Poesias

sexta-feira, 5 de fevereiro de 2021

BARRACÃO DE ZINCO - CAPÍTULO 4

Com isso, ao término da transmissão , Clarissa mais uma vez, desligou o rádio.
Mas qual não foi sua surpresa ao descobrir nas mãos da tia, um jornal intitulado ‘Revolução Fabril: A Voz do Operário’.
Raquel, ao levar para casa uma edição do jornal, foi logo perguntando a sobrinha, se ela sabia quem estava envolvido com a produção do jornal.
Clarissa desconversou. Porém, pensou: Como ela poderia saber?
Mas sua tia não estava convencida. Por isso, procurando avisar a garota, comentou:
-- Clarissa, pelo amor de Deus, não se meta com essa gente. Você vai acabar arrumando confusão para sua vida. Esse jornal mesmo, está circulando por toda a cidade. Umas vizinhas aqui do cortiço até comentaram que na tecelagem onde você trabalha, mandaram apurar quem teria sido o responsável pela publicação do jornal.
Clarissa ao ouvir as palavras de sua tia, deu de ombros.
Sim, as partes começavam a se manifestar.
Assim se denota, dada a dimensão dos fatos, que o jornal já estava cumprindo com sua finalidade.
E para espanto de todos, de maneira muito mais eficiente do que esperavam.
Na cidade inteira não se falava em outra coisa.
Assim que amanheceu e todos os moradores encontraram o jornal em suas portas, trataram de lê-los.
Os textos contudo, faziam uma dura crítica ao sistema capitalista. Isso em uma época de ditadura e de perseguição política.
Nesse período, muitas lideranças sindicais já haviam sido deportadas.
Mas Bruno, Clarissa, e os demais participantes do movimento de luta operária, estavam convencidos de que já era hora de perderem o medo e continuarem a lutar.
Por isso, irmanados nesse objetivo, resolveram criar um jornal, que representaria a voz de todos os excluídos e discriminados.
Dessarte, para a alegria deles, ao distribuírem o jornal nas portas das casas, possibilitaram que outras pessoas tomassem conhecimento da luta.
E mais, dada a ousadia dos militantes, não se falava em outra coisa por quase toda a cidade.
Era impressionante. Muito embora a grande maioria dos leitores tivessem concordado com a abordagem crítica dos assuntos, uma pequena, mas representativa minoria discordou profundamente de tudo o que fora escrito.
Assim, os empresários, ao se depararem com o jornal, numa tentativa de tentar contornar a situação, passaram a telefonar uns para os outros, com o intuito de se reunirem e conversarem sobre as primeiras medidas a serem tomadas.
Por isso, ao combinarem o local onde iriam conversar e horário da reunião, todos se apressaram. Precisavam chegar em tempo ao local.
Quando chegaram ao lugar da reunião, a casa de um deles, que por ser mais ampla, era o local ideal para isso, foram logo recepcionados pelos criados e encaminhados para o escritório. Lá por ter uma ampla sala, destinada a reuniões, poderiam conversar sossegadamente.
E foi isso que fizeram.
Discutindo muito sobre o assunto e as medidas que poderiam tomar, chegaram a conclusão que o aludido jornal tinha que ser fechado o mais depressa possível.
Afinal de contas, se esse movimento crescesse, prejudicaria os negócios de todos eles. Isso por que, no caminho do jornal viriam os conflitos, nos quais os operários passariam a medir forças com eles. Por isso, precisavam evitar que o movimento ganhasse força. Precisavam descobrir onde os redatores do jornal se encontravam e, juntamente com a ajuda da polícia, prender todos os responsáveis por aquele acinte.
Precavidos e intransigentes, não podiam deixar que a situação lhes escapasse do controle.
Indignados, mas não entorpecidos pela raiva, tiveram o cuidado de ler mais uma vez as matérias.
Tudo isso para tentarem descobrir algum possível indício que os levassem até o responsável pela publicação daquelas matérias.

Um deles, de tão exaltado que estava, pegou o jornal com as matérias, e começou a ler uma referente a história do trabalho. Intitulada ‘O Opróbrio dos Povos Humildes’, relatava o seguinte:
A história do trabalho começa com muita vergonha e abjeção. Isso por que, a primeira forma de trabalho, se deu com a escravidão. Ou seja, o homem passou a ser explorado por outro homem. Por um seu igual.
Além disso, por dívidas, muitos homens foram compelidos a essa indigna condição, como forma de pagarem por suas dívidas. Como conseqüência, muitos deles eram mutilados, seviciados e até mortos, para solverem seus débitos.
Uma verdadeira indignidade como se pode perceber.
Na Grécia por exemplo, havia os escravos, os servos e os homens livres. Por ser o trabalho considerado algo menor nessa cultura magnífica, somente os escravos e os homens de origem humilde eram a verdadeira força de trabalho do lugar.
Já os homens livres e bem nascidos, estes participavam das discussões políticas na Ágora. Para eles, somente os homens em boa condição poderiam participar dessas discussões. Ninguém mais. O ócio era um fator muito valorizado na Grécia, ao contrário do trabalho, que era um fardo.
Portanto os negociantes, assim denominados em razão de abrirem mão do ócio, eram tratados com desprezo.
Contudo, quando os romanos, na sua ânsia por ampliar seus horizontes, invadiram a Grécia, os gregos foram logo reduzidos a condição de escravos.
No entanto, os mais escolarizados, se tornaram professores, filósofos e conselheiros. Estes escravos com seu trabalho, ajudaram Roma, a se fortalecer culturalmente.
Algum tempo após, a escravidão passou a ser um meio de subsistência. Como se tratava de um negócio muito lucrativo, imperou em muitas culturas. Também, com a facilidade de se adquirir escravos e dado o fato de que não recebiam salário, não tinham muitas despesas com estes.
Outra indignidade!
Como roupa, só tinham o suficiente para não ficarem nus e como alimento, somente o necessário para sobreviverem. No mais, viviam em péssimas condições.
Na Idade Média, imperou o regime da servidão. Mais este era tão ou mais indigno que a escravidão.
Isso por que, os servos eram tão explorados quanto os escravos. Embora recebessem do senhor feudal um pedaço de terra para cultivar, boa parte do tempo, empregavam, cuidando das terras do próprio senhor feudal.
Contudo, apesar de servos, quando a propriedade era vendida, os mesmos iam junto com a terra, como acessórios.
Depois de um certo período, o regime de servidão entrou em declínio.
Em seu lugar surgiram as Corporações de Ofício, onde artesãos e outros profissionais se reuniram. Os mestres eram donos das oficinas e únicos autorizados a explorar determinada atividade comercial. Além disso, eram os mestres que dirigiam estas, como forma de defender os interesses da classe.
No entanto, apesar desta organização de trabalho, para o companheiro, – subordinado ao mestre – conseguir chegar ao grau de mestre, era necessário realizar uma obra mestra. Tal obra, de alto grau de dificuldade, eram o que lhe possibilitava ascender profissionalmente. Contudo, tal obra, para ser aprovada, necessitava do aval dos mestres integrantes da Corporação, o que era deveras difícil de se conseguir.
Portanto essa possibilidade era remota. Até por que, o objetivo maior das Corporações era assegurar o mercado de trabalho para os mestres e seus herdeiros. Ou seja, para seus dirigentes.
Bem se vê com isso, que o trabalho desde sempre, era colocado de lado, como se fora um mero detalhe na relação trabalhista.
Entrementes, após um certo tempo, dada a rigidez da estrutura dessas Corporações, as mesmas acabaram se estagnando.
Foi nesse período que surgiu a classe dos burgueses. O burgueses eram pequenos comerciantes, que embora bem sucedidos financeiramente, estavam afastados do poder e que ansiavam por esta possibilidade.
Nesse momento, surge a doutrina liberal, a qual Adam Smith, formulou seu embasamento acadêmico. Por meio desta escola, o Estado deveria deixar de intervir nos assuntos de natureza econômica, autorizando os particulares a agirem livremente.
Com isso, surge a Revolução Francesa e o Iluminismo. E entre os envolvidos na luta contra o absolutismo, estava Jean Paul Marat, que defendia ferrenhamente, o retorno das Corporações de Ofício, como forma de assegurar um mercado de trabalho, manter o nível de aprendizagem profissional e a dignidade dos trabalhadores.
Nos séculos XVIII e XIX, com o avanço tecnológico, dá-se início a Revolução Industrial. Surgindo inicialmente na Inglaterra, se espalhou por vários países.
Transformando as oficinas de artesãos em fábricas, passaram então a produzir produtos em larga escala.
Foi a partir daí que surgiu um dos períodos mais sombrios da história do trabalho.
Isso por que, num primeiro momento, a utilização de máquinas em lugar do trabalho humano, causou desemprego e revolta. Depois, com o rápido surgimento das indústrias, a mão-de-obra trabalhadora foi sendo novamente absorvida, mas, a despeito da evolução tecnológica, em condições extremamente adversas para o trabalhador.
Assim, sendo grande a oferta de mão-de-obra e não havendo qualquer controle estatal, os salários foram sendo fixados em níveis cada vez mais baixos, enquanto a jornada de trabalho era ampliada para além dos limites de resistência física.
Por economia, utilizavam-se do trabalho de crianças, que eram submetidas a jornadas de trabalho extenuantes. Nesse tempo, havia a jornada de sol a sol, na qual, o trabalho perdurava até quando houvesse luz.
Além disso, muitos empregadores espancavam seus empregados por qualquer deslize.
Em suas memórias, Robert Blincoe, nos conta, que teve seu couro cabeludo infectado de tanto sofrer contusões nesta região.
Mas, para horror de todos, quão pior não foi o tratamento ao qual foi submetido. Como forma de tratá-lo, derramaram piche quente derretido sobre seu crânio. Quando o piche esfriou, formando uma placa, foi arrancado, levando junto, todos os cabelos.
Ademais, relata-se o caso de um adolescente que aos 15 anos, deformado, que tinha apenas um 1,14 m de altura. Isso em razão de seu trabalho, por ter de trabalhar de 15 horas por dia em uma indústria têxtil com os joelhos dobrados.
Para piorar ainda mais a situação, os salários eram aviltantes, assim como hoje. Assim, os trabalhadores não tinham direito as condições dignas de existência.
Nesse contexto, assim como nos dias atuais, muitos consideravam a pobreza, como a vontade de Deus.
Mas em meio a toda essa injustiça social, surgem as idéias socialistas de Robert Owen (1771-1858), de Charles Fourier (1772-1837) e de Karl Marx (1818-1883).
Para Owen, deveria haver comunidades industriais, com melhores condições para os trabalhadores. Fourier todavia, idealizou os falanstérios, os quais seriam comunidades inteiramente livres, onde todas as atividades, inclusive o amor, se desenvolveriam naturalmente, conforme as inclinações individuais de cada elemento. Desta maneira, desapareceriam as diferenças entre o trabalho e o prazer.
Mas Owen e Fourier, esgotaram suas fortunas tentando implantar as tais comunidades ideais, sem contudo, lograrem êxito em seu intento.
Marx então, imaginou uma república de operários, com a extinção de todas as outras classes e o Estado, o qual perderia sua função. Este foi o ponto crucial para inspirar a realização da Revolução Socialista Soviética de 1917.
Ao mesmo tempo, enquanto despontavam as teorias sociais, surgiram os movimentos sindicais operários, com muitas mortes.
A Igreja então, despertando para os movimentos sociais, editou as encíclicas papais Rerum Novarum, Quadragesimo Anno, Divini Redemptoris e Mater et Magistra.
Com isso, o Estado, também vai abandonando lentamente a doutrina do não intervencionismo e passa a promulgar as primeiras leis de proteção ao trabalho. Assim, é criada a Organização Internacional do Trabalho (OIT), em 1919.
Mas ao que parece, apesar das inúmeras conquistas internacionais, o nosso país continua a sofrer com a exploração no trabalho.
Jornadas de trabalho extenuantes, exploração do trabalho infantil, baixa remuneração, desvalorização do trabalhador. Até quando teremos que suportar isso?
O Brasil não precisa fazer parte desse histórico. Precisamos que sejam assegurados os direitos dos trabalhadores.
Será que os empresários não percebem que com boas condições de trabalho, os operários trabalharão mais motivados?
Este é um ponto para ser pensado.

Depois de terminar de ler a matéria, um dos empresários exclamou exaltado:
-- Estão querendo nos derrubar. Isto é um acinte. Esses baderneiros não podem continuar a fazer galhofa conosco. Precisamos nos mobilizar contra essa pilhéria. Não podemos admitir esse tipo de situação.
-- Realmente. Isto é um acinte sim. Mas o que podemos fazer? – perguntou outro, preocupado com a possibilidade de que o jornal, causasse problemas para eles.
-- Precisamos descobrir quem foi o responsável por isto.
E assim, passaram horas discutindo.
Enquanto isso na cidade, não se falava em outra coisa que não fosse no aludido jornal. Desde as pessoas mais simples, até os empresários – como já mostrado –, todos se admiraram com a audácia dos envolvidos.
O mais impressionante é que praticamente toda a cidade havia recebido o jornal.
Na rádio já se ouvia falar no citado jornal.
Parecia o assunto do momento.
De tão comentado, nos dias seguintes, um dos principais jornais de São Paulo, comentou sobre o aparecimento de jornais apócrifos. Mas a matéria em si, não esclarecia a finalidade do jornal. Pelo contrário, só ajudava os interesses dos empresários.
Clarissa ao ler a matéria, ficou profundamente irritada, com o rumo que os acontecimentos vinham tomando. Não podia acreditar que todo o trabalho que tiveram, não adiantara de nada.
Aborrecida, na reunião que se deu após os fatos supra narrados, a moça fez questão de comentar que o efeito fora reverso.
Mas Bruno, ao contrário de Clarissa, estava satisfeito com a reação causada pela divulgação do jornal. Afinal, a cidade estava em polvorosa. Em muitas conversas não se falava em outra coisa. E também, não seria na primeira aparição, que o jornal atingiria sua finalidade.
Além disso, o próprio Bruno comentou, que conversando com algumas pessoas, as mesmas demonstraram legítimo interesse em também participar das reuniões.
Clarissa, no entanto, pediu a Bruno que averigüasse quem eram tais pessoas, pois, dada a repercussão do jornal, poderiam ser pessoas ligadas aos interesses dos empresários.
Para ela, todo o cuidado era pouco.
Foi então que Bruno comentou:
-- Mas como poderiam ser pessoas infiltradas, se pareciam tão humildes?
-- Simples. Pois saiba que é muito mais fácil uma pessoa instruída se passar por uma pessoa simples, do que o contrário. Quem garante o empresariado não está tomando medidas para tentar nos apanhar?
-- Você tem razão, Clarissa. Muito embora em meio ao meu entusiasmo eu não tivesse pensado nisso, você está certa. Temos que tomar cuidado. Não podemos nos descuidar. Além disso, dentro da fábrica, quem tiver interesse em aderir ao nosso movimento sabe muito bem como fazer para chegar até a gente.
Nesse momento Clarissa comentou que precisavam sumir por alguns tempos. Isto é, deveriam mudar o local onde se reuniam, para que não fosse descobertos. Até por que, se seus colegas soubessem onde eram realizados os encontros, facilmente poderiam delatá-los.
Daí, para serem pegos seria só um passo.
Por isso, precisavam agir.
Bruno então, com a ajuda de todos militantes, começou a arrumar os objetos que estavam no velho galpão.
Em seguida, para que não levantassem suspeitas da vizinhança, combinaram de retirar os objetos de dentro do galpão, logo que a noite caísse.
E assim o fizeram.
Depois de algumas horas, lá foram eles rua afora, carregando o maquinário necessário para a confecção do jornal e levando-o para outro lugar.
Nesse trabalho de formigas, passaram toda a noite.
Mas enfim, conseguiram transportar tudo o que precisavam para um lugar mais seguro.
O sol já estava surgindo no horizonte, quando finalmente terminaram a mudança.
Enfim, já podiam descansar um pouco.
Contudo, ainda não estavam totalmente seguros.
Isso por que, apesar de estarem temporariamente longe das vistas de qualquer interessado em denunciá-los, precisavam tomar cuidado.
Tudo por que apesar de o novo local de reuniões distar um pouco do antigo galpão, a polícia, no encalço dos responsáveis pela publicação do jornal, poderia facilmente chegar até eles.
Assim, como medida de segurança, decidiram então, temporariamente, deixar de lado os encontros e as reuniões. Isso por que, precisavam despistar os empresários e assim os desarticular.
Ou agiam assim, o iriam destruir o movimento que mal haviam começado. E assim, durante algum tempo, cessaram-se as reuniões.
Dito e feito.
Em menos de três dias após terem empreendido a mudança, policiais invadiram o velho galpão, na vã esperança de encontrarem as principais lideranças do novo movimento operário que se iniciava.
Mas como se pode perceber, não lograram êxito.
Desta vez, os militantes do movimento agiram depressa. Mas nem sempre seria assim.
Todavia isso é assunto para mais adiante.
Com isso, cabe ressaltar, que para os tios de Clarissa, saberem que a moça estava calma nos últimos dias, foi um conforto.
Apesar de a moça não ter dormido em casa certa vez, e sua tia Raquel ter percebido a que horas ela havia voltado.
A sua preocupação maior era de que a sobrinha poderia estar se envolvendo com algum movimento clandestino. Daí a razão de seus desentendimentos com Clarissa.
Mas para ela, Bartolomeu e Ludovico, verem Clarissa seguidas vezes em casa, tranqüila, somente tendo por distração a leitura de alguns livros e revistas, foi um conforto. Um verdadeiro alívio.
Dessa forma, o afastamento temporário de sua luta, foi benéfico para ela e seu relacionamento com os tios. Afinal, ficando sossegada em casa, não haveria motivos para eles desconfiarem que ela estava fazendo algo errado, e assim sossegaram.
Com isso, Clarissa ganhou mais tempo, até que eles finalmente descobrissem a verdade.
Muito embora, apesar de suas estratégias, os três já estivessem desconfiados, não tinham certeza ainda do que Clarissa fazia. Mas já temiam que pudesse ser algo relacionado com a luta operária, ou com algum movimento clandestino.
Diante disso, por mais que vigiassem Clarissa, não tinham como impedir que a mesma participasse de reuniões. Como todos ali trabalhavam muito, não tinham como tomar conta o tempo todo dela.
Assim, a moça tinha extrema liberdade para ir e voltar quando quisesse. E muito embora brigassem muito com ela quando chegava tarde, não tinham como impedir de fato, de que ela fizesse o que bem entendesse.
Por isso vê-la em casa, quietinha, sem causar preocupação a eles por seus sumiços misteriosos, era um motivo de alegria.
De tão contentes, chegaram até dizer:
-- Que bom que você se acalmou, minha querida sobrinha. – comentou Ludovico, dando um abraço em Clarissa.
-- É, parece que as coisas vão se acalmar. Pelo menos por algum tempo. – reforçou seu irmão, Bartolomeu.
Raquel, vendo os três juntos, simplesmente sorriu.
Ludovico então, disse:
-- Só de ver que você não está atrás das idéias de seu tio doidivanas, já é um alívio para nós. Não sabe como ficavamos preocupados quando ele cismava em colocar caraminholas em sua cabeça.
-- Sim, Ataúfo não é má pessoa, mas é muito desmiolado. Não tem siso. – reiterou Bartolomeu. – Estavamos felizes por você não estar envolvida em nenhuma confusão. Não sabe como nos deixava preocupada com seus sumiços repentinos.
-- Mas eu não estava fazendo nada de mais. – respondeu ela.
-- Agora nós sabemos. – respondeu Ludovico.

No dia seguinte, como era dia de trabalho, todos levantaram-se cedo, e preparando-se para mais um dia de labuta, vestiram-se, tomaram café da manhã e foram trabalhar.
Clarissa foi para a tecelagem e seus tios foram para a fábrica.
Já Raquel, por trabalhar em casa, resolveu ainda cedo, começar a passar algumas roupas de seus clientes.
Durante a tarde, caminhando e andando de bonde, passou na casa de todas as suas freguesas para lhes entregar as roupas lavadas, passadas e engomadas e receber o pagamento pelo seu trabalho.
Enquanto isso, seus irmãos trabalhavam na linha de produção de uma fábrica e Clarissa ajudava a preparar os tecidos, que futuramente seriam vendidos em lojas e transformados em roupas.
Ao final do dia, como era de se esperar, todos voltaram para casa, jantaram e conversaram sobre como tinha sido o dia de trabalho.
Como tinham que se levantar muito cedo no dia seguinte, trataram de ir dormir.
Assim, tudo transcorria na maior das calmarias.

Contudo a tranqüilidade não duraria por muito tempo.
Com a convocação dos brasileiros em 1942 para lutarem na Europa, muitas cientes da partida dos filhos, choraram por sua ida a guerra.
Muitas inclusive, choraram por muito mais do que partidas dos filhos, valentes soldados que lutaram na guerra. Choraram pela despedida inexorável dos mesmos, filhos da terra.
No entanto, cabe a nós primeiramente, falar da convocação dos pracinhas brasileiros.
A notícia da convocação, caiu como uma bomba na família de Clarissa.
Ao saber que havia sido convocado, Ludovico ficou muito orgulhoso de saber que desempenharia uma função nobre em defender a pátria.
Raquel contudo, ficou bastante desalentada com a notícia. Temendo que o irmão morresse na guerra, chegou a pensar em ajudá-lo a se liberar desse encargo. Mas como?
Bartolomeu, observando a apreensão da irmã, quanto ao fato de Ludovico lutar, comentou que quanto a isso, nada podiam fazer. Se se opusessem estariam incorrendo em crime, ainda mais em tempos de ditadura.
Clarissa, percebendo que os ânimos estavam exaltados, comentou que infelizmente, não podiam fazer nada com relação a convocação. A moça, percebendo a gravidade da situação, comentou que se eles de qualquer tentassem se insurgir contra a medida, fatalmente acabariam presos, em virtude do cometimento de crime político.
Mas Raquel, mesmo ouvindo isso, não se conformava. Decepcionada, chegou até a comentar:
-- Esse Getúlio Vargas não faz nada para a gente e nós ainda temos que aceitar suas imposições!
Clarissa ao ouvir a indignação da tia, ficou muito orgulhosa de sua coragem.
Isso por que, diante da situação inesperada, nem por um momento a mulher se preocupou em saber se poderia haver alguém que estivesse ouvindo aquela conversa.
Pelo contrário. Enervada com a incoerência da situação, chegou até comentar que Getúlio Vargas um dia fazia uma coisa, no outro, mudava completamente de idéia e tomava uma atitude diametralmente oposta a que vinha tomando. Não dava para entender.
Bartolomeu comentou então que o que levava o presidente a agir dessa maneira era o fato de que este era o jogo político.
Clarissa discordando do tio, comentou que a política que o presidente fazia, não tinha nenhuma relação com uma política verdadeira. Suas práticas populistas e oportunistas nada mais eram do que uma forma de se manter no poder.
Nisso Raquel, que já estava se acalmando, resolveu mudar de assunto.
Mas, triste do jeito que estava, nenhum assunto a faria esquecer de mais um dos inúmeros inconvenientes que a guerra trazia.
Não bastasse a carestia, a ausência de produtos de primeira necessidade, agora também estavam tirando os jovens de sua terra para obrigá-los a lutar em terras distantes. O que mais lhes seria tirado?
Nos dias que se seguiram, foi uma tristeza só.
Enquanto alguns jovens solteiros procuravam se casar para se desobrigarem do compromisso de lutarem na guerra, outros aceitavam corajosamente os desígnios do presidente.
Corajosos e determinados, assim que receberam a convocação, trataram logo de se apresentarem nos quartéis.
Algumas moças, imbuídas do espírito de solidariedade, também se ofereceram para trabalharem como enfermeiras. Dispostas a auxiliarem os soldados brasileiros, muitas moças se habilitaram a tal encargo.
Assim, o que viu a seguir, foram inúmeras, incontáveis cenas de despedidas.
Raquel, Bartolomeu e Clarissa, despedindo-se de Ludovico, diante do inevitável, desejaram-lhe sorte.
Dali, Ludovico seguiria até o porto, de onde partiriam todos os soldados da adorada São Paulo.
Balançando um lenço Raquel se despediu chorando do irmão. Inconsolável com a partida de Ludovico, a mulher só fazia se lamentar.
Bartolomeu e Clarissa, que também se emocionara na despedida, já não sabiam mais o que fazer.
No entanto, com o passar dos dias, percebendo ela que de nada adiantava o seu inconformismo, resolveu retomar sua vida, e voltando ao trabalho, procurou se esquecer da ausência do irmão.
Mergulhada no trabalho, por alguns instantes se esqueceu que Ludovico partira.
Clarissa por sua vez, tendo o trabalho por ocupação, passou a se distrair cada vez mais com a rádio-novela ‘Encontro com o Desconhecido’.

Sua heroína Eleonora era surpreendente. Cada vez mais ousada, não temia em se arriscar.
Tanto que durante algum tempo manteve relacionamento com dois cavalheiros.
Cuidadosa, cuidou de cada detalhe para que um não soubesse de seu envolvimento com outro.
Cautelosa, contando com a ajuda da organização da qual fazia parte, Eleonora diversas vezes, saiu com um ou outro cavalheiro. Sequiosa de descobrir novos e relevantes detalhes sobre a guerra e as estratégias dos alemães, a moça era toda ouvidos quando a conversa tomava esse rumo.
Isso por que, sabendo ser envolvente, conseguiu diversas vezes, fazê-los falar sobre suas ligações com o führer.
Assim, toda vez que Eleonora descobria mais algum detalhe sobre essas ligações, mais ela ficava impressionada com o poder que Hittler tinha sobre as pessoas.
Impressionada com o poder de influência que ele tinha sobre as massas, a moça ao conversar com um dos integrantes da organização a qual pertencia, comentou que nada o impediria de dizimar os judeus.
O homem ao ouvir as palavras desalentadoras de Eleonora comentou que mesmo diante do inevitável, eles deviam fazer alguma coisa. Se não fosse para impedir Hitler de executar seus planos diabólicos, ao menos para fazer com que os efeitos minorassem. Isso por que, se conseguissem salvar mais pessoas, já estariam desempenhando um grande papel. Eleonora, ao ouvir as palavras confortadoras do colega espião, concordou.
Sim, se eles podiam ajudar, tinham a obrigação de fazê-lo.
Com isso, muito embora fosse difícil acreditar que poderiam ajudar mais alguém, Eleonora revelou tudo o que descobriu para o homem.
Este, de posse das informações, insistiu para que ela mantivesse contato.
Eleonora prometeu que assim que soubesse de mais novidades, entraria em contato com eles.
A seguir, sorrateiramente, a moça saiu do lugar, e caminhando discretamente pelas ruas da Riviera, voltou para o hotel.
Antes porém, passeou pelos arredores. Caminhou pela beira da praia. Admirando a luz da lua, perguntou a si mesma se estava valendo a pena seu esforço.
Durante o trajeto pela praia, encontrou alguns homens que preparando-se para sair no dia seguinte, ajeitavam alguns barcos.
Eleonora, depois de algum tempo caminhando, finalmente voltou ao hotel.
Cansada, assim que adentrou o quarto, tirou o lindo tailleur que usava.
Em seguida colocou um camisola de cetim, e exausta, atirou-se na cama.
De tão cansada, dormiu boa parte da manhã.
Não fosse a telefonista ligar para o quarto avisando que Handolph aguardava-a na recepção, a moça teria dormido por mais algum tempo.
Nisso ao atender o telefonema, Eleonora levantou-se num sobressalto. Isso por que, esquecida do compromisso, não se lembrou de levantar mais cedo.
Surpreendida com o aparecimento do rapaz no hotel, Eleonora pediu para que ele aguardasse na recepção do hotel que no máximo em meia hora, ela estaria descendo.
Apressada Eleonora resolveu antes de vestir uma roupa, tomar um banho.
Depois, sem saber direito o que vestir, decidiu usar um vestido. Sim. Em razão de estar atrasada, não haveria tempo para escolher bem os acessórios que iria usar. Assim, usando um vestido, teria menos trabalho para se compor.
Cuidadosa, mesmo atrasada, a moça arrumou o cabelo. Porém, fazendo um penteado diferente do usual, resolveu deixar os cabelos totalmente soltos. Utilizando-se de uma escova e do laquê, modelou os cabelos de modo que eles ficassem volumosos e assemelhados aos penteados das famosas divas do cinema.
Handolph ao vê-la tão bem composta, elogiou-a.
Eleonora, gentil, perguntou-lhe se havia demorado muito.
O rapaz respondeu:
-- Não. Mas também se fosse preciso, eu esperaria muito mais.
Eleonora, percebendo o ar galante, sorriu para ele.
Em seguida, chamando para dar um passeio, Handolph ofereceu seu braço.
Eleonora então, percebendo o gesto de delicadeza, aceitou o oferecimento e saindo juntos, a moça teve seu braço envolvido pelo dele.
Passeando pelo boulevard, os dois tomaram café juntos e compraram alguns jornais.
Muito embora Handolph estivesse interessado nela, a moça já não era mais tão atenciosa quanto antes.
O rapaz, percebendo que ela estava um pouco arredia, perguntou diversas vezes por que ela estava tão estranha.
Eleonora, estranhando a pergunta, respondeu que não estava estranha, apenas estava preocupada com o fato de suas férias estarem terminando, e ela ter de voltar para sua terra de origem.
Handolph então, tomado de uma profunda curiosidade, perguntou mais uma vez de onde ela havia vindo.
Eleonora respondeu que havia vindo de muito longe. Tão longe que os ventos a haviam levado para lá.
O rapaz não compreendeu o enigma.
A moça, com olhar enigmático, também não se preocupou em esclarecer o por quê daquelas palavras. Pressentindo que sua missão estava chegando ao fim, resolveu armar uma situação convincente para justificar sua partida.
Sim por que, como estava se expondo em demasia, a moça corria o risco de certamente vir a ser descoberta.
Ademais, como espiã, mais cedo ou mais voltaria a circular nos meios sociais mais elevados, e com isso poderia ser desmascarada se um daqueles homens a vissem em companhia de outras pessoas.
Diante disso, Eleonora não podia se arriscar.
Handolph, percebendo que poderia perder para sempre a oportunidade de fazer uma grande conquista, fez de tudo para convencê-la a ficar a sós com ele em seu quarto de hotel.
Eleonora porém, sempre se recusava.
Contudo, Handolph estava cada vez mais impaciente com suas desculpas.
Ao relatar os últimos acontecimentos, Eleonora comentou que embora estivesse conseguindo contornar a situação com Herman – em razão deste ser mais discreto –, com Handolph, o mesmo não se podia dizer. Isso por que afoito, o rapaz começou a mostrar um lado que não esperava conhecer.
Ansioso por fazer uma nova conquista, o rapaz fazia de tudo para convencê-la a ficar a sós com ele.
Apreensiva, a moça revelou a um colega, que não conseguiria contornar a situação por muito tempo.
Percebendo a inquietação da moça, o integrante da organização, recomendou-lhe que se mantivesse calma. O homem então, esclarecendo que ficariam a postos, garantiu a ela, que ninguém a obrigaria a fazer nada que não quisesse.
Eleonora então, um pouco mais tranqüila agradeceu o empenho e mais uma vez contou quais eram os novos planos tanto de Herman, quanto de Handolph.
Após, a moça retornou ao hotel.
Handolph, ao se aproximar, percebeu algo estranho. Ao ver um homem de uniforme parado, nas proximidades do hotel, o rapaz notou uma atitude suspeita no mesmo. Contudo, como estava mais interessado em conversar com Eleonora do que falar em pequenos incidentes, acabou se esquecendo do ocorrido.
Convidando a moça para almoçar, para seu desapontamento ouviu como resposta que ela já tinha um compromisso. Curioso, quis logo saber com quem.
Eleonora, sentindo-se pressionada, respondeu que era com alguém que ele não conhecia.
Handolph então, insistiu para que ela desmarcasse o encontro, mas Eleonora, dizendo que não poderia fazê-lo, prometeu se encontrar com ele mais tarde.
Passada uma hora, eis que surge Eleonora, em um magnífico maiô. Estava pronta para ir a praia.
Como o hotel não distava muito da praia, Eleonora aproveitou esta comodidade para sair pronta para o banho de mar.
Herman fez o mesmo.
E assim, os dois se encontraram na praia.
Eleonora, cautelosa, pediu para que ele a encontrasse por lá. Isso por que, ela não podia deixar Handolph desconfiado.
E assim, encontrando-se na praia, Eleonora e Herman aproveitaram para se divertir no banho de mar. Entretidos com a brincadeira, não se preocuparam em nenhum momento disfarçar o quão estavam satisfeitos com a bela manhã de sol que fazia naquele lugar.
Animados, assim que saíram da praia, os dois caminharam juntos pela areia.
Depois, Eleonora, aproveitando para descansar um pouco, se recostou em uma das inúmeras cadeiras de praia alugadas e admirando a beleza do lugar, deixou o corpo ao sol.
Herman, encantado com a beleza da imagem, lamentou que não pudesse eternizar aquela cena. Comentando com Eleonora, que adoraria fotografá-la, pediu para que ela o acompanhasse em um passeio pelo boulevard.
Eleonora, ao se lembrar que havia prometido sair com Handolph se viu inclinada a declinar do convite.
Herman, ao ouvir a recusa, tentou debalde convencê-la a desmarcar o compromisso.
A moça respondendo que adoraria fazê-lo, comentou que não podia. Como já havia empenhado sua palavra, não havia como voltar atrás. Precisava ir.
E assim, Herman, mesmo relutante, acabou deixando-a voltar ao hotel.
Em seguida, ele também foi embora.
Enquanto isso, os membros da organização, utilizando-se das informações fornecidas por Eleonora, passaram a elaborar um plano para desmantelar o grupo organizado por Herman, Handolph e outros empresários que auxiliavam no esforço de guerra.
Dispostos a impedi-los a continuarem com seus planos nefastos, a dita organização, por meio de seus membros, estavam dispostos a acabar com a euforia daqueles homens. Isso por que, se conseguissem destruir seus planos, estariam dando um grande passo. Estariam ajudando a pôr fim naquela guerra.
E assim, imbuídos nesse espírito, os integrantes da organização, assim que elaboraram um plano, passaram a colocá-lo em prática.
Descobrindo a forma como conseguiam adquirir matéria-prima, os espiões trataram logo de criar empecilhos para que estas negociações ocorressem. Alguns homens, fazendo-se passar pelos empresários, passaram informações falsas a respeito do local do encontro.
Assim, quando Herman e Handolph, cada qual em uma oportunidade, foi negociar com os estrangeiros sobre a compra de matérias-primas, enquanto os empresários iam em uma direção, os estrangeiros iam para o local oposto.
Com isso, a negociação não pôde ser realizada.
Os empresários, ao perceberem que os estrangeiros não apareceriam, ficaram bastante irritados.
Os estrangeiros, ao chegarem no local do encontro e não encontrarem ninguém, também ficaram absolutamente surpresos. Aborrecidos com a falta de atenção e cuidado na hora de marcar o local do encontro, nunca mais mantiveram contato com os empresários.
Handolph, ao tentar ligar para o exportador, não conseguiu mais manter contato.
Herman também tentou entrar em contato também e igualmente não obteve êxito.
Os dois ao tomarem conhecimento do que tinha sucedido a ambos, ficaram bastante desconfiados. Estranhando a coincidência, ficaram a pensar.
Porém não o suficiente para começarem a desconfiar de Eleonora.
Muito pelo contrário. Acreditando que a moça era inofensiva, continuaram mantendo encontros com ela.
Mas cautelosos, passaram a evitar falar de trabalho.
Eleonora ficou desapontada. Isso por que seu interesse em ambos se devia unicamente ao fato de que eles eram boas fontes de informação. Tirando esse fato, nada mais interessava a moça. Todavia, não podia deixá-los perceber que ela era uma espiã.
Se por um momento os dois desconfiassem disso, a moça passaria a correr grandes riscos.
Por esta razão, mesmo desapontada com o resultado dos encontros com os dois, a moça continuou demonstrando interesse. Cuidadosa, continuou saindo com Herman e Handolph.
Mais tarde, tornando a comentar sobre o fim das férias, disse que dali a pouco tempo, ela teria que partir.
Handolph, ao saber da intenção da moça partir, resolveu tentar uma última cartada.
Certa vez, depois de convidá-la para um jantar, alegando que estava com muita dor de cabeça e que por isso, não conseguia dirigir pediu a ela para que o levasse até seu hotel. Ao chegar lá, ele pediria para um táxi levá-la de volta ao hotel onde estava hospedada.
Eleonora, bem que tentou não se envolver nessa situação. Gentil, ela se ofereceu para chamar um táxi para ele.
Handolph contudo, insistiu para que ela o levasse em casa. Dizendo que não queria ficar sozinho, pediu reiteradas vezes para que ela o acompanhasse ao menos durante o percurso até o hotel.
Eleonora sem saída, acabou concordando. E assim, mesmo reticente, a moça se encarregou de levá-lo até o hotel.
Ao lá chegar, o rapaz, dizendo que não conseguia ficar em pé sozinho, pediu para um dos funcionários do hotel o levasse até seu quarto.
Eleonora, acreditando que ele realmente estava sentindo uma forte dor de cabeça, esquecendo dos seus temores, ofereceu-se para acompanhá-lo pelo menos até a porta do quarto.
Handolph agradeceu a gentileza.
Eleonora acompanhou-o então.
Ao chegarem em frente ao quarto, Handolph, ainda fingindo estar com muita dor de cabeça, pediu para a moça ir.
Muito embora ele estivesse com muita dor, ela não tinha como fazer nada por ele.
Eleonora ao se dar conta de que realmente não podia fazer nada, concordou com o rapaz.
Handolph, percebendo que seu plano estava indo por água abaixo, dispensou o funcionário. Dizendo que estava bem, pediu para que ele fosse embora. Agradecendo, insistiu em dizer que estava tudo bem.
Contudo, ao tentar entrar no quarto, fingindo ter uma tontura, fez o possível para demonstrar a Eleonora que precisava de ajuda.
A moça percebendo que ele não podia ficar sozinho, resolveu entrar no quarto.
Auxiliando-o a caminhar, levou-o até sua cama. Lá, preocupada em deixá-lo sozinho, tentou telefonar para a portaria do hotel.
Handolph no entanto, não deixou que ela efetuasse a ligação. Dizendo que estava melhor, pediu para que ela ficasse com ele.
Eleonora, percebendo que tudo não passara de uma armação, decidindo sair do quarto foi até a porta.
Handolph, ao perceber que se não fizesse nada ela sairia do quarto, resolveu correr e chegando na porta antes dela, passou a chave e colocando-a dentro da camisa, disse:
-- Se a senhorita deseja sair desse quarto vai ter que pegar a chave comigo.
Eleonora, irritada, respondeu que não estava brincando quando demonstrou que queria sair dali.
Handolph ao ouvir as ameaças da moça, começou a rir.
Eleonora se acalmando, comentou que não podia ficar com ele aquela noite. Dizendo que pessoas a esperavam no hotel, a moça ressaltou que tinha que voltar.
O rapaz não acreditou nem um pouco em sua história. Dizendo que tudo aquilo era muito absurdo para ser verdade, Handolph fez questão de deixar bem claro que não a deixaria sair enquanto ela não fizesse o que ele queria.
Eleonora, sentindo-se acuada, ameaçou fazer um escândalo se ele não a soltasse.
Handolph ao ouvir as palavras da moça, comentou:
-- Ah! É mesmo? Quer dizer então, que a mocinha encantadora, portadora dos mais belos modos da aristocracia, vai fazer um escândalo. Pois bem. Então faça. Só não se esqueça de que se o fizer, não estará apenas arruinando a minha reputação. Não, estará fazendo mais do que isso. Estará também se expondo.
Eleonora, percebendo a delicadeza da situação, tentou mais uma vez se acalmar e dizendo que precisava ir até o toillet, pediu para que o rapaz lhe desse licença.
Handolph consentiu.
Eleonora ao se fechar no banheiro, tentou, mesmo sabendo que estava no décimo andar, fugir dali.
Procurando um local por onde pudesse sair, finalmente a moça encontrou uma saída. Como a janela do banheiro dava acesso a fachada do prédio, Eleonora tentou sair por ela.
Handolph por sua vez, acreditando que a moça não tinha escapatória, comentou que não adiantava ela se trancar no banheiro. Mais cedo ou mais tarde teria que sair dali. E ele estaria pacientemente esperando.
Nisso, enquanto ele discursava para ela, Eleonora saía lentamente do quarto.
Utilizando a janela, a moça passou a caminhar cuidadosamente por fora do prédio. Apoiando-se no frisos e detalhes da fachada, conseguiu encontrar um pequeno espaço para andar. Cautelosa, procurou não olhar para baixo e circulando pelo lado de fora dos quartos, finalmente encontrou uma escada de incêndio. Ao encontrar a saída, mais do que depressa começou a descer seus degraus.
Ansiosa por sair dali, não se preocupou nem um pouco com o fato dele desconfiar do silêncio e partir em seu encalço.
Confiante de que fora do prédio ele não teria coragem de se expôr, quando finalmente conseguiu descer as escadas, mais do que depressa a moça contornou o prédio e entrando pelos fundos, apareceu no saguão e andando depressa, foi até a rua.
Lá, começou novamente a correr.
Quando finalmente encontrou um táxi, entrou nele.
Assustada, pediu para que o motorista a levasse até o hotel onde estava hospedada.

Luciana Celestino dos Santos
É permitida a reprodução, desde que citada a autoria.

BARRACÃO DE ZINCO - CAPÍTULO 3

Assim, após auxiliar Raquel, Clarissa aproveitou então, para ouvir um pouco de rádio. Com isso, depois de ouvir por meia hora, os sucessos da década de 40, um novo capítulo da novela que estava acompanhando, iria começar.
Quando os locutores anunciaram a rádio-novela, ‘Encontro com o Desconhecido’, Clarissa tratou logo, de aumentar um pouco, o volume do rádio.
Como já vinha acompanhando há um tempo, as peripécias da heroína, já estava começando a se interessar pela história.
Essa notícia para seus tios, era muito auspiciosa.
Mas, voltemos a rádio-novela.
Conforme o combinado, Eleonora às oito horas em ponto, já estava no saguão aguardando a chegada de Handolph.
Magnificamente vestida de vermelho, parecia uma verdadeira diva.
Handolph, como não poderia deixar de ser, ficou deveras encantado sua presença.
Ao adentrar o saguão do hotel, Eleonora estava de costas para ele. Mas mesmo de costas, vê-la já era um acontecimento. Por isso, quando a moça se voltou para ele, Handolph ficou sem palavras.
Impecavelmente vestida em um longo vermelho, a moça parecia recém saída de um filme. Uma verdadeira deusa.
Assim, mais do que se poderia esperar, Eleonora estava irresistível.
Embora não tivesse dito nada, pelo seu olhar em direção a moça, percebia-se o seu deslumbramento.
E assim, fascinado com a beleza da jovem misteriosa, Handolph ofereceu seu braço e disse:
-- Vamos?
-- Mas, é claro. – respondeu ela.
Nisso, o rapaz, educadamente conduziu-a até seu carro, uma luxuosa limusine. Primeiro, a moça entrou no automóvel, depois ele. Daí seguiram em direção a um restaurante.
Ao lá chegarem, Handolph deu novas mostras de educação e gentileza. Antes de se sentar, o rapaz auxiliou a moça, puxando a cadeira, para que ela pudesse se sentar. Só depois desse gentil gesto, é que finalmente, se sentou.
Em seguida veio o maitre com o cardápio, perguntar ao cavalheiro, se este desejava escolher uma bebida.
Educadamente, então, Handolph perguntou a Eleonora, se ela tinha alguma preferência. Foi então que ela comentou, que primeiramente, gostaria de tomar um pouco de champagne, depois, quando a comida fosse servida, um bom vinho.
Handolph então, concordou, como Eleonora sugeriu, pediu champagne.
O maitre então, retirou-se, para rapidamente, trazer a bebida.
Nisso, enquanto o maitre não retornava, os dois aproveitaram para escolher o que iriam comer.
Assim, quando o maitre retornou com a bebida, Handolph fez logo o pedido.
Nisso, enquanto o jantar era preparado, os dois aproveitaram para conversar.
Handolph queria saber mais sobre ela. Queria saber de onde vinha, o que estava fazendo na França, por que estava sozinha, se tinha compromisso com alguém, de onde conhecia o dono da festa, etc.
Ao dar-se conta do teor das perguntas, fez o possível para não respondê-las. Lacônica, sempre que lhe eram feitas perguntas pessoais, respondia que sua vida não tinha nada que despertasse o interesse de ninguém. Sua vida era como a de muitas outras pessoas.
Mas Handolph insistiu. Se não havia nada de mais, por que tanto mistério?
Foi então, que Eleonora respondeu:
-- Não é questão de ser um mistério. Mas é que eu acho que está um pouco cedo para eu falar tanto assim de mim. Além do mais, eu já disse, não tenho muito o que dizer sobre minha vida. Já o senhor, deve ter muitas coisas interessantes para contar. Por que não fala um pouco de sua vida? Aposto que ela deve ser bem mais interessante do que a minha.
Pronto, achou o ponto fraco de Handolph.
O rapaz, vaidoso como era, fez logo questão de comentar sobre sua vida. Contudo, evitou falar de assuntos comprometedores.
Apesar de no jantar do anterior não ter tido o menor receio em contar detalhes escabrosos de sua vida, agora o rapaz tinha pudores em comentar sobre seus negócios escusos.
Foi então que Eleonora percebeu que precisaria fazer algo mais para descobrir detalhes sobre seu envolvimento com os nazistas.
Eleonora precisaria passar mais tempo com o rapaz.
Nesse instante então, finalmente o jantar foi servido. Por se tratar de fina iguaria, os dois foram servidos com parcimônia. Isso por que, para se comer lagosta é preciso um certo cuidado.
Dessa forma, enquanto degustavam o fabuloso repasto, conversavam sobre amenidades.
Assim, não foi desta vez que Eleonora conseguiu alcançar êxito em sua missão.
Entrementes, não desistiria. Apesar de infrutífero o primeiro encontro, sabia que poderia arrancar de Handolph, o que precisava. Mas para isso, precisava de tempo.
Com isso, após o término do jantar, mesmo diante da insistência do moço em prolongarem o encontro, Eleonora, fazendo charme, decidiu que seria melhor retornar para o hotel.
Contudo, diante dos apelos de Handolph, concordou em se encontrarem pela manhã no saguão do hotel onde estava hospedada, para poderem tomar o café da manhã juntos.
E assim, depois de se despedir da moça, na entrada do hotel, o rapaz saiu satisfeito conduzindo seu carro.
No caminho de volta para o afamado hotel em que estava hospedado, Handolph, pôde avistar uma pequena confusão. Dois homens brigavam entre si, sabe-se lá por que motivo, mas Handolph, espantado com a confusão, não se preocupou nem por um momento em descer do carro para saber o que era. Pelo contrário, o rapaz continuou dirigindo seu carro e retornou para o hotel.
Ao lá chegar, entregou as chaves do carro a um dos manobristas do hotel e em seguida, foi para seu quarto.
Estava realmente encantado com Eleonora.
A própria, também tinha perfeita consciência de que havia arrebatado todas as atenções do moço.
Contudo, precisava ser mais persuasiva, ou então a missão seria um completo fracasso, e ela, obstinada que era, não podia falhar. Sim, Eleonora não estava de brincadeira, e se precisasse invadir o quarto do rapaz, para descobrir seu segredo, faria essa loucura, sem pestanejar.
No entanto, precisava ser cautelosa e paciente o suficiente, para tentar descobrir as coisas do modo mais cordato.
Com isso, esperaria pelo dia seguinte.

E assim, na hora combinada, usando um belo vestido florido, Eleonora, com dez minutos de atraso, encontrou o rapaz olhando o relógio, ansioso por encontrá-la. Por esta razão, a moça ao vê-lo, perguntou:
-- Me desculpe. Demorei muito?
No que o rapaz respondeu:
-- Não. Mas foi tempo o suficiente para que eu viesse a sentir saudades da senhorita.
Depois de Handolph dizer estas palavras, fez-se um profundo silêncio entre os dois.
Silentes, os dois passaram a se olhar diretamente, como se não houvesse nada que os pudesse atrapalhar.
Mas, após alguns minutos se observando mutuamente, Eleonora então, tomou a palavra:
-- Vamos?
-- Sim, claro. – respondeu ele, concedendo passagem a Eleonora.
E juntos foram até um café. Lá se deliciaram com frutas, sucos e deliciosos croissant’s.
Sim, e estaria tudo perfeito, não fosse o inesperado aparecimento de Herman, o inconveniente admirador de Eleonora.
Foi assim. O rapaz, caminhando por entre ruas e avenidas, acabou se deparando com o Boulevard. Ao lá chegar, encantado com a bela arquitetura e a imponência do lugar, decidiu conhecer o ambiente. Nisso, depois de algum tempo andando, acabou encontrando o casal conversando, em um café – estabelecimento comercial, bastante comum na França.
Ao ver Eleonora ali, mal pôde se conter, posto que estava admirado com a agradável surpresa.
Dessa forma, ao perceber a presença da moça no lugar, começou a acenar para ela chamando-a. Contudo, por estar a moça de costas, quem acabou vendo os sinais de Herman, foi seu amigo Handolph.
Mas este, percebendo que sua presença atrapalharia seus planos com a moça, resolveu ignorá-lo. Afinal, diante das circunstâncias, não haveria mal nenhum em o fazer. Isso por que, precisava conversar a sós com a moça.
Herman, no entanto, percebendo o comportamento negligente do amigo, resolveu então se aproximar do casal.
E assim, caminhando, estando a menos de dois metros dos dois, começou a dizer:
-- Olá. Como vão vocês?
Ao ouvi-lo, Eleonora virou-se para ele e respondeu:
-- Bem obrigada. E o senhor, como vai?
No que ele respondeu:
-- Não tão bem quanto vocês dois com certeza, mas vou indo.
Handolph, irritado com a intromissão, perguntou:
-- Mas, você não está atrasado para algum encontro?
-- Absolutamente. Desde daquele jantar em que estivemos, não tive nenhum encontro. Mas se vocês não se importam, eu vou me sentar na mesa ao lado e pedir um café.
Eleonora então, percebendo que seria extremamente indelicado não convidá-lo para se sentar com eles, fez o convite.
Nisso, Herman, que estava procurando uma forma de novamente conversar com a moça, aceitou prontamente o convite.
Aproveitando que uma das mesas ao lado estavam vazias, pegou uma cadeira e sentou próximo da moça.
Isso só fez aumentar a ira de Handolph.
Mas aí já era tarde. Apesar de sua visível insatisfação com a presença de Herman, o rapaz teve de ser sociável.
E assim, por mais que Herman o irritasse, teve que aceitá-lo em sua presença.
Herman então, aproveitando o inesperado encontro, fez todo o possível para se aproximar de Eleonora. Conversando sobre amenidades, descobriu que a moça adorava o som dos violinos.
Por isso, aproveitando-se de sua inesperada descoberta, logo a convidou para um concerto que haveria numa cidade próxima.
O inesperado convite contudo, surpreendeu até mesmo a solerte agente.
Mas, sem perder a pose, a moça respondeu-lhe que precisava pensar.
Herman no entanto, não se deu por vencido. Ciente de que as coisas poderiam não se encaminhar da maneira como imaginara, resolveu então, que, tentaria um outro recurso.
Assim, vendo que a resposta não seria imediata, combinou com a moça de almoçarem juntos.
Dessa forma, teria a manhã toda para pensar e no começo da tarde, poderia lhe dar uma resposta.
Isso por que, o concerto se realizaria naquela noite.
De formas que, para poderem assistir ao concerto, precisariam chegam em tempo, na cidade.
Com isso, diante de tanto cuidado, a moça decidiu aceitar o convite.
Apesar de inicialmente inconveniente, o encontro com Herman,– seu outro admirador – fez Handolph avançar. Temeroso de perder a atenção da moça, fez o possível para que esta recusasse o convite de seu amigo.
Mas Eleonora não gostava que decidissem por ela, e assim, percebendo que Handolph tentava controlá-la, resolveu aceitar a proposta de Herman.
Handolph contudo, não se deu por vencido.
Ao perceber que perdera momentaneamente para o amigo, resolveu contra-atacar. Para isso, precisava de uma estratégia.
Por isso, ao saber que os dois iriam ao concerto, o rapaz empenhou-se ao máximo, para conseguir entradas para o espetáculo.
Assim, durante boa parte do dia empenhou-se para localizar o local do concerto, bem como os locais onde seriam vendidos os ingressos para o espetáculo.
Nisso, Eleonora, após o conturbado encontro, aproveitou para se encontrar com membros de sua organização. Precisava de uma nova estratégia.
Assim, tomando todo o cuidado para não ser seguida, retornou ao hotel. Ao passar pelo saguão, entrou em seu quarto, mudou sua roupa e sorrateiramente, procurou sair pela saída dos funcionários.
Dessa forma, não havia como ser seguida. Até por que, ninguém imaginaria, que usando aquelas roupas simples, estaria a mulher fascinante a qual tinha dois pretendentes a segui-la.
Justamente por isso, precisava se disfarçar. Não poderia por tudo a perder.
Com isso ao chegar ao lugar do encontro, depois de dizer algumas senhas e de ser mandada para um lugar diferente, Eleonora fora inquirida se estava dando tudo certo.
No que ela respondeu:
-- Bem, até demais.
Nisso, seu interlocutor respondeu:
-- Que bom!
E enquanto a conversa transcorria, lhe foram passados os últimos detalhes da operação.
Isso por que, em virtude dos últimos acontecimentos, o plano inicialmente traçado, mudara um pouco de aspecto. Adquirira novas feições. Assim, o plano precisava de alguns retoques.
E dessa forma, foram acertadas as mudanças de estratégia.
Ao sair do local, mais uma vez Eleonora, retornou ao hotel, e vestiu agora, um vestido azul, próprio para passeios vespertinos.
Já era quase meio-dia.
Dessa forma, precisava descer.
Assim, enquanto descia as escadas, Herman ansioso já a aguardava, esperando-a ao pé da escada.
Por isso, pôde ver quando a moça apareceu, descendo as escadas.
Foi uma magnífica visão.
Enquanto a moça descia degrau por degrau da escadaria, Herman aproveitava para olhá-la e admirá-la. Grandioso espetáculo.
Dessa forma, quando a moça finalmente terminou de descer a escadaria, Herman gentilmente estendeu sua mão para ela.
E assim de mãos dadas, saíram juntos.
Mas, antes de chegarem até o restaurante, aproveitaram para caminhar um pouco. Após, foi que então, entraram em um bistrô e almoçaram.
Em razão do horário, como bebida, pediram um suco de frutas e se deliciaram com entradas leves e saladas. Como prato principal, uma comida leve e saborosa.
Com isso, enquanto se alimentavam, aproveitaram para continuarem a conversa que tiveram pela manhã. E a certa altura, intimada pelo rapaz, Eleonora teve de dar sua resposta.
Afinal, iria ou não com ele, assistir um concerto numa cidade próxima?
Fazendo um pouco de suspense, Eleonora respondeu:
-- Está bem. Diante de tão delicado convite, eu aceito.
Ao ouvir estas palavras, Herman ficou deverasmente feliz.
Nervoso, esperou ansiosamente durante toda manhã a resposta de Eleonora.
Por não saber se a moça aceitaria o convite, ficou um tanto quanto angustiado com a situação. Como a espera fora demorada!
Mas ao que parece, valera a pena esperar.
Agora, diante da aceitação do convite, só faltava combinar a hora em que ele a iria buscar e partir em direção a aludida cidade.
Dessa forma, como ainda tinham tempo de sobra, após o término do almoço, o rapaz, encantado com a companhia, resolveu convidar a moça, para um passeio pela cidade.
Disse:
-- Eu sei que parece bobagem, já que você deve conhecer muito bem a cidade, mas eu gostaria de fazer um passeio com você, se a senhorita me permite.
-- Mas é claro. Com muito prazer. – respondeu.
Nisso novamente, os dois saíram de braços dados.
Caminhando pelas ruas da cidade praiana, Eleonora admirou vitrines, visitou alguns lugares e comentou que adorava passar férias na cidade.
Ao comentar que estava de férias na cidade, Herman então quis saber de onde ela veio.
Eleonora então, resolveu desconversar.
Mas o rapaz era persistente e repetiu a pergunta. Queria por queria saber de onde ela veio. Afinal de contas, não era comum àquela época, uma moça andar sozinha, por qualquer canto, ainda mais quando em viagem.
Curioso, desejava saber o paradeiro dela.
Eleonora disse então, que não iria lhe contar enquanto não estivessem seriamente envolvidos.
Afinal de contas, como ela poderia falar o que quer fosse sobre sua morada se nem o conhecia direito? Alegando que aquele não era ainda, o momento oportuno para falar do assunto, comentou que mais tarde diria.
E assim, o rapaz teve que se conformar.
Eleonora só diria algo a respeito, na hora que julgasse conveniente. E não adiantava insistir.
Com isso, à certa altura, depois de algum tempo caminhando, o casal se deparou com uma luxuosa vitrine. Era uma joalheria. Dentro, os mais magníficos exemplares de pedras preciosas.
Herman, na intenção de agradar Eleonora, resolveu então presenteá-la com uma das belas peças do mostruário.
Contudo, para que a moça não percebesse, comentou com ela que precisava comprar um presente para sua irmã, que por coincidência, tinha quase a mesma idade dela. Além disso, sua irmã, por ter um gosto refinado, não aceitaria qualquer coisa.
Por isso, sabendo do bom gosto de Eleonora, resolveu segredar-lhe a história, e lhe pedir ajuda para comprar um lindo presente para a irmã.
Eleonora então, prontamente, atendeu ao pedido de Herman.
Mas cautelosa primeiramente, perguntou ao rapaz, quais eram as pedras preferidas da irmã. Herman então, desconcertado, disse que não sabia ao certo.
Eleonora então, comentou:
-- Como sempre, a falta de atenção masculina, não é uma exceção em nenhuma família, nem em qualquer lugar do mundo.
-- O que eu posso fazer? Nunca me preocupei com isso. – respondeu ele.
-- Acaso, nunca deu jóias as suas namoradas? – perguntou ela, impressionada.
-- Já. Mas sempre com a ajuda de uma outra mulher, para me ajudar na escolha. Sinto dizer, mas eu nunca fui bom em escolher presentes.
-- Está certo, então. Mas ao menos sabe dizer, qual é o tipo físico de sua irmã?
-- Sim, claro. Ela é alta e magra.
De posse dessas informações, Eleonora então ajudou-o. Muito embora não soubesse que escolhia um presente para si mesma, resolveu ter o máximo de cuidado ao escolher a peça.
Perguntando ao rapaz se ele pretendia comprar um anel, um brinco, um colar ou uma pulseira, ouviu como resposta que ela não precisava se preocupar com o valor da peça.
Dessa forma, ao ver um belo colar de pérolas e brincos no mesmo estilo, perguntou a ele se havia gostado da peça.
No que ele então assentiu com a cabeça concordando. Por fim disse:
-- Sim, é uma linda peça. E vou levar. Qual é o preço?
E comprou a peça.
No entanto, procurando disfarçar, disse que precisava combinar como seria feita a entrega. Assim, discretamente, para que Eleonora não percebesse, pediu para guardarem a jóia, que ele mais tarde passaria para buscá-la.
Nesse momento, então, Eleonora, percebendo o adiantado da hora, comentou com o rapaz que precisava retornar ao hotel.
Isso por que, teriam que viajar para assistirem o concerto.
No que prontamente o rapaz concordou e rapidamente, a conduziu de volta ao hotel.
Ao vê-la adentrar o hotel, rapidamente pediu a um dos funcionários do mesmo, para que o indicassem onde havia um ponto de táxi na localidade. Como tinha pressa, o próprio funcionário chamou um serviço de táxi e o rapaz então pôde retornar a joalheria e buscar a peça, já comprada.
Nisso, aproveitando o serviço de táxi, resolveu parar em uma floricultura e comprar um lindo arranjo de rosas vermelhas.
Isso porque, precisava criar um grande efeito.
Mandar simplesmente flores e jóias não era o suficiente.
Com isso, assim que desceu do táxi e retornou a sua suíte, resolveu pedir ajuda a um seu funcionário para colocar, delicadamente em meio as flores, a caixa contendo as jóias. Mas ainda faltava o cartão, como foi bem lembrado pelo funcionário.
E assim, o rapaz escreveu.
Dessa forma, após uma hora a moça finalmente recebeu o presente.
Um dos funcionários do hotel, batendo em sua porta, lhe trouxe o magnífico presente.
Eleonora, ao ver o buquê, perguntou quem o havia mandado.
O funcionário então pediu para que a moça lesse o cartão.
Assim, depois de pagar a gorjeta, a moça, fechando-se em sua suíte, resolveu ler o bilhete.
No mesmo estava escrito:
“Nessas horas que separam nosso encontro, quero confessar-te que mal posso esperar para que este finalmente aconteça.
Veja só, só faz algumas horas que estou longe de ti e já estou morrendo de saudades.
Não demore.
De seu admirador ostensivo, Herman.
PS: Espero que tenha gostado do presente singelo e misterioso.”

Ao ler o cartão, a moça ficou satisfeita, afinal de contas seu plano estava dando certo. Contudo, o que o rapaz teria querido dizer com presente singelo e misterioso?
Foi então que, ao deparar-se com o imenso arranjo de flores, resolveu olhá-lo com maior cuidado.
Assim, depois de algum minutos observando o buquê, percebeu que algumas folhas haviam caído no chão. Com isso, observando melhor o arranjo, notou que algumas rosas estavam entrelaçadas. Foi assim que percebeu que haviam colocado algo em meio as flores. E ao mexer no arranjo, descobriu uma caixa.
Ao ver a caixa, estranhou. ‘Parece a caixa da jóia que eu escolhi para Herman!’. Exclamou. ‘Não é possível’, comentou. ‘Ele não seria louco de dar um presente caro desses para uma pessoa que ele mal conhece.’
Mas, qual não foi sua surpresa ao dar-se conta de que o presente que havia escolhido, era para ela. Assim pensou. ‘Esse Herman não está de brincadeira’.
Portanto, ao perceber a tática do rapaz, resolveu entrar no jogo. Decidiu então, que usaria as jóias para o concerto.
Contudo, precisa se preparar. Dessa forma, aproveitando a ocasião, tomou um demorado banho tépido na banheira de sua suíte.
Depois, Eleonora vestiu-se com todo o capricho, donaire, garbo e graça.
Usando um longo vermelho, estilo tomara-que-caia acompanhado de luvas da mesma cor, a jovem estava deslumbrante.
Assim, depois de se maquiar, observando a caixa de jóias que recebera pela tarde, Eleonora, pegou-a e abrindo-a, e colocou o colar e os brincos.
Estava impecável. Uma verdadeira princesa.
Tanto que ao vê-la, Herman exclamou:
-- Belíssima!
Após, abrindo gentilmente a porta do carro para a moça, Eleonora entrou no carro. Em seguida, Herman também entrou, sentou-se e enquanto um chofer guiava os dois até a cidade vizinha, o casal aproveitou para curtir a paisagem.
Na chegada, o próprio chofer educadamente abriu a porta para Eleonora que agradeceu e saiu do carro.
Nisso, Herman já a esperava do lado de fora.
O rapaz contente que estava, mal podia acreditar que a moça, que até dois dias atrás lhe era inacessível, era agora a sua companhia.
E mais, para sua surpresa, a moça estava mais linda que nunca.
Tanto que ao adentrarem o salão do teatro, um conhecido de Herman ao vê-lo, tratou logo de cumprimentar a ele e a sua senhora.
-- Senhora? – perguntou Herman espantado.
-- Me desculpe. Cometi uma indiscrição? – perguntou visivelmente constrangido, o conhecido – Mil perdões. É que faz tanto tempo que não o vejo, que imaginei que a moça que o acompanha fosse sua esposa.
Nisso, Herman, respondeu:
-- Tudo bem. Você não tem do que se desculpar. Afinal de contas, quem é que não gostaria de se casar com semelhante jóia?
-- Realmente Herman, a senhorita é deveras encantadora. Parece uma fada. Por sinal, ainda não sei seu nome.
-- Eleonora. – respondeu a moça.
Com isso, o gentil estranho segurou sua mão e beijou-a. Em seguida, percebendo que Herman preferia ficar a sós com Eleonora, aproveitou para se despedir e se retirar.
Desta forma, procurando dissipar qualquer possibilidade de constrangimento, Herman comentou:
-- Um tanto quanto inconveniente esse meu amigo Maurice, não é mesmo?
-- Maurice? Então ele é francês? – perguntou a moça.
-- Sim. E um francês típico. Não o apresentei? Que gafe a minha. Mas é que diante de tanta beleza, acabei me confundindo e desejando que as apresentações depressa se acabassem.
-- Tudo bem. – atalhou ela.
-- Doravante. – emendou o rapaz – Se por acaso viermos a nos encontrar novamente com ele, prometo fazer as apresentações.
Nisso, fez-se a chamada para o início do espetáculo.
Como se tratava de uma apresentação com violinos – instrumento musical preferido de Eleonora, pelo menos no momento –, a moça assistiu atentamente ao espetáculo.
Tocando alguns clássicos, mesmo para quem não era assíduo ouvinte de tal tipo de espetáculo, era divino o som.
Encantado com o som dos instrumentos, Herman chegou até mesmo, a elogiar o gosto musical da moça. Ao final do espetáculo, aplaudiu entusiasticamente a apresentação.
A própria Eleonora admirou-se.
-- Não sabia que você gostava tanto de violinos.
-- Não gosto. Para te ser sincero, eu ganhei esses convites há duas semanas atrás, de um amigo que teve que partir imediatamente para a Alemanha. Tinha negócios com o führer.
-- Ah, é mesmo? Quer dizer então que ele é amigo de Hitler?
-- Sim, mas é preferível chamá-lo de führer.
-- Um homem que tem orgulho de sua patente militar.
-- Não, Eleonora. Não é bem isso. É que como ele tem planos para a Alemanha, e como militar que é, convém que chamemos o grande Adolph Hitler, dessa maneira.
-- Está bem. Eu não quis faltar com o respeito. Muito pelo contrário. Mas fiquei curiosa. Que tipo de negócios ele tem com o ditador. Negócios de guerra? Ele vende armas ou coisa assim?
-- De certa maneira, sim. Como você deve saber, grande parte dos empresários alemães estão colaborando no esforço de guerra. Assim, só resta a nós vendermos tudo o que pudermos, para a glória do Terceiro Reich. Você não entende por que não é alemã.
-- Realmente eu não sou. Mas dedico grande admiração ao führer. Hitler está fazendo um grande trabalho na Alemanha.
-- Também acho. – concordou Herman.
-- Mas voltando ao que estavamos falando. O que te fez me convidar este concerto?
-- Não sei ao certo. Mas quando a vi, logo me lembrei dos convites e achei que seria uma boa oportunidade para te propor um passeio. Não gostou?
-- Absolutamente. Mas é claro que eu gostei. Eu só queria entender o motivo. Além disso, por que as jóias, por que criar tantas estratégias para me envolver, acaso está querendo me seduzir?
-- Mas é claro que sim. Por acaso pensas que sou parvo de perder você de vista mais uma vez? Só se eu for louco, não é mesmo? E eu não sou louco. A menos que gostar de uma pessoa seja considerado loucura.
Nisso Handolph, que já a estava procurando a horas, finalmente a encontrou, observando a imensa escadaria do teatro, enquanto Herman apoiava um dos braços no corrimão da escada.
Nisso, quando Handolph se aproximou, mais do que depressa, Herman percebeu. Por esta razão, tentando evitar que os dois se encontrassem, o rapaz convidou a moça para jantar em um aconchegante restaurante que havia por perto.
Mas Eleonora precavida, resistiu a proposta. Tinha que voltar logo para casa. Isso por que, segundo ela, no dia seguinte, teria alguns assuntos pendentes para resolver. Contudo, Herman insistiu. Mas já era tarde, Handolph já havia se aproximado da moça.
Na aproximação, foi logo perguntando:
-- Como vai?
-- Handolph? O que fazes aqui? – perguntou Eleonora, já consciente de que ele estava ali com uma desculpa para estar sempre por perto.
-- Nada de mais. Na última hora, um amigo meu me convidou para o concerto, e como não tinha nada de importante para fazer, resolvi vir. Este é um bonito lugar.
Nisso aparece Maurice.
-- Onde você estava Handolph? Procurei você por meia hora. – comentou aborrecido.
-- Me desculpe. É que por acaso acabei encontrando uma amiga minha. Deixe que eu os apresente ...
-- Não é necessário. Eu já a conheço. – respondeu Maurice, sucintamente.
-- Sim, é verdade. – comentou Eleonora.
-- A propósito, Eleonora, este é Maurice. – falou Herman, procurando consertar a situação.
-- Então já se conhecem? – perguntou Handolph desconfiado. – Pode-se saber de onde?
-- Mas é claro! Foi aqui mesmo, momentos antes de se iniciar o espetáculo. Você não viu por que estava atarefado demais procurando nossos lugares. – respondeu Maurice.
-- Está certo! – comentou Handolph.
Nisso, ansioso que estava para ficar novamente a sós com a moça, Herman desculpou-se com os amigos, mas disse que infelizmente precisa ir. Eleonora tinha compromissos inadiáveis para o dia seguinte.
Foi então que Handolph, sem nem mesmo pedir permissão ao amigo Maurice, ofereceu-se para lhe dar uma carona. Mas Eleonora, vindo acompanhada de Herman, delicadamente, recusou o convite.
Tal fato o deixou profundamente desapontado.
Maurice contudo, percebendo a saia justa, repreendeu o amigo, por ser tão impertinente. Afinal de contas, se a moça foi até o teatro acompanhada de Herman, não havia por que ela ir de carro com um estranho e um amigo inconveniente.
Handolph então comentou:
-- Mas ele não está querendo nada sério com ela.
-- E você, está? – perguntou Maurice.
-- Que maçada! Mas é claro que estou.
-- Por quanto tempo. Uma semana? Talvez duas?
-- Não me amole. – respondeu mal-humorado.
Nisso os dois rapazes saíram do teatro e voltaram para casa.

Luciana Celestino dos Santos
É permitida a reprodução, desde que citada a autoria.   

BARRACÃO DE ZINCO - CAPÍTULO 2

Mesmo assim, ao contrário do que se poderia imaginar, a moça continuou participando das reuniões.
Como não podia chamar a atenção para o que estava fazendo, aconselhou aos próprios companheiros, realizarem às reuniões em horários apropriados.
Com isso, após dias alguns os mesmos passaram a se reunir até em fins de semana. Tudo com vistas a redigirem os textos para que o jornal fosse finalmente impresso.
Empolgados, conforme iam escrevendo as matérias, aproveitavam para mostrá-las a Bruno, para que esse autorizasse ou não a edição das mesmas.
Esse, impressionado que estava com a dedicação da moça, ao perceber o desempenho de seus sequazes na pesquisa e redação das matérias, sempre sugeria que os mesmos levassem as matérias à apreciação de Clarissa.
A moça ao ler os textos, disse a Bruno que os mesmos estavam bons. Mas ela, interessada que estava na publicação do jornal, sugeriu que também poderia escrever algo.
Bruno no entanto, considerou ainda prematura a participação da jovem na efetiva redação do jornal.
Tal fato, entretanto a frustrou deveras. Escrever sempre fora seu maior sonho. Contudo, ao ver-se diante da possibilidade de realizar seu desiderato, foi inesperadamente tolhida em seu intento. Isso a deixou profundamente desolada. Tanto que, quando voltou para casa, depois da infrutífera reunião, seus tios preocupados, quiseram logo saber o que teria acontecido.
Mas ela, fechada em si, não quis saber de conversa. Decepcionada com os rumos que sua participação estava tomando na organização, Clarissa chegou até mesmo a cogitar a possibilidade de desistir de tudo, já que não estava tendo voz ativa.
Por isso, Bruno, o líder do movimento, certa vez, ao ver a moça tão desolada, resolver tomar uma atitude no sentido de tornar sua participação mais ativa.
Preocupado com a possibilidade da moça abandonar a luta, este resolveu incluí-la em uma futura ação, que ainda estava planejando.
Portanto, logo que cogitou a possibilidade de uma ação efetiva, chamou a moça para uma conversa reservada. Nessa conversa, Bruno então comentou sobre essa sua intenção.
Contudo, como ainda não tinha detalhes da operação, não havia como adiantar nada.
Mas para Clarissa, que ultimamente não estava vendo nenhuma utilidade em sua participação nas reuniões, decidiu então, que aguardaria mais um pouco para tomar uma decisão.
Sim, precisa verificar até que ponto chegariam os acontecimentos, para então se decidir se permaneceria ou não lutando.
Isso por que, quando passou a fazer parte da organização clandestina, o que ela mais queria era participar de ações. Também, se fosse possível, gostaria de expor as outras pessoas, sua maneira de pensar.
Sim, ela queria convencer as pessoas de que a luta por melhores condições de trabalho era justa. Tão justa, que a tão propalada luta não era só dela, desta organização, ou daquele sindicato. A luta era de todos os trabalhadores.
No entanto, para que isso acontecesse, precisava ser conhecida. E que meio melhor de se tornar conhecida do que escrevendo.
Clarissa acreditava nisso.
Idealista, sempre que em conversas, discutiu sobre as desigualdades sociais com seus tios, fez questão de comentar que todos deveriam lutar por seus direitos. Que assim o fizessem, com certeza, a luta seria mais fácil.
Mas, infelizmente para ela, as pessoas estava se acovardando. Temerosas da reação da elite econômica do país, muitos trabalhadores temiam reagir contra essa exploração.
Ouvir isso, para Clarissa era pior do que apanhar de fato.
Por isso quando a moça, via seus tios tão acomodados em seu conformismo, chegava até a sentir um certo desgosto.
Para eles, ter que viver num lugar miserável como aquele, sem conforto e sem privacidade era algo quase que normal. Considerando que conseguiam o necessário para a subsistência e argumentando que não precisavam de muita coisa, diziam que a vida deles era boa na medida do possível.
Mas, para Clarissa, trabalhar para sobreviver não era certo.
Em suas palavras:
-- Sempre me disseram que o trabalho enobrece o homem. Mas o que eu vejo, é um empobrecimento geral do homem com o trabalho. Aqui nesta terra, trabalha-se para sobreviver. Para mim, isto não é vida.
Bartolomeu então comentou:
-- Pois eu gosto muito da minha vida. Não vejo nada de mau em trabalhar. Até gosto.
-- E eu não estou dizendo o contrário. Mas existe uma diferença muito grande entre trabalho e exploração humana. Não somos escravos. Não temos que ficar submetidos à jornadas de trabalho extenuantes. Temos o direito de descansarmos e recebermos uma remuneração justa pelo nosso trabalho. – insistiu a moça.
Mas não adiantava. Como todas as outras conversas, essa também resultou infrutífera. Afinal, assim como ela, seus tios eram muito teimosos para entenderem a importância da luta que estava sendo travada.
Assim, sempre que esse tipo de conversa se iniciava na casa da família, acabava resultando em um grande vazio.
Ademais, como já fora dito várias vezes, Clarissa devia se conter ou logo logo descobririam a razão de seus longos sumiços e o por que de voltar tantas vezes, tão tarde para casa.
Por isso, retomando a estratégia já iniciada, sempre que podia aproveitava para ouvir um pouco de rádio e se distraía com a rádio novela.
Enquanto o locutor anunciava mais um capítulo da rádio-novela ‘Encontro com o Desconhecido’, Clarissa aproveitou para aumentar um pouco o volume do rádio.
Isso por que, queria que seus tios tomassem conhecimento de que ela passara a ter outros interesses.
Nisso, o narrador retomou a história. Enquanto Eleonora aproveitava as férias oferecidas pela organização, banhando-se e aproveitando o sol da Riviera Francesa, a moça foi novamente chamada para desempenhar uma missão.
Ao receber o comunicado de um misterioso funcionário do hotel em que estava hospedada, a moça, ao contrário do que seria de se esperar, ficou exultante.
Sim, finalmente depois de algumas semanas de férias, poderia novamente imiscuir-se em nova trama.
Ao receber o bilhete do funcionário, no saguão do hotel, tratou logo de subir para seu quarto, e leu-o calmamente.
Neste constava que haveria um jantar com alguns altos funcionários que estavam de férias no local.
Como estratégia da organização da qual fazia parte, apropriadamente, recebeu também um convite para fazer parte da celebração.
Mas, desta vez, ao contrário da anterior, deveria juntar-se aos convidados e em meio a brindes e comemorações, e descobrir detalhes sobre os próximos passos que seriam dados em relação a guerra que acontecia.
Quanto a isso, precisava ser discreta. Em relação ao resto, não.
Dessa forma, quando finalmente era chegada a hora do famigerado jantar, grande parte dos convidados já havia chegado ao local.
Eleonora no entanto, a despeito da pontualidade dos europeus, chegou bastante atrasada ao lugar.
Contudo, logo que adentrou o saguão do hotel e se encaminhou para o restaurante, todos pararam para olhá-la, até mesmo as mulheres, que entre conversas e frivolidades, acompanhavam cada passo da misteriosa jovem que adentrava o salão do restaurante.
Usando um exuberante vestido de veludo verde, delicadamente moldado ao seu corpo, a jovem Eleonora estava realmente magnífica. De tão bem vestida, ofuscou até mesmo as convidadas mais belas do banquete.
Esse era o seu intuito.
Calculista, media cada um de seus passos até conseguir alcançar seus objetivos. E nesse caso, o objetivo, era chamar a atenção. Como orientação no bilhete que recebera, horas antes, apenas, ‘seja o foco de todas as atenções’.
E que forma melhor de o ser, do que se preparando com o esmero e alinho? Precisava estar perfeita esta noite, e desta forma, o jantar prometia.
Após sua entrada triunfal no salão onde ficava o restaurante, aproveitou para sentar-se no balcão do bar. Um belo e sofisticado bar, diga-se de passagem. Com bancos forrados de veludo vermelho, boas bebidas, e ao fundo um som de piano. Dessa forma, a moça podia ficar à vista de todos os convidados do jantar.
Os mesmos, ao verem-na tão sozinha, foram solertes em convidá-la para sentar-se junto a eles.
Eles no caso, estavam sentados em uma das mesas centrais do restaurante, possuindo portanto, um ótimo campo de visão.
Estava tudo indo muito bem para ela.
Contudo, não se pode dizer o mesmo, para as mulheres dos convidados. Grande parte delas, enciumadas com a presença de tão inconveniente mulher, tentaram fazer o possível para que seus respectivos maridos fossem embora acompanhando-as. Entrementes, não foi possível.
Alegando que seria uma grande desfeita saírem sem se despedirem e nem ao menos cearem, conseguiram, pelo menos por alguns momentos, frearem os impulsos hostis de suas mulheres.
Com isso se denota que jantar seria demorado.
Por isso, enquanto esperavam pela refeição, os convivas eram constantemente servidos de bebidas e entradas.
E nisso, durante a espera pela refeição principal, os homens aproveitavam para falar de seus principais projetos. Até por que estavam entre seus pares, e assim não haveria o problema de cometerem inconfidências.
Por esta razão, na mesa que Eleonora dividia com outros homens, os mesmos, aproveitando para exibirem seu grande poder para ela, não se cansavam de repetir que era influentes. Além disso, não se furtaram de comentar as peripécias em que se envolveram, só para impressioná-la. Sim, estava sendo muito fácil descobrir detalhes da guerra. Não só os detalhes, como também, alguns dos crimes cometidos.
A certa altura, rodeada de tantas confissões e soberba, a moça levantou-se, e desculpando-se, comentou que precisava ir até o toillet.
Assim encaminhou-se para lá e retornou, após alguns minutos.
Quando voltou a ocupar seu lugar junto a mesa, os mesmos continuaram a adulá-la. Cada qual a sua maneira, mas todos visando ficar a sós com ela, após o jantar.
Nisso, quando ela percebia que a conversa estava recaindo em amenidades, aproveitava a oportunidade para instigá-los:
-- Mas então, rapazes, me contem o que de mais terrível os senhores fizeram durante a guerra, afinal, a conversa estava tão interessante!
E nisso a conversa retomava o rumo originalmente iniciado.
Era um grande pesar ouvir tudo aquilo.
As atrocidades e ignomínias cometidas contra as minorias eram realmente brutais, sem contar a ganância e a volúpia pelo lucro que tomava conta desses homens. Para eles o dinheiro era sinônimo de poder. Para tanto, precisavam do maior número de notas para que assim, se fizessem respeitar.
Mas esse era o trabalho de Eleonora, e a jovem não podia se furtar a isso.
Assim, mesmo diante dos riscos envolvidos, resolvera se tornara espiã. Tinha verdadeiro fascínio pelo mister.
Contudo, precisava ser cautelosa.
Afinal, por implicar em segredos de guerra, não podia deixar que percebessem que se tratava de uma espiã. Assim, quando percebeu que a conversa estava indo longe demais, resolveu interrompê-los perguntando, o seguinte:
-- Então estou diante de bem sucedidos homens de negócio?
No que eles responderam que sim. Tão bem sucedidos que tinham grandes aliados no exército e na polícia secreta alemã.
Aliás, diga-se de passagem, apesar de estarem na França, muitos dos que ali participavam do jantar, eram estrangeiros, grande parte, de origem germânica.
Daí resultando o interesse da organização em ter alguém de confiança, acompanhando os passos dos principais convidados do jantar. E nesse ponto, acertaram em cheio ao escolherem-na para a missão. Elegante, polida, educada e charmosa, não seria difícil convencer a todos que ali estavam, de que se tratava de uma verdadeira dama.
Ousada, mas uma dama.
E assim, dessa maneira, a conversa estava rendendo frutos.
Contudo, chegou a hora do jantar.
Como prato principal, uma suculenta lagosta acompanhada de um bom vinho da terra.
Nesse ponto um dos convidados chegou até a comentar:
-- Realmente, um dos melhores vinhos do mundo.
E assim, brindaram. Em seguida cearam.
Mas antes disso, o conviva, satisfeito com a presença de todos os convidados, ergueu-se de sua cadeira e propôs um brinde.
Feliz, estava brindando ao futuro casamento de sua filha, com uma das grandes fortunas da França. Satisfeito com o enlace, propôs a todos que celebrassem com ele esta alegria.
Assim, todos brindaram novamente.
Depois, conforme já dito, todos cearam.
Mas após a ceia, a despeito do término do jantar, alguns dos convidados tentados com a magnífica pista de dança que se apresentava para eles, no magnífico salão onde ficava o restaurante, aproveitaram para, em companhia das melodiosas músicas tocadas no piano, dançarem.
E assim, dançando, muitos dos convidados permaneceram por horas no restaurante.
Eleonora por exemplo, cercada pelos cavalheiros que lhe fizeram companhia durante o jantar, se viu compelida a dançar com todos eles.
Isso por que, maravilhados com a moça, quiseram testá-la na pista de dança.
Assim, para surpresa dos mesmos, Eleonora deslizou na pista.
E apesar de ter de dançar com muitos dos convidados, não perdeu nem por um instante a classe. Exímia dançarina, encantou a todos que com ela dançaram.
Entre passos marcados e valsas, Eleonora não decepcionou.
Mas, com o passar das horas, Eleonora comentou que precisava partir.
Como teria um compromisso durante a manhã, era imperioso que fosse logo para o hotel onde estava hospedada.
Diante disso, alguns de seus admiradores insistiram para que ela ficasse mais um pouco.
Mas Eleonora, reiterando a necessidade de se retirar, insistiu que precisava ir embora.
Com isso, sem terem como convencê-la a ficar mais um pouco, três dos rapazes que lhe fizeram companhia durante todo o jantar, fizeram questão de acompanha-la até o hotel onde estava hospedada.
Eleonora no entanto, resistiu a proposta. Alegando que não havia necessidade de tamanho cuidado, recusou o quanto pôde, a oferta.
Mas os rapazes eram insistentes.
Assim, diante de tanta insistência dos mesmos, acabou aceitando o convite e voltou para o hotel, na companhia de dois deles.
Isso por que, como todos ofereceram-se para levá-la até o local onde estava hospedada e ela era apenas uma, Eleonora só poderia seguir em um carro. Com isso, depois da disputa para saber quem a levaria de carro, um dos rapazes, muito atrevido, insistiu para fazer-lhe companhia até a ida ao hotel. Tal fato quase causou uma briga, que foi prontamente evitada pelo anfitrião do jantar. Assim, vendo-se numa situação constrangedora, desculparam-se e levaram a moça até o carro.
Lá gentilmente abriram a porta traseira do carro, e a convidaram a entrar.
Após entrar no carro, o rapaz que havia se convidado para a carona, também entrou e, fazendo-lhe companhia, ficou conversando com a moça, durante todo o caminho.
Isso deixou o dono do carro furibundo.
Afinal de contas, se ele convidara a moça para entrar em seu carro, por que um sujeitinho inconveniente tinha que se intrometer na conversa e se oferecer para acompanhá-la? A presença do incômodo rapaz, atrapalhou sobremaneira, sua aproximação com a moça.
Maçada! Como fazer então, para reverter o quadro desfavorável?
Nisso, o rapaz ficou a pensar.
Enquanto isso o penetra, em conversa com Eleonora fez todo o possível para conhecê-la um pouco.
Curioso e interessado na moça, fez-lhe muitas perguntas. Queria saber de onde ela vinha, se tinha conhecidos na cidade, se estava acompanhada por alguém, por que tinha ido sozinha ao jantar, há quanto tempo ela conhecia o anfitrião do jantar, etc.
Estava verdadeiramente, fascinado pela jovem.
Nisso, enquanto Clarissa acompanhava a aventura de Eleonora na França, no rádio tocou a música “Fascinação”.
“... Os sonhos mais lindos, sonhei
De quimeras mil, um castelo ergui
E no teu olhar
Tonto de emoção,
Com sofreguidão, mil venturas previ
O teu corpo é luz, sedução
Poema divino, cheio de esplendor
Teu sorriso prende, inebria, entontece
De tua fascinação ... ”

Sucesso na voz de Carlos Galhardo, esta música era o tema da heroína Eleonora.
E embalada por trechos da música, a história prosseguiu.
Ao chegar no hotel, delicadamente, agradeceu a gentileza dos dois cavalheiros e adentrou o edifício, numa uma magnífica despedida.
Muito embora os dois tivessem insistido para que ela novamente se encontrasse com eles, Eleonora respondeu que seria impossível. Afinal, dentro de poucos dias, teria que resolver uma série de assuntos, e depois, teria que novamente partir.
Ao ouvirem isso, os dois rapazes ficaram desolados.
Mas não desolados o suficiente para desistirem de novamente encontrá-la. Por isso, sabendo onde a moça estava hospedada, cuidaram em fazer plantão em frente ao hotel, aguardando sua saída.
Finalmente, depois de algumas horas, Eleonora saiu do hotel.
Mas precavida, antes mesmo de sair, teve o cuidado de olhar pela janela, para tentar saber se algum conhecido a estava esperando.
Contudo, dada a altura em que estava o quarto onde estava hospedada, não pôde ver com clareza, se via algum conhecido rondando o hotel.
Mas, por via das dúvidas, a moça tratou logo de se vestir e sair para um passeio pela cidade.
Isso por que, dada a boa impressão que causara na noite anterior, se saísse diretamente para seu encontro secreto, fatalmente seria seguida por algum dos rapazes. Por isso, todo o cuidado era pouco.
Assim, para despistar qualquer um que estivesse em seu encalço, passeou por horas pela cidade praiana.
Com isso, à certa altura, foi abordada pelo rapaz que lhe oferecera carona até o hotel. Gentilmente, este se aproximou da moça, enquanto ela admirava uma vitrine, e perguntando-lhe se havia gostado de alguma das peças que estavam sendo expostas, ofereceu-se para comprá-la.
Mas Eleonora não gostou nem um pouco da atitude do rapaz.
Alegando que não havia necessidade de que ele comprasse nada para ela, a mesma disse que tinha pressa, e tinha que voltar para o hotel.
O rapaz então, ao ouvir isso, perguntou:
-- Desculpe-me Eleonora. Acaso eu fiz algo de errado?
-- Absolutamente. Eu simplesmente tenho que voltar. Desculpe. – disse já caminhando em direção ao hotel.
Nisso, o rapaz, então, parado, comentou:
-- A senhorita mentiu para mim. E não só para mim, para o Herman também. Por quê?
Ouvindo isso, Eleonora voltou-se para trás e encarando-o, respondeu:
-- Eu menti? Quando?
-- Ontem, quando disse que tinha muitos compromissos para os próximos dias e que não poderia aceitar nenhum convite para sair.
-- Me desculpe. Mas não é nada disso, apenas não quis criar uma situação embaraçosa para ambos. – respondeu Eleonora, calmamente.
-- Está bem. Me desculpe então a precipitação. Mas agora que estamos sozinhos, poderia me dar uma resposta para aquele convite que te fiz ontem?
Nisso, maliciosamente, Eleonora perguntou:
-- Que convite?
-- Não me torture. A senhorita sabe muito bem do que estou falando.
Sem ter muita alternativa, Eleonora acabou concordando.
Contudo, para evitar qualquer falsa impressão, insistiu em dizer que se tratava apenas de um encontro entre amigos, nada além disso.
No que o rapaz concordou.
Diante disso, Eleonora despediu-se, e continuou caminhando.
Nisso o rapaz gritou:
-- Não se esqueça, jantar às oito horas.
Eleonora continuou caminhando.
Enquanto caminhava, a moça aproveitava para verificar discretamente, se não era seguida.
Isso por que, precisava se encontrar com seu contato, antes de voltar para o hotel.
Mas temerosa de qualquer aproximação inesperada com um de seus recentes admiradores, decidiu então, voltar novamente ao hotel e trocar de roupa.
E assim o fez.
Enquanto procurava uma roupa mais discreta, aproveitou para criar um penteado diferente. Assim, parecendo mais uma professora do que uma mulher fatal, Eleonora, tomando ainda, o cuidado de sair pela porta dos fundos do hotel, e esgueirando-se entre muros e árvores para não ser vista, conseguiu finalmente sair e seguiu até o local em que teria que se encontrar com seu contato.
Enquanto Eleonora era informada dos próximos passos da missão, posto que toda a conversa que tivera no restaurante fora gravada, os admiradores na moça, tentavam de tudo para localizá-la e marcar um encontro com ela.
Mas Handolph, já tendo conseguido marcar um jantar, estava cuidadosamente escolhendo a roupa que usaria durante a noite. Animado com a possibilidade de conversar a sós com a jovem, já pensava numa estratégia para tentar seduzi-la e fazê-la ficar encantada por ele.
Mal sabia ele, onde estava se metendo.
Ou será que era ela que estava se envolvendo em uma trama muito perigosa?
Enfim, ainda era muito cedo para saber.
Nesse instante então, Clarissa que estava acompanhando a rádio-novela, ouviu dos locutores, as seguintes frases:
“E assim termina mais um emocionante capítulo da sua rádio-novela ‘Encontro com o Desconhecido’. E não percam os próximos capítulos das emocionantes aventuras de nossa heroína aventureira.

Assim, desligou o rádio.
Depois, entediada, resolveu sair um pouco de casa.
Mas, ao contrário das outras vezes, sua saída não se deveu a nenhum encontro clandestino com outros operários. Estava sozinha.
Procurando pensar um pouco, resolveu caminhar para poder refletir sobre os últimos acontecimentos de sua vida. Desejosa de mais movimento, achava que sua vida não tinha sentido. Precisava agir.
Por isso, quando Bruno, o líder do movimento do qual era partidária, cogitou a possibilidade de começarem a agir ... tal fato foi como uma fonte luminosa em sua vida.
Contudo, não queria ter muitas esperanças. Afinal, o movimento ainda começava a se formar. Por isso, talvez ainda não fosse a hora de se organizarem ações. Primeiramente precisavam se fortalecer e terem uma sólida organização. Só assim, estariam em condições de enfrentar os empresários, os grandes perpetuadores das injustiças com as quais tinham que conviver.
Enfim, para enfrentá-los, precisavam ter força, ou então, seriam facilmente desarticulados.
Pensando nisso, Clarissa, resolveu então, que deveria ter paciência.
Por isso, quando tiveram então, uma nova reunião Clarissa disse que não deveriam ter pressa. Para organizar uma ação, precisavam estar preparados para possíveis enfrentamentos e tentativas de desarticulação. Não poderiam ser imprudentes, ou seriam facilmente massacrados. Primeiramente, precisavam se fortalecerem.
Bruno, ouvindo então as palavras da moça, concordou totalmente com ela. Por isso, disse a mesma, que os mesmos só agiriam quando estivessem em condições de enfrentar o empresário – dono da fábrica –, em condições de igualdade.
Clarissa então, sabendo da dificuldade da luta, prometeu paciência.
E assim, os operários retomaram seus trabalhos.
Enquanto alguns aproveitaram para corrigir algumas imperfeições dos textos que redigiram, os demais, com seus textos prontos, trataram logo de prepará-los para a impressão.
Estava quase tudo pronto para a impressão do primeiro jornal do movimento.
No entanto, faltava um detalhe importante.
Qual seria o nome do jornal?
Foi então que Bruno deu-se conta de que havia se esquecido de um detalhe fundamental. Por isso, ao deparar-se com esta situação, prometeu pensar e escolher cuidadosamente um nome para o jornal.
E assim, durante semanas, ficou pensando num nome para dar ao jornal.
Entre os nomes que pensou, estavam: ‘A Voz do Operário’; ‘Sem Nome’; ‘Semanário do Povo’; ‘Revolução Fabril’. Mas nenhum desses nomes, lhe parecia bom o suficiente para passar a ser o nome do jornal.
Por isso, ao final de duas semanas, sem saber ao certo, qual seria o nome do jornal, perguntou aos seus companheiros, se os mesmos tinham alguma sugestão.
Para seu desespero, nenhum deles apresentou uma boa idéia.
Clarissa então, percebendo que estavam diante de um impasse, perguntou então a Bruno, em quais nomes ele tinha pensado.
Foi então que o rapaz disse os nomes.
Ao ouvir os nomes, considerou que o primeiro e o último nome, eram muito bons.
Mas para Bruno, seria importante que o jornal tivesse um nome de impacto, que se associasse ao ideal de luta de todos eles.
Clarissa, então, percebendo a insatisfação de Bruno, sugeriu que colocassem: ‘Revolução Fabril: A Voz do Operário’.
Ao ouvirem a sugestão de Clarissa, os demais sequazes discordaram. O nome era muito comprido.
Mas Bruno, encantado com o nome, insistiu:
-- Não. É esse o nome do jornal.
Diante disso, tiveram que concordar.
Isso por que, Bruno estava convencido de que este era o nome perfeito para o jornal.
Assim, após a escolha do nome, passaram a imprimir jornal.
E imprimindo o famigerado jornal, passaram quase toda a madrugada.
Após, como já era chegada a hora de se divulgar os jornais recém impressos, Bruno achou por bem, recrutar Clarissa e mais alguns auxiliares para espalharem os jornais pela cidade.
Clarissa, ao se ver escolhida para executar a tarefa, encheu-se de animação.
Finalmente iria fazer algo de útil para o movimento do qual fazia parte. À exceção do havia feito anteriormente, ao arrecadar dinheiro para a confecção do jornal, o que já foi há algum tempo, já estava começando a sentir falta de movimento.
Sim, por que a moça, desde que passara a participar das reuniões, sentia que as coisas poderiam se dinamizar.
Enfim, parecia que as coisas estavam mudando.
Assim, quando recebeu a ordem de sair madrugada afora entregando os jornais, aceitou prontamente a incumbência. Contudo, sugeriu a Bruno, que este organizasse pequenos grupos, para que assim, o serviço terminasse mais depressa. No entanto, precisavam agir discretamente, na sorrelfa, ou então, facilmente seriam pegos.
Dessa forma, atarefados que estavam, logo que se retiraram do velho galpão, decidindo-se cada qual, para que lado seguiriam, combinaram entre si, onde cada um deles iria sair para entregar o jornal.
E assim, sabedores de onde tinham que ir, trataram de seguirem seus respectivos caminhos.
Clarissa, então, percebendo que já era tarde, resolveu se apressar, ou não conseguiria entregar em tempo, todos os jornais.
Por conta disso, caminhou durante toda a madrugada por São Paulo, entregando os jornais, de casa em casa.
De tão longa sua caminhada, durante o longo trajeto que empreendeu, pôde ver alguns boêmios na rua.
Mas, por ser tratar de uma época antiga, boa parte dos moradores àquela altura, já dormiam a sono solto.
Portanto, à exceção de alguns boêmios, não se via vivalma nas ruas da cidade.
Silenciosa, a cidade parecia dormir, assim como as pessoas que nela moravam.
Tão silenciosa que Clarissa podia até ouvir seus pensamentos.
Sim, por que enquanto caminhava a garota, ensimesmada, pensava na vida e nos últimos acontecimentos que sucederam.
Surpresa ainda com os rumos que sua vida havia tomado, a moça se perguntava agora, como tudo havia se demudado tão rapidamente.
Isso por que, apesar da condição de vida de seus tios, mesmo em criança, exceto para ajudar em casa, nunca foi compelida a trabalhar.
Zelosos, criança para eles tinha mais é que estudar e brincar. Por isso, graças a eles, Clarissa conseguiu ao menos, terminar o primeiro grau.
Dessa forma, seu trabalho na fábrica de tecidos, era o seu primeiro trabalho de fato. E a despeito de suas convicções sociais, gostava muito de seu trabalho. O que único problema é que nunca fora de admitir injustiças. Por isso, considerava desumanas, as condições de trabalho a que ela, e muitos outros operários, estavam submetidos.
Mas, tirando isso, Clarissa estava gostando de trabalhar, e o fato de estar ganhando seu próprio dinheiro, era uma grande conquista para ela. Contudo, dadas as condições de vida que tinha, uma boa parcela do que ganhava ía fatalmente para as mãos de sua tia Raquel, já que era ela quem cuidava das compras da casa.
Dessarte, desde pequena, por influência de um tio afastado, foi incutida na idéia de que a sociedade em que viviam era muito injusta com os pobres.
Assim, foi dado o primeiro passo para que Clarissa passasse a se interessar cada vez mais pelo assunto. Acostumada a ouvir esse seu tio comentando sobre o assunto, passou então a se interessar mais e mais pelo tema.
Por conta disso, Raquel, Bartolomeu e Ludovico chegaram a discutir seriamente com Ataúfo – o referido tio. Extremamente politizado, o tio conseguiu convencer a sobrinha, de que algo de muito errado vinha acontecendo, e que isto tinha que mudar.
Além disso, Ataúfo, sempre que aparecia para visitar os irmãos, trazia consigo algum texto recentemente publicado sobre o assunto, para que a sobrinha pudesse ler.
E apesar disso causar alguns problemas para ele, nunca deixou de levar livros, revistas e jornais que tratavam do assunto. Queria que a sobrinha conhecesse melhor o movimento comunista. Ademais, sempre que a garota perguntava algo sobre o assunto, ele sempre respondia.
Ao falar da Revolução Russa de 1917, percebeu que estava conseguindo ganhar mais uma sectária para suas idéias.
Tal fato provocou uma briga na família.
Ludovico e Bartolomeu, percebendo a doutrinação em cima de Clarissa, foram logo tomar satisfações com o irmão. Afinal de contas, os três não estavam cuidando da menina, para que um destrambelhado como ele, viesse encher a cabeça dela com bobagens.
Ataúfo então, percebendo a reprovação dos irmãos, apenas disse:
-- Sinceramente. Eu não entendo vocês. Mesmo sendo os maiores prejudicados neste processo, vocês agem como se nada disso se referisse à suas vidas. A exclusão para vocês é algo que só acontece para os outros. É como se tudo estivesse ótimo para nós.
Foi então que, depois de ouvir essas palavras, Ludovico atalhou:
-- Espere um momento. Nós temos uma vida boa. Conseguimos nos manter com o nosso trabalho e temos uma vida razoavelmente boa. Apesar dos problemas, não temos do que nos queixar.
-- Vocês são uns conformados. Aceitam tudo. Mas isso não pode continuar. As pessoas tem o direito de saber que podem ter uma vida melhor. Afinal de contas nem todo mundo é obrigado a aceitar continuar vivendo na miséria, em condições sub-humanas de existência. É isso que fortalece esse sistema, o conformismo das pessoas em aceitar tudo isso caladas. Por que que tudo tem que ficar nas mãos de uns poucos privilegiados? Eu também tenho direito a um pouco de felicidade. Tenho direito a uma melhor condição de vida.
Nisso, Bartolomeu que até o momento, praticamente só ouvia a discussão, resolveu então tomar parte. Dizendo que aquela idéia de sociedade justa e igualitária que o irmão tinha era uma quimera, comentou com o irmão que tudo do que se faz com base no ideário da justiça, começa com sangue e morte e termina mal.
Mas, Ataúfo, convicto de que o ideal era o justo, retrucou:
-- Ah, é mesmo? Pois então me explique como foi que a Revolução Francesa, na qual houve um grande derramamento de sangue, conseguiu então espalhar pelo mundo os ideais de liberdade, igualdade e fraternidade? Como é que com aquela luta sanguinária, conseguiram derrubar um sistema político despotista e florescer as bases de um sistema político mais justo? Me explique isso. Como pode ser, não é mesmo? Mas infelizmente, em raros momentos na história, é que foi possível se alcançar algum ideal, por meio de luta pacífica.
-- Ora Ataúfo, não me venha com essas tolices. Nós podemos não conhecer a história, mas eu e Ludovico sabemos muito bem, que as mudanças não acontecem da noite para o dia, e muito provavelmente, de todos esses movimentos operários de que ouvimos tanto falar, poucos conseguirão alguma coisa. E mesmo quando conseguirem, se conseguirem, provavelmente os benefícios não se reverterão para os que lutaram. Além disso, vai ser preciso que muito sangue seja derramado, para se alcançar algum resultado. Por isso, se você não dá valor a sua vida, respeite ao menos a vida de sua sobrinha que ainda é uma criança. Está claro? Não a envolva nesse tipo de problema.
Mas mesmo com as discussões, Ataúfo nunca deixou de levar matérias para a sobrinha ler.
Afinal a menina já havia sido mordida pelo bicho do inconformismo e da vontade de mudar.
Assim, mesmo diante da resistência de seus tios mais próximos, a única família que possuía, Clarissa, continuava a ouvir e a acatar às palavras de seu tio afastado. Envolvida pelos ideais que seu tio Ataúfo lhe lançara, sempre que podia, lia algo referente ao movimento comunista.
E assim, muito embora isso contrariasse muito a vontade de seus tios, Ataúfo, quando de passagem pela cidade, sempre aproveitava para passar na casa dos irmãos e contar as novidades.
Das várias vezes que esteve de passagem por São Paulo, muitas delas se deveram ao fato de ter arrumado confusão na cidade em que morava.
Por conta de suas idéias, freqüentemente tinha que se mudar. Isso por que, as autoridades não gostavam de seu discurso político.
Por conta deste discurso, conseguiu amealhar muitos sectários para suas idéias, e assim, mobilizou muita gente. Com esse apoio, conseguiu até fazer algumas greves e paralisar as atividades de algumas fábricas.
Tal fato, no entanto, não foi visto com bons olhos pelo empresariado do lugar. E assim, ameaçado de prisão, e perseguido pela polícia, para não ser preso, fugia dessas cidades.
E assim, dessa maneira, mais uma vez, o motivo para sua vinda se deveu a mais uma de suas confusões.
Ludovico, já cansado das confusões do irmão, chegou até a comentar:
-- Ataúfo. Quando é que você vai tomar jeito?
Mas não adiantava que o aconselhassem, pois o mesmo não dava ouvidos às súplicas de seus irmãos.
Mesmo quando eles o avisavam de que nem sempre ele conseguiria fugir, ainda assim, ele insistia em continuar metido em confusão.
No entanto, o que mais preocupava a Raquel, Ludovico e Bartolomeu, era a sobrinha Clarissa. Isso por que, dada a pouca idade da menina, para eles, ela era um alvo fácil de todas aquelas idéias malucas do tio.
Por isso, sempre que Ataúfo estava visitando a família, os mesmos procuravam alertá-la de que nem tudo o que ele falava acontecia daquela forma.
Por isso, não deveria levar a sério suas idéias.
Mas já era tarde.
Convencida dos bons propósitos da luta, conforme os anos se passavam, mais e mais ela tinha certeza de que estava no caminho certo.
Para desespero de Raquel, Bartolomeu e Ludovico, nada a demovia da idéia de se integrar a um desses movimentos.
Contudo, num primeiro momento, conseguiram refrear os impulsos de Clarissa. Mas até quando?

Nisso, Clarissa envolta em pensamentos, continuou andando. Precisava entregar todos os jornais ainda aquela noite. Por isso, precisa continuar andando.
E assim o fez.
Ao final da madrugada, já havia entregue todos os jornais.
Ao voltar para casa, estava alquebrada.
Por isso, procurando evitar que seus tios acordassem, entrou pé ante pé em casa. Cuidadosamente, adentrou seu quarto, e cansada que estava, jogou-se na cama.
No dia seguinte, logo que acordou, ao se dirigir até a copa, antes mesmo de pegar o bule de café, foi imediatamente, inquirida por sua tia Raquel.
-- Posso saber onde foi que a senhorita esteve?
-- Em lugar nenhum. – respondeu a moça.
-- Não se faça de sonsa. Você sabe muito bem do que eu estou falando.
-- Me desculpe tia. Mas eu realmente não sei do que a senhora está falando. Ontem eu cheguei um pouco tarde sim, mas é por que eu estava fazendo serão na fábrica. Vocês sabem disso.
-- Há, é mesmo?
-- Sim. Por isso que quando eu cheguei, vocês já estavam dormindo.
-- Mas então, você faz serão quase todos os dias?
-- Pois sim. É isso mesmo. E é por isso que muitos operários estão se mobilizando. Não temos que aceitar esse tipo de situação.
Ao ouvir isso, sua tia ficou preocupada. Afinal de contas, por que sua sobrinha estava falando sobre este assunto?
Pensativa, chegou a seguinte conclusão:
-- Por um acaso, a senhorita não andou se metendo com esses malucos?
-- Que malucos?
-- Clarissa. Não me enrole. Você sabe muito bem do que eu estou falando. Me responda, você está envolvida com algum movimento clandestino? Está?
-- Por que a senhora está me perguntando isso? Acaso acha que estou fazendo alguma coisa errada?
-- Clarissa, me responda logo. Olha que eu estou perdendo a paciência.
-- Mas tia, o que eu posso dizer, eu não estou fazendo nada de mais. Eu só cheguei tarde ontem por que, como não tinha condução, eu tive que voltar a pé.
-- E a que horas, a senhorita retornou?
-- Ah, madrinha. Eu cheguei morta de cansaço. Como é que eu vou poder me lembrar? Do jeito que eu cheguei, já me atirei na cama e dormi com a roupa que estava.
-- É. Estou vendo. Deve ter chegado muito tarde mesmo. Nem eu mesma, percebi.
-- Tia, por favor. Acaso eu já dei motivos para você desconfiar de mim?
-- Não, minha querida. É que estamos muito preocupados com você. De uns tempos pra cá, você tem andado muito estranha. Desde que você começou a trabalhar naquela fábrica, que você está diferente. Fica pouco tempo em casa. E mesmo quando está de folga, arruma algum motivo para ficar longe da gente.
Clarissa, então, percebendo que a vigilância excessiva era resultado de seu comportamento negligente com a família, respondeu:
-- Oh, tia. Acaso acha que eu não me importo com vocês? Pois sim, me importo muito. Só que às vezes eu também sinto vontade de ficar sozinha, ou mesmo conversando com minhas colegas da fábrica. Mas, independente disso, eu gosto muito dos meus três tios queridos. Não só gosto, por que gostar é pouco, amo-lhes, e lhes sou muito grata pelo que fizeram por mim, durante todos esses anos. Realmente, não tenho do que me queixar, desde que me entendo por gente, vocês são a única família que eu tenho.
-- Ah, Clarissa, minha querida. – respondeu a tia docemente enquanto se encaminhava para abraçar a sobrinha.
De tão enternecida com as palavras da sobrinha, delicadamente pegou o bule de café, e perguntou a moça, o quanto ele queria da bebida. Depois, cortou um pedaço de pão e deu para ela comer.
Quando Bartolomeu e Ludovico voltaram da rua, chegaram até, a ficarem admirados com a cena. Isso por que, fazia tempos, que não viam Raquel tão dedicada a sobrinha.
Constantemente preocupada com o comportamento da moça, sua tia ultimamente só se preocupava em vigiá-la. Não por que fosse má, mas por que temia que a sobrinha, estivesse se metendo em encrencas.
Em razão da influência nefanda de Ataúfo, temiam que a moça se guiasse pelas mesmas idéias do tio.
Mas, por enquanto, para eles, parecia que tudo estava calmo.
Clarissa, também, visando não chamar a atenção dos tios, resolveu naquele dia, permanecer em casa.
Enquanto fazia companhia a tia, aproveitava para auxiliá-la em seu serviço doméstico. Prestativa, até sua tia espantou-se. Não que a moça não ajudasse em casa, mas é que nem sempre ela estava disponível para tanto.
Mas como ultimamente passava boa parte do tempo longe de casa, raramente ajudava sua tia com as roupas. Além disso, por voltar constantemente, tarde para casa, não tinha tempo para mais nada além do trabalho.
Por isso, ao ajudar Raquel, a lavar algumas das roupas de suas freguesas era uma novidade.
Contudo, não pensem que Clarissa gostava de mentir para seus tios.
Ela simplesmente o fazia por que, se contasse a eles a verdade, certamente seus tios fariam de tudo para impedi-la de continuar. E por isso não podia deixar que eles soubessem.
No entanto, não poderia esconder este fato, por muito tempo. Mais cedo ou mais tarde, seus tios acabariam por descobrir que a moça estava envolvida em algo muito sério. Mas isso é assunto para os próximos capítulos.

Luciana Celestino dos Santos
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