou:
-- Porque será que esse rapaz veio para cá? Pelo seu jeito de falar, nota-se que possuí alguma instrução.
-- Não sei. Às vezes, eu brinco com ele dizendo-lhe que ele é um peão ignorante, mas ...
-- Mas o que Tiago?
-- É que ele me lembra alguém, algo muito familiar.
-- Quem?
-- Tolice da minha parte. Como é que ele poderia ser algum conhecido meu?
-- Verdade. Mas que esse rapaz é muito mais que um peão, isso ele é.
Por esta razão e também por outras, a família Vieira sempre desconfiou um pouco da vinda do jovem Ticiano para lá.
Os próprios filhos do fazendeiro, viviam a provocá-lo e quando ele lhes respondia, ou, como acontecia na maioria da vezes, ignorava-os, o jovem mancebo demonstrava uma certa altivez. Sem dúvida alguma, o misterioso rapaz era muito mais do que o que mostrava ser.
Certa vez, Tereza, a filha do fazendeiro tentou provocar-lhe, dizendo palavras grosseiras. Ao que Ticiano, o jovem empregado de seu pai, distraído que estava com seus pensamentos, nem ouviu suas imprecações.
Ao perceber que não era notada, Tereza imediatamente puxou o prato em que estava a refeição do jovem e a atirou no chão. Por pouco o rapaz não bateu em Tereza. Para tanto, o rapaz precisou se conter.
Com isso, depois do incidente, Ticiano abandonou o refeitório improvisado próximo a sede da fazenda e se dirigiu a cozinha, para poder finalmente, terminar sua refeição.
Ao terminar a refeição, farta, embora muito simples, Ticiano retornou a sua labuta diária. Trocou a água dos animais, colocou mais feno na cocheira para os cavalos, e no final do dia, ao cair da tarde, se recolheu, para então descansar.
Muito embora estivesse cansado, cuidadosamente, retirou as botas, guardou-as debaixo da cama, e na penumbra do quarto, banhou-se e trocou a roupa suada do trabalho, por outra, a qual usava como uma espécie de pijama.
Depois, tratou de deitar-se e dormir.

Luciana Celestino dos Santos
É permitida a reprodução, desde que citada a autoria.

TEMPOS DE OUTRORA - CAPÍTULO 1

Lembranças, templo de velhas saudades, alegria, tristeza, mágoa e revolta. Recordações de uma época que não retornará. De um tempo que embora triste e querido, resiste nas memórias de um passado que não volta mais. 
Essa história começa nos idos de 1852, nas cercanias da hoje conhecida, cidade de Petrópolis.
Eram tempos felizes.
Nessa época viveu nestas paragens, uma ilustre família da Capital. 
Família essa que hoje, poucos sabem a respeito. 
Os poucos que dizem ter conhecido a família, não comentam o assunto. Não gostam de falar sobre isso. Preferem esquecer. Para a sociedade fluminense, importa mais saber sobre as novidades na Corte do Império, do que comentar sobre os acontecimentos passados.
É bom sonhar com os bailes organizados no Palácio Imperial, com a nobreza e suas delicadas maneiras nos salões. Os saraus, as festas, as confraternizações. O luxo e o requinte de uma vida que poucos podem usufruir. 
Enquanto alguns privilegiados convivem com a abundância, protegidos em suas pequenas fortalezas, livres de toda miséria e pobreza; outros – aliás, a grande maioria da população, não só daquela, mas de outras cidades e vilarejos –, convivem com a mais absoluta pobreza.
É nesse cenário que um jovem rapaz, agora vive.
Distante dali, da efervescente Corte Imperial, na região de Vassouras, mais tarde elevada a categoria de cidade, vive um rapaz pobre, que trabalha para um senhor, fazendeiro ilustre do lugar, e conhecido criador de animais. Diferente de todos os demais latifundiários das cercanias que cultivam café, José, cuida da criação de cavalos. 
Para este senhor, o jovem realiza serviços de conservação dos estábulos, trata os cavalos, e os treina. Possuí uma rotina dura de trabalho. Para realizar suas tarefas, precisa acordar muito cedo. 
Este senhor, patrão de Ticiano, possuí dois filhos, uma moça de quinze anos e um rapaz de dezessete. Ambos possuem uma vida de príncipes. O rapaz, como todos os filhos de fazendeiros ricos, se prepara para viver alguns anos na Europa estudando. Já a moça é educada por ali mesmo, na fazenda. Muito embora já tenha estudado em colégio interno, para que com isso pudesse ter alguma instrução e refinamento, ambos exigidos na vida social, a moça agora, deveria ficar na fazenda.
Com isso de vez em quando José e a família iam para a Corte. 
Assim, enquanto o ilustre fazendeiro aproveitava a viagem para passear com a família, tratava também, de realizar a venda de alguns de seus belos animais. 
Quando surgia alguma oportunidade também aproveitava para participar de eventos relacionados com seu trabalho, na cidade. Em razão disso, o fazendeiro colecionava alguns prêmios obtidos em leilões, em virtude da qualidade de seus animais.  
Essa  era a rotina de viagens da família Vieira. Lazer para a esposa e os dois filhos, e trabalho para José. 
E assim, aproveitando então a estada na Capital da Província, Tereza – a filha –, e Tiago – o rapaz –, bem como a mãe Catarina, tratavam logo de visitar os mais belos cenários da cidade. Faziam compras, passeavam pela Rua do Ouvidor, caminhavam pelo Jardim Botânico. Enfim, toda vez que rumavam para lá, revisitavam todos os lugares que já estavam acostumados a admirar em postais enviados por amigos. 
Com isso, enquanto os filhos do patrão estavam sendo educados para a vida em sociedade, o jovem, que possuí quase a mesma idade deles, trabalha de sol a sol, numa dura rotina diária. 
Como dia de descanso apenas o domingo, que usa para suas leituras, e estudos de história e literatura. Ás vezes, aproveita o dia, para, com a carona de um dos empregados da fazenda, ir até a cidade para gastar um pouco de suas míseras e parcas economias com mais livros e tecidos para suas roupas. Por seu trabalho na fazenda, não tinha que gastar seu dinheiro com alimentação. 
A morada, é um casebre, próximo a cocheira. Simples. Só possuí uma cama, um baú para guardar alguns pertences adquiridos em virtude dos anos lá trabalhados, alguns livros e roupas de cama, bem como um penico, uma jarra de barro, uma bacia de uma louça barata para molhar o rosto, e uma tina, para que pudesse se banhar. 
Daí se concluí portanto, que Ticiano não possuí muitos pertences. De seu realmente, não possuí quase nada. Quando chegara nestas paragens, as únicas coisas que trazia consigo, eram uma foto amassada de uma família, e uma trouxa de roupas.   
Destituído de qualquer vaidade, não possuía roupas adornadas, somente o necessário para estar dignamente trajado. Aliás, alguns de seus trajes, diga-se de passagem, estavam bastantes surrados.         

Luciana Celestino dos Santos 
É permitida a reprodução, desde que citada a autoria.